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Dicas para o trabalho com jornais no Ensino Médio

Juliana Carvalho

Professora e redatora

Os estudos linguísticos realizados com perspectiva textual vêm ganhando espaço desde a década de 1980 e se consagrando no ensino de língua. Nesse período, começou-se a repensar esse ensino e, desde então, novas teorias e técnicas foram criadas no sentido de procurar ensinar língua com base em textos.

Nas décadas passadas, o trabalho com textos se restringia a textos literários, geralmente de autores clássicos. Hoje, sabemos que o ensino da norma padrão da língua deve abranger o maior número possível de manifestações linguísticas, presentes nos diversos gêneros textuais. Por isso, é comum ver professores trabalhando com textos jornalísticos, publicitários, quadrinhos e até documentos técnicos. Esses tipos variados de textos estão presentes em materiais elaborados por terceiros (geralmente o livro didático) ou pelos próprios professores. Entretanto, apesar dos avanços, esses materiais ainda são bastante centrados na temática dos textos, explorando pouco a estrutura, o contexto e o uso nas relações sociais.

Outro trabalho importante e preterido pelos professores é o de (re)escritura. Por sucessivas décadas, os livros abordaram o processo de interpretação e deixaram de lado o processo de produção, tornando os alunos incapazes de elaborar respostas. As famosas fichas prontas de interpretação que acompanhavam os livros paradidáticos acostumaram nossos alunos a copiar do texto frases prontas com respostas, método presente nos livros didáticos até hoje. Se o aluno precisa pensar e elaborar, não consegue realizar a tarefa, pois considera que seu papel é o de “interpretante”, com uma única visão possível.

Um pouco de teoria

Neste artigo, vamos apresentar sugestões de elementos linguísticos que devem ser abordados no trabalho com jornais e propor ferramentas para fazê-lo. Mas antes, vamos passar por um pouco de teoria para subsidiar o trabalho; afinal, não basta oferecer o peixe...

Os sujeitos da comunicação, segundo Charaudeau

A interação comunicativa é como uma encenação, e para interpretar um texto é necessário que saibamos quais os referentes do “eu” e “tu” empregados no discurso. Para tanto, Charaudeau manifesta a existência de dois “eus” e dois “tus”. O eu-comunicante e o tu-interpretante seriam pessoas reais, aquelas que participam do ato comunicativo. O eu-enunciador e o tu-destinatário são pessoas do discurso e só existem teoricamente.

O tu-destinatário é a imagem que o eu-comunicante tem do tu-interpretante. O eu-comunicante se dirige a essa “imagem” ao produzir seu texto. Sua comunicação será bem-sucedida apenas se o tu-destinatário coincidir com o tu-interpretante. Já o eu-enunciador é a imagem que o eu-comunicante quer passar de si para o tu-interpretante, imagem que este último pode aceitar ou não. Na verdade, existem dois “eus” enunciadores: um criado pelo eu-comunicante e outro pelo tu-interpretante.

Além dos “eus” e “tus”, existem no discurso os “eles”, que são pessoas, fatos ou coisas a que os “eus” e “tus” fazem menção no momento da comunicação. Tudo que é referido ganha evidência, ou seja, pressupõe-se real.

Quando o eu-comunicante fala, não se anula pra tanto. Essa fala é carregada de suas características próprias, como o segmento social a que pertence, sua faixa etária, ou mesmo um grupo profissional de que é porta-voz. Chamamos de “ça” (termo emprestado de Barthes) essa noção de que o produtor impõe características pessoais a seu texto.

Existe ainda uma “voz do povo” que permeia a produção de um texto. O eu-comunicante utiliza expressões como “todos sabem que...” ou “é notório que...” para envolver o leitor e fazê-lo cúmplice das ideias veiculadas em seu texto.

Restrições e liberdades

Não se pode escrever ou falar o que se quer, do modo que se quer. A comunicação é controlada por regras, no âmbito das quais nos movemos. Assim, são os contratos de comunicação que direcionam nossas atividades comunicativas em relação às restrições e liberdades de dado contexto comunicativo.

Por exemplo, seria estranho parar alguém na rua para perguntar se essa pessoa come legumes todos os dias. Mas se um médico fizesse a mesma pergunta em seu consultório a um paciente, ela não soaria mal, pois esse contexto permite tal interação entre os sujeitos. Todo contrato de comunicação pressupõe determinada situação comunicativa. Por isso, o contrato que rege a relação médico-paciente não é o mesmo que rege, na rua, pessoas que não se conhecem.

Projeto de comunicação

Segundo Charaudeau, todo texto é coerente para quem o escreve. Porém esse fato não é suficiente, pois o texto precisa alcançar o objetivo para o qual foi produzido. Quando nos comunicamos, verbal ou oralmente, temos em mente um “ponto final”, “uma linha de chegada” e tentamos descobrir uma forma de atingi-la. A esse processo damos o nome de projeto de comunicação.

Para realizar um bom projeto é necessário administrar bem as restrições e liberdades do contrato, utilizando estratégias discursivas que explorarão as margens desse contrato, no intuito de atingir os objetivos idealizados. Além disso, quanto mais a hipótese do eu-comunicante sobre quem seja o tu-interpretante estiver correta, mais êxito terá o projeto de comunicação.

Contrato de comunicação

O contrato de comunicação é um processo sociodiscursivo formado pelo conjunto de restrições e liberdades que regem a produção e interpretação do ato comunicativo, delimitando as margens até onde o eu-comunicante pode ir na elaboração de seu projeto de comunicação. Cada gênero ou subgênero tem suas especificidades contratuais e cada contrato está ligado a um gênero dentro de determinada situação comunicativa.

Um contrato terá de definir:

  • Os papéis na comunicação: cada interlocutor desempenhará um papel de acordo com o contrato relacionado à situação comunicativa.
  • A natureza monolocutiva ou interlocutiva: a primeira ocorre quando não há troca de papéis entre os interlocutores (por exemplo, num livro), enquanto na interlocutiva esses papéis de alternam (como numa conversa com um amigo).
  • Os rituais de abordagem:condições para entrar em contato com o interlocutor. Numa situação interlocutiva, temos como exemplo as saudações ou as trocas de gentilezas. Na monolocutiva temos as manchetes de jornais, slogans de publicidade, introduções e fechos de cartas.

A mesma sequência de palavras pode ter sentidos distintos, conforme a situação comunicativa. A escolha do sentido adequado a cada caso é condicionada pelo tema admissível em cada contrato. Para interpretar a sequência de palavras, é necessário saber o contrato correspondente à situação comunicativa na qual foi produzida. Os contratos de comunicação também variam no tempo e no espaço, ou seja, cada conjunto de contratos é próprio de uma cultura ou de determinada época.

Um pouco de prática

O trabalho com jornais em sala de aula pode oferecer ao aluno uma noção concreta dos contratos de comunicação. Uma proposta é levar jornais que visem atingir diferentes segmentos da sociedade. Podem ser trabalhados jornais como O Globo, Folha de S. Paulo, o Estadão ou Jornal do Brasil, escritos para o segmento “A” da sociedade, e jornais mais populares, como O Dia, Diário de S. Paulo ou Extra, elaborados para as classes “C” e “D” da população.

É interessante apresentar os vários gêneros textuais presentes no jornal e as características de cada um, criadas seguindo seus contratos de comunicação. Podemos começar afirmando que existe um contrato de comunicação para o jornal como um todo e um contrato para cada gênero textual presente. Um artigo de opinião segue um contrato diferente do definido para a notícia, para o editorial, para o resumo de novelas, para as cartas dos leitores e até para o horóscopo. O professor deve perceber as diferenças de cada um com base na estrutura e nos meios linguísticos; vamos falar deles depois.

Quanto à estrutura, os textos argumentativos podem ser trabalhados com base no seguinte esquema:

O argumentador tenta convencer o leitor (público-alvo) a aceitar sua tese. Ele pode ser uma pessoa conhecida, relacionada com o tema e que possui credibilidade para falar sobre o assunto ou ser alguém desconhecido da população, mas que possui autoridade ou é um especialista no tema. No primeiro caso, geralmente são dispensadas as apresentações. No caso de alguém desconhecido do grande público, será explicitada a formação ou experiência que lhe confere autoridade para discorrer sobre o assunto.

A tese será provada por argumentos baseados na razão, na emoção ou na manipulação do leitor. O argumentador pode apelar para a razão pela indução ou pela dedução. Na indução, ele mostra vários fatos particulares que levam a uma conclusão geral. Quanto mais fatos particulares, mais próxima do geral vai ficar a conclusão. Quanto menos fatos, mais distante. A indução pode partir do particular para o geral ou do abstrato para o concreto. O autor erra ao utilizar o processo indutivo porque deixa de considerar alternativas, pois apenas um ou dois fatos particulares não levam a uma conclusão geral. Na dedução ou silogismo, ou autor une uma premissa universal (verdadeira e geral) a uma premissa particular, gerando uma conclusão. Exemplo:

Todo homem é mortal (premissa universal)
Sócrates é homem (premissa particular)
Sócrates é mortal (conclusão)

Na dedução, o autor erra quando utiliza uma premissa particular no lugar da premissa geral, tornando a conclusão falsa.

O autor apela para a emoção quando utiliza argumentos relacionados aos sentimentos, empregando, de forma sutil, palavras de apelo cultural ou ligadas a família, religião, opinião, testemunho ou autoridade. Na argumentação baseada na manipulação, o apelo é mais claro e evidente. Ele pode surgir na forma de uma tentação (faça isso e você ganha aquilo); sedução/sugestão (seja inteligente, assine a revista x); intimidação (faça isso ou aquilo vai acontecer) ou na forma de competição ou comparação com algo melhor (faça isso ou não será como fulano).

