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Memória fraca

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Eu nasci no dia sete de fevereiro. Isso significa que, quando eu nasci, o Sol estava no signo de aquário. 7 de fevereiro de 1974 era dia de Lua cheia. Isso significa que a Lua estava no céu em oposição ao Sol, ou seja, no signo de Leão. Eu nasci na Lua cheia de fevereiro, um dia como outro qualquer, a não ser para mim e meus pais.

Configurações astrológicas à parte, eu tenho memória fraca. Não sei se é por causa do Sol, da maresia, do calor ou do mercúrio em Peixes. O fato é que costumo esquecer os nomes. De vez em quando eu olho alguém que já conheço faz tempo mas que não vejo há um bocado de anos e... travo. Esqueço o nome. Coisa de quem tem dislexia. Esqueço também o nome de coisas. Às vezes eu penso num objeto, faço a imagem mental, aponto até para ele na minha frente... e minha mente apaga. Fico irritado como se a falha na memória fosse um pecado, um deslize moral, uma distorção despudorada.

Eu posso me esquecer dos nomes das coisas e das pessoas. Mas não me esqueço das coisas. Não me esqueço das pessoas e também não fico feliz com a ausência dos signos em minha mente quando eu mais preciso deles.

Quando o filosofo alemão Martin Heidegger se meteu a estudar a cultura clássica e começou a se debruçar diante da etimologia profunda das palavras em grego, redefiniu vários conceitos da filosofia ocidental com base nesse joguinho.

Uma das palavras mais fortes redefinidas por Heidegger é Aletheia, que em grego quer dizer “honestidade, veracidade, verdade, sinceridade”. Ela está relacionada a lanthanein e duas outras formas mais arcaicas, lethein, que significa “passar despercebido, não ser visto”, e lethe, que significa “esquecer, esquecimento”. Nesse sentido, a-lethes ou a-letheia significa algo mais profundo. Significa “não escondido ou não esquecido”; “aquilo que não se esconde nem se esquece”.

Quisera o ministro Edson Vidigal, do Supremo Tribunal de Justiça, ter se concentrado mais nas leituras de Martin Heidegger antes de ir para a TV defender a estranha ideia de que “anistia é esquecimento”. Ao referir-se às fotos de Wladimir Herzog que emergiram do porão obscuro do inconsciente, o conspícuo julgador acabou por revelar, desvelar, tornar claro, o entendimento de uma parte substancial dos herdeiros do regime de 64: a ideia de que, com a anistia “ampla, geral e irrestrita”, cai por terra a memória e, com ela, a verdade.

Como o ministro, tem gente que acha que a Lei da Anistia é como o Rio Lethes, que na metáfora poética da República de Platão separava o reino dos vivos do reino dos mortos, produzindo em quem passava por suas águas um poderoso e anestésico esquecimento.

Pode ser mais confortável esquecer. Pode ser mais simples, mais cômodo. Mas não é honesto, não é sincero, não é verdadeiro. O desvelamento do passado é um elemento de extrema importância para a redefinição do presente. Fechar no cofre velado do esquecimento os registros do período da ditadura é condenar os brasileiros de hoje ao risco de trilhar um caminho semelhante no futuro, é não querer encarar a massa mal formada de nossos próprios deslizes e de nossas próprias fragilidades políticas. A verdade é filha da memória, e a lembrança é o instrumento crucial do aprendizado social. Se a anistia for mesmo esquecimento, como o ministro Vidigal afirmou de forma enfática, ela é o contrário da aletheia; é a imagem desbotada, o documento rasurado, a palavra bloqueada, o silêncio, a escuridão, a ausência, o vazio.

Hoje, apostar no esquecimento é apostar no cômodo vazio da memória, um lugar no qual o mais vergonhoso crime e a mais inusitada virtude têm o mesmo valor e a mesma valia. Nada mais 1964, não acha?

Publicado em 12 de maio de 2009

Publicado em 12 de maio de 2009

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