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Cartas e cadernetas: exercícios da escrita
Cláudia Sampaio
“que possa a morte me apanhar pensando, escrevendo, lendo”Epicteto
Os bons músicos sabem que é no exercício diário com o instrumento que surge a possibilidade de produzir música de qualidade. Assim como os artistas plásticos na lida cotidiana com seus traços, texturas, cores e formas, fotógrafos em vigília por aguçar olhares e novos ângulos, e professores, que a cada nova aula afinam seu ofício, os escritores têm em seus diários, cadernetas e correspondências o lugar onde questionam, aprimoram e cultivam a produção de suas obras. Portanto, com exceção da ‘sorte de principiante’, é na constância do exercício que encontramos o caminho para a conquista do êxito na atividade profissional.
No caso da escrita, a prática não é exclusividade dos profissionais das letras, como mostra Michel Foucault em “A escrita de si” (1983) ao defender que a palavra escrita interessa a todos que desejam “cuidar da alma”, “atenuar os perigos da solidão”, “construir a memória material de coisas lidas, ouvidas e pensadas”; enfim, exercitar o pensamento a partir do sentido e encontrar-se face a face consigo e com o outro.
Voltado para o estudo sobre “as artes de si mesmo”, ou seja, “a estética da existência e o domínio de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois primeiros séculos do império”, Foucault observou a relação que os antigos como Plutarco, Sêneca e Epicteto mantinham com o exercício da escrita, analisando duas expressões frequentes entre esses pensadores: a correspondência (“a carta é ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mesmo”) e o hupomnêmata (espécie de caderneta onde se anotava uma coletânea de coisas lidas e ouvidas). A caderneta dos antigos é citada por Foucault como meio de enganar a solidão, já que “o fato de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro” e a carta é o meio pelo qual o olhar do outro elabora nossa alma.
É fato que cadernetas e correspondências não são práticas tão comuns hoje em dia quanto foram no passado, quando o “escrever para si e para o outro desempenhava um papel considerável na sociedade”. Mas se tivermos em conta a marcha dos astros e o inevitável devir de tudo que nos cerca e constitui, veremos que a palavra escrita segue promovendo encontros íntimos e interpessoais, sobretudo pela internet. Afinal, temos na rede textos capazes de nos afetar profundamente, além dos sites de relacionamento, e-mails de trabalho, amizade, amor e a experiência dos blogs, tão próxima da escrita íntima dos diários.
Foucault lembra dois dos princípios frequentemente evocados por Sêneca: “o de que é necessário adestrar-se durante toda a vida e o de que sempre se precisa da ajuda do outro na elaboração da alma sobre si mesma”. Sêneca, que insistia na leitura como pratica de si, defendeu ainda a escrita como elemento que transforma a coisa vista ou ouvida “em forças e em sangue”.
Por essa vereda seguem os poetas, e é lugar comum pensarmos em como eles se apoderam dos dissabores e da solidão como requisitos indispensáveis para a produção de suas obras. Até mesmo porque muitos deles contribuíram para perpetuar a ideia de que era preciso afastar-se do mundo para dar conta das exigências de qualidade que impunham às suas obras. Por esse caminho de abandono e solidão seguiram alguns de nossos poetas recentes que tinham particular interesse na escrita de cartas e diários – Ana Cristina César, Torquato Neto – e que acabaram por dar fim à própria vida. Não que esta seja uma condenação aos suicidas, afinal, cada um é dono de sua vida e faz com ela o que melhor lhe aprouver, mas não há dúvidas de que a solidão radical, pela qual optaram muitos dos escritores em diferentes épocas, é assunto de interesse para quem pensa sobre o ofício do escritor.
Uma das cartas que Fernando Pessoa escreveu ao amigo, também poeta, Armando Côrtes-Rodrigues é motivada justamente por uma “crise psicológica” desencadeada pela solidão radical em que se encontrava o poeta português: “o facto de eu estar agora vivendo só, por não ter aqui família próxima, vem agravar este estado de espírito, por me deixar a nu com a minha alma, sem afeições e interesses familiares próximos a desviar de mim a minha atenção”.
O interessante é observar que, mesmo acometido por essa “tristeza de alturas” que só um amigo com profunda afinidade espiritual seria capaz de compreender, o poeta reitera em diversas linhas seu compromisso com a consciência “da terrível importância da Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte”. Pessoa era um humanista, tinha na linguagem o lugar de troca com o outro.
Tão banal quanto fazer aqui uma condenação dos suicidas seria relacionar numa mesma discussão a obra de Pessoa à de outros poetas como os já citados. Afinal, no caso do poeta português trata-se de uma genialidade à parte, da qual ele próprio tinha consciência. Provavelmente viesse daí seu compromisso com a vida: “tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas qualidades que recebi”.
Nesta carta a Armando Côrtes-Rodrigues (que é leitura imperdível), Pessoa apresenta ao amigo uma das estrofes do poema até então inédito “Ela canta, pobre ceifeira”, do Cancioneiro, que traz o verso-síntese da poesia moderna: “o que em mim sente, está pensando”.
O surpreendente, ao lermos as outras cartas disponíveis no site dedicado a Pessoa, são as cartas de amor à Ophelinha. Nelas encontramos vários trechos popularizados por Maria Bethania, fã incondicional de Pessoa:
Botão de rosa menina,
Carinhosa, pequenina,
Corpinho de tentação,
Vem morar na minha vida,
Dá em ti terna guarida
Ao meu pobre coração.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inútil." 29/11/1920
A história de amor com Ophelia não é das mais felizes, o que pode até confirmar esse acorde renitente “dor, solidão, poesia”. Apesar de reclamar ao amigo que sua extrema sensibilidade acaba por afastá-lo dos outros, as cartas de Pessoa são exemplos concretos da intenção do poeta em elaborar sua alma justamente a partir do olhar do outro. Ao que parece, é neste lugar do escrito e lido que os escritores encontram a possibilidade de serem amados. E não é isso que todos queremos?
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus. 01/03/1920
Bibliografia
FOUCAULT, M. “A escrita de si”. In: FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa: Vega, 1992.
Publicado em 26 de maio de 2009
Publicado em 26 de maio de 2009
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