Operações Linguísticas

Em um texto informativo – uma notícia, por exemplo –, o melhor é começar a interpretação pelo lead. Lead é a primeira parte da notícia, que responde às perguntas “O quê?", "Quem?", "Quando?", "Onde?", "Como?", e "Por quê?". Um lead simples pode dizer apenas quem fez o que e quando. Depois, podemos passar à interpretação junto ao trabalho com a gramática. O estudo dos meios lingüísticos pode seguir o esquema:

Mundo a significar → Mundo significado → Mundo interpretado

De acordo com essa ordem, é natural começarmos o estudo do texto pelas operações de designação, ou seja, o estudo de substantivos, pronomes e todas as palavras que servem para dar nome às coisas no texto. Podemos verificar se a escolha lexical reforça a tese principal do texto. Palavras como “sobe”, “aumento”, “elevaram”, “avanço” podem sugerir que o ator está passando uma ideia de crescimento que pode ser referente ao poder aquisitivo do consumidor ou ao preço dos alimentos, por exemplo. O autor pode trabalhar com vocábulos gerais como “móvel”, “ferramenta” e “doença” ou com vocábulos mais específicos como “mesa”, “martelo” ou “dengue”. Nos textos infantis, é comum encontrar vocábulos gerais, enquanto nas colunas sobre saúde ou meio ambiente, por exemplo, predominam os específicos. O uso de palavras mais antigas ou mais modernas pode dizer algo sobre o autor ou sobre o público que ele pretende atingir, assim como a escolha de vocabulário positivo ou negativo. Operários em greve podem ser trabalhadores para um autor que se solidarize com sua causa, ou grevistas para quem não se solidariza – ou até baderneiros, para um autor que se posicione claramente contra.

A segunda operação lingüística a ser verificada é a delimitação. O uso de adjetivos pode delimitar ou atribuir algo aos substantivos e, ao mesmo tempo, ajudar no esclarecimento das intenções do autor.

Os adjetivos que expressam qualidades geralmente são utilizados em textos autorais como colunas ou artigos de opinião. Os que expressam informação ou característica podem ser usados em textos informativos em geral.

A terceira operação é a de atribuição. Nela é verificada a existência de artigos, numerais, pronomes adjetivos e outros. Uma dica é fazer com que os alunos percebam como são elaborados os títulos das notícias. Eles vão verificar que são elaborados de forma concisa – e isso exclui o uso de artigos. Em seguida, uma boa ideia é distribuir uma notícia sem título e pedir que eles o elaborem. O título pode ser nominal (também chamado de título-referência, sem verbos) ou um título informativo (verbal). Eles devem perceber a diferença em manchetes como:

  • “Crise na Secretaria de Saúde” (título nominal) e
  • “Secretário de saúde demite sete diretores” (título informativo).

Outra operação lingüística inclui os processos ou verbos, que podem ser divididos em dois grupos:

  • Grupo I – Indicativo: presente, pretérito perfeito composto, futuro do presente, futuro do presente composto e locuções verbais formadas com esses tempos.
  • Grupo II – Indicativo: pretérito perfeito simples, pretérito imperfeito, pretérito mais que perfeito, futuro do pretérito e locuções formadas com esses tempos.

Os tempos do grupo I pertencem ao mundo comentado; os do grupo II, ao mundo narrado. Quando o autor emprega os tempos do grupo II, ele assume o papel de narrador e faz do leitor um simples ouvinte. Ao utilizar os tempos do grupo I, ele se compromete com o texto e adverte o ouvinte de que se trata de algo que o afeta indiretamente. É fundamental o estudo dos tempos verbais no texto porque pode ajudar a perceber a intenção do autor, revelando se está mais ou menos comprometido com o texto.

Por último, é importante estudar a operação de conexão, que engloba o uso de preposições e conjunções, seus valores semânticos e a forma como estão sendo utilizadas, e a operação de modalização, que reúne palavras denotativas e sem classificação, que costumam exprimir a opinião do autor. Quando ele utiliza a estrutura: “Embora tenha faltado à aula, ela tirou notas boas”, ele dá ênfase à primeira sentença (ter faltado à aula). Quando escreve: “ela faltou à aula, mas tirou notas boas”, a relevância está na segunda afirmativa. No decorrer do texto, é importante ajudar o leitor a perceber o que levou o autor a escolher uma das duas formas.

As palavras modalizadoras expressam muito da opinião do autor. Quando um jornalista escreve que “a economia do Brasil cresceu 3% em apenas um ano”, a palavra apenas expressa a opinião dele. O leitor pode crer que 3% é um crescimento pequeno para o período de um ano.

Essas são apenas algumas sugestões para o trabalho com jornais, pois as possibilidades são muitas, pois, paralelamente à interpretação, podem ser feitos trabalhos com a gramática tradicional, de reconhecimento de classes gramaticais, de função sintática, de orações e reescritura.

Cabe ao professor escolher os textos, analisá-los com antecedência e preparar um trabalho que englobe interpretação, gramática e retextualização.

Publicado em 12 de maio de 2009.

Publicado em 12 de maio de 2009

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