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Uma espiadinha no mundo real

Mariana Cruz

Uma das teses que o filósofo francês Michel Foucault defende em um de seus livros mais famosos, As palavras e as coisas, é de que com a mudança das épocas o centro do pensamento ocidental mudou seu objeto. Segundo ele, foi apenas na contemporaneidade que o homem apropriou-se desse lugar de prestígio. Houve uma ruptura com a época anterior, quando Deus era o critério; era Ele que estava nesse lugar privilegiado. Tal mudança de objeto de interesse, porém, ainda é criticada por Foucault. Talvez inspirado pela inconformidade nietzschiana, o filósofo defende o surgimento de uma nova episteme a fim de superar esse “humanismo” ainda sustentado pelos alicerces cristãos.

A burguesia tira Deus desse centro e coloca o homem em seu lugar. Agora ele passa a ser a medida. O pensamente extemporâneo de Friedrich Nietzsche, porém, vai mais longe. O filósofo niilista afirma que tal permuta de nada adiantou, uma vez que o homem, ao ocupar o lugar de Deus, passa a ser considerado outro deus. Na realidade, o que deveria ser aniquilado era justamente esse lugar, pois, com sua extinção, o homem se tornaria verdadeiramente livre. Entretanto, uma questão fica em suspenso: estaria Nietzsche realmente propondo a extinção desse lugar ou, no fundo, ele estaria reservando-o ao seu tão falado super-homem?

A despeito de todas essas questões, o que se observa é que o pensamento atual não colocou nenhuma dessas coisas no centro; mas, como afirma Nietzsche, em Assim falava Zaratustra, “Deus morreu” (1981, p. 9). E, quem sabe, o homem também não teve o mesmo fim? Mas tal lugar não ficou vazio. Agora ele é preenchido pela aparência, pela ilusão. Tais elementos encobrem, disfarçam e acabam – provisoriamente - com a angústia do homem, fazem com que ele se esqueça de si.

O modelo passa a ser o verdadeiro. A cena passa a ter mais importância que o próprio real. O que existe é o falso, ou melhor, o mais falso que o falso. Uma espécie de falso não-assumido, o falso com rótulo de verdadeiro. Muito mais danoso que o simples falso – que é algo evidente, perceptível, quase grotesco.

Para que tal camuflagem fique ainda melhor, o falso mistura-se ao verdadeiro numa relação parasitária, contaminando-o, tornando-o falso também e, por outro lado, ganhando cada vez mais contornos de verdade. Exemplos não faltam: nas guerras, o que mais importa é o que nos é transmitido pelos meios de comunicação – e não guerra em si. É o mais falso que o falso, é o hiperfalso, aquele que se disfarça de real, dissimula a realidade. É a super-representação que nos é oferecida. Talvez seja este tipo de postura em relação aos objetos que, parafraseando a criação de Descartes, Baudrillard tenha denominado Gênio Maligno, uma espécie de deus enganador que também tem a função de criar uma sensação de verdade. Os corpos sarados expostos na TV são músculos reais, provenientes de atos de coragem (tal e qual os corpos dos guerreiros romanos)? Ou de vontade de superação dos limites (tal e qual os corpos dos atletas)? Ou mesmo são resultado de disciplina e força de vontade? Hoje, qualquer pessoa pode “parecer’” mais forte que um atleta. Tais físicos – antes consequência de atos de coragem, disciplina, força de vontade – agora são resultantes da ingestão de anabolizantes. São um fim em si. A coragem de Aquiles e a força de Ájax de nada adiantariam nos dias de hoje, diante da implacabilidade de uma bala certeira, que também tratou de sepultar em pouco tempo a arte milenar dos samurais.

O mais falso que o falso está em todos os níveis; o que dizer de uma bolsa falsificada da Louis Vuitton? Existem aquelas falsificações grosseiras, adquiridas pelas madames de baixo poder aquisitivo, e as falsificações quase perfeitas, cujo preço elevado equipara-se ao de muitas bolsas de marca. Mesmo a verdadeira bolsa Louis Vuitton... Qual seria a função dela, senão passar uma imagem de poder, de importância para quem a usa?

Por fim, o que dizer da multiplicação dos reality shows, que já trazem no próprio nome uma contradição? Eles são mais reais, mais debatidos, mais polêmicos que a fome na África, no Nordeste, nas favelas da sua cidade ou na casa da vizinha. Tais elementos são coisas tão distantes que não temos como intervir. Já com os reality shows é diferente: basta ligar para o número que aparece na tela para eliminar quem quisermos. Bem-vindo ao mundo real. Entre e dê uma espiadinha.

Referência

NIETZSCHE, F. W. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Hemus, 1981.

Publicado em 5 de maio de 2009.

Publicado em 05 de maio de 2009

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