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Qual é o pente que te penteia?

Mariana Cruz

Sou professora de filosofia da rede pública do Estado do Rio de Janeiro. Grande parte de meus alunos são moradores de comunidades e favelas. Sendo assim, não é difícil inferir que a maioria deles pertence a uma classe social baixa. As exceções são aqueles de classe média que, por terem repetido ano duas ou três vezes, foram transferidos pelos pais, como castigo, da escola particular para a pública.

Em um olhar panorâmico sobre minhas turmas, percebo que a maioria dos alunos é de negros ou mulatos, e muitos deles têm cabelo crespo. Já aconteceu de eu colocar a mão na cabeça de alguns deles, como forma de afeto, e sentir um elemento pegajoso em seus cabelos.  A maioria das meninas alisa o cabelo ou passa um tipo de goma brilhante que faz com que fique apenas ondulado e com um aspecto de eternamente molhado; os meninos se dividem entre os adeptos desse gel e os que têm a cabeça raspada.

Tudo bem, cada um faz com seu cabelo o que bem entender. O que acho estranho é o fato de as pessoas fazerem coisas com seus cabelos ou seu corpo sem refletir sobre o motivo de tal modificação. No caso de meus alunos, quando perguntei por que não deixavam seu cabelo natural, eles riram e falaram que não podiam fazer isso, pois tinham “cabelo ruim”.

Cabelo ruim? O que vem a ser um cabelo ruim? Por que esse rótulo? Será que um cabelo lisinho que todo dia está do mesmo jeito, que não segura grampo, elástico nem nada, também não pode ser considerado cabelo ruim? Chocada com o juízo que eles faziam do próprio cabelo, e ainda por cima com o fato de terem achado absurda a minha sugestão, como se estivesse propondo uma grande besteira, contei-lhes os dois primeiros exemplos que me vieram a cabeça a respeito da relatividade da expressão “cabelo ruim”.

Disse-lhes que uma das minhas amigas mais bonitas, dessas que arrasta olhares por onde passa, é negra, negra como muitos deles. E ela não passa nada no cabelo; pelo contrário: deixa-o o mais natural possível, quanto mais cheio, melhor. Ela os penteia com as mãos, de forma que ele fique bem armado. As roupas que usa geralmente são de cores que realçam a cor de sua pele, como amarelo, azul claro, branco. Veste umas saionas com figuras que lembram estampas africanas. Além disso, joga capoeira, faz dança afro, freqüenta rodas de samba.

Ela é bem diferente do visual das minhas alunas, que gostam de pagode e funk, que também são ritmos negros. A referência é outra. Realmente minhas alunas usam calças apertadas, sainhas curtas; é claro, são adolescentes, querem andar como anda o seu grupo. O problema é que seguem um padrão que muitas vezes lhes é imposto pelos seus ídolos da TV, da música. Copiam o visual e deixam de valorizar o que têm de bonito. Quase todas essas celebridades, sendo negras ou não, usam cabelos lisos.

O outro exemplo de que lhes falei foi das minhas idas a Salvador, onde fiquei hospedada no Pelourinho. Na boa terra, pelo que notei, parece que o negro está sempre na moda: cabelos trançados, rastafáris, batas africanas, pulseiras e colares coloridos, lenços e faixas na cabeça... Essa é a regra. Não só os negros andam assim, a moda se estende aos gringos branquinhos de olhos azuis, que dão um duro para que seus cabelos fininhos consigam se manter presos em um trança rasta.

Nas novelas, os negros, que antes só faziam papel de empregados ou escravos, estão aos poucos saindo da cozinha e da senzala. Há alguns anos, a atriz Tais Araújo fez a primeira protagonista negra de uma novela, que se chamava A cor do pecado. Acho que o título não foi dos mais felizes, mas não deixa de ter sido um avanço. Aos poucos, vemos negros aparecendo em posição destacada nos comerciais, apresentando jornais, programas. Assim eles vão se libertando dos grilhões que os aprisionaram e das chapinhas que os aprisionam. Entretanto, as chapinhas estão na cabeça não só dos negros mas também de muitas brancas, que veem uma ínfima ondulação no cabelo como séria ameaça à sua beleza. Parece que enrolada é a visão que têm sobre estética.

Meus alunos, apesar de agora verem pessoas com a cor de sua pele tendo funções importantes na mídia, ainda assim não fazem coro ao “black is beautiful”. Talvez seja por isso que sempre dou um jeito de, entre as aulas de metafísica, ética e epistemologia, trabalhar um pouco da questão racial. Tudo começou em 2005, quando li no jornal a notícia da morte de Rosa Parks, a costureira negra que, em 1955, se recusou a ceder lugar a um branco em Montgomery (Alabama, EUA), onde vigiam as leis da segregação social em locais públicos. Por sua atitude, além de ser presa, Parks teve de pagar uma multa de US$ 14. Tal injustiça fez com que o então desconhecido pastor batista Martin Luther King, inspirado no pacifismo de Gandhi, organizasse um boicote em massa dos negros ao transporte público do estado. Foi um protesto pacífico, no qual os negros ficaram por mais de um ano, para ser mais exata, 381 dias, sem pegar ônibus. Organizavam-se em caronas compartilhadas ou iam a pé para o trabalho. Tal movimento conseguiu, sem que uma gota se sangue fosse derramada, extinguir a lei de segregação racial em locais públicos. Quando falo desse assunto, percebo que a turma fica completamente absorvida pelo tema, pela história; presencio as mais diversas reações: alguns ficam revoltados ao saber que existia tal lei, outros querem saber mais sobre a história do pastor, outros consideram Rosa muito corajosa – mas reconhecem que, no lugar dela, cederiam o lugar para não serem punidos.

Pode ser que casos como o de Rosa Parks, da amiga-bonita-que-não-passa-nada-no-cabelo ou dos soteropolitanos-africanos não surtam qualquer efeito prático; provavelmente meus alunos vão continuar alisando o cabelo e passando gel. Nada contra quem alisa o cabelo – o que fazer com o cabelo é da cabeça de cada um, literalmente. Quero apenas que meus alunos percebam, sem nenhuma dialética, que cabelo ruim é bom.

Publicado em 19 de maio de 2009

Publicado em 19 de maio de 2009

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