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Um paralelo curioso: Debussy e Luiz Gonzaga

Ricardo Moreno

Professor de Música da rede municipal (Rio de Janeiro e Duque de Caxias); mestre em Etnomusicololgia pela UniRio

Na história da música, tanto popular quanto erudita – e até mesmo, no sentido mais geral, na história das artes e das ciências –, encontramos sempre o que podemos chamar de pontos de inflexão. São momentos em que ocorrem guinadas, mudanças de curso, enfim, mudanças. Dessa forma, alguns autores constituem-se como liminares; servem como pontos de passagem para a construção de um novo momento naquela atividade. Em certo sentido, foi isso o que aconteceu com Debussy e Gonzaga.

Quando da crise no sistema tonal (simplificando ao máximo, podemos dizer que esse sistema é o que usa aquela escala que aprendemos quando crianças na escola: dó, ré, mi... si, dó) na chamada música de concerto, crise ocorrida no século XIX, os compositores estavam à procura de estabelecer novos caminhos para a produção musical. A produção da chamada Escola de Viena, com Schoenberg, Alban Berg e Webern, foi, de certa forma, uma modo de responder a essa crise. Como afirmava Schoenberg, o trabalho de Wagner já tinha anunciado a crise do sistema tonal, e depois dele não era possível nenhum retorno. Foi desse entendimento que surgiu a necessidade de construir um novo código, que fosse mais longe do que Wagner já tinha ido. Esse código seria o dodecafonismo; depois, o serialismo integral.

Outra solução vinha da França: Claude Debussy. Além da questão timbrística que preocupava esse compositor (novos sons resultantes de novas combinações de instrumentos), havia também a possibilidade de usos dos modos (sistema que organiza as notas da escala de forma diferente do sistema tonal) que ele descobriu, ou pelo menos teve um precioso insight, a partir da audição de músicas orientais na Feira Mundial de Paris, por ocasião das comemorações do centenário da Revolução Francesa (1889). Além dos modos, havia também a questão das polirritmias (sistema pelo qual várias “linhas” rítmicas são articuladas simultaneamente), que Debussy afirmou ser imensamente superior às formas rítmicas usadas na tradição da música ocidental.

Ora, a utilização de estruturas modais antigas e advindas de outras tradições não ocidentais acabou sendo uma forma de oxigenação para a música ocidental. Quer dizer, uma forma aparentemente superada de estruturar os sons retorna através de novos usos perfazendo um novo sistema, ou melhor, uma nova forma de usar o antigo sistema. Outros compositores de música contemporânea também utilizam elementos modais em suas peças. Esse é o caso, segundo José Miguel Wisnik, de Steve Reich, que encontrou na música balinesa e na africana elementos modais e estruturais e os utilizou em seus próprios processos composicionais minimalistas.

O caso Luiz Gonzaga na música popular segue um esquema aproximado do de Debussy na música erudita. Quando Gonzaga surgiu no cenário musical brasileiro, na década de 1940, este era de natureza predominantemente tonal. E continuou sendo, mesmo depois que ele introduziu elementos modais no cancioneiro popular brasileiro.

É possível pensar que Luiz Gonzaga tenha feito essas introduções de modalismos sem refletir muito sobre isso, mas o mesmo não se pode dizer das gerações de compositores que surgiram nos anos 1960, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Edu Lobo, que se valeram desse conhecimento para produzir inflexões estéticas na música brasileira como forma mesmo de oxigenar e renovar os caminhos da MPB.

É sintomático que tenha sido do Nordeste brasileiro que tenha vindo esta solução, já que, como se sabe, é uma das regiões brasileiras mais atrasadas do ponto de vista econômico e com baixos níveis de escolarização. Talvez seja por isso mesmo que os artistas dessa região puderam ter contato com indivíduos que, por estarem afastados da tradição escolar, continuavam a produzir seus cantos e sua modas fora dos esquemas eleitos como canônicos pela tradição letrada. Talvez tenha sido dessa forma que um modo musical que possivelmente remonta à Antiguidade, o chamado mixolídio, permaneceu em uso nos aboios cantados pelos vaqueiros sertanejos.

Luiz Gonzaga ouvia esses aboios e, com essa estrutura, compôs: “eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião...”. Esse verso foi construído em cima da referida estrutura mixolídia.

O importante é que entendamos que o código musical, como qualquer outro código comunicativo, corre o risco de enfraquecimento quando começa a se tornar redundante. Nesse momento ele precisa do aporte de novas informações – e, de certa maneira, foi isso que aconteceu com o modalismo, tanto na música popular brasileira do século XX quanto na música de concerto europeia do século XIX. Outra lição que podemos tirar daí é que essa revigoração do código pode vir de conhecimentos aparentemente ultrapassados e antigos. É preciso estar atento às novidades do velho!

Publicado em 28 de abril de 2009

Publicado em 28 de abril de 2009

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