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A importância do capital cultural de Bourdieu

Raquel Menezes


Cena do filme Escritores da Liberdade

Emprestado da economia, o termo capital cultural tem um papel nodal para o pensamento sociológico de Pierre Bourdieu, cujos estudos acentuaram a dimensão de que a origem social dos alunos se constitui em desigualdades escolares. Em outras palavras, o capital cultural é o que pode designar o sucesso ou o fracasso de cada aluno. Afinal, algumas evidências apontam que as limitações do conceito de capital econômico explicam a ligação entre o nível socioeconômico e os bons resultados educacionais. Isso nos faz considerar que outras formas de capital, como o social e o cultural, contribuem diretamente e interagem com o capital econômico para fortalecer as relações sociais.

Ao longo da primeira metade do século XX, a visão predominante atribuía à escola o papel central na construção de uma nova sociedade, justa, moderna, aberta e democrática, na qual a escola pública e gratuita garantiria o acesso à educação, e, conseqüentemente, à igualdade de oportunidades. Foi, entretanto, no contexto da democratização do acesso à escola fundamental e do prolongamento da escolaridade obrigatória que se tornou evidente o problema das desigualdades de escolarização entre os grupos sociais. O otimismo marcante do período anterior foi substituído por uma postura de cunho mais pessimista, embasada na influência da origem social nos resultados escolares, ou seja, a forte relação existente entre desempenho escolar e origem social (classe, etnia, sexo, local de moradia, entre outros). Nas palavras de Pierre Bourdieu:

Não há dúvida de que os julgamentos que pretendem aplicar-se a pessoas em seu todo levam em conta não somente a aparência física propriamente dita, que é sempre socialmente marcada (através de índices como corpulência, cor, forma do rosto), mas também o corpo socialmente tratado (com a roupa, os adereços, a cosmética e, principalmente, as maneiras e a conduta)
(1998, p. 193).
Humberto de Campos Véras foi jornalista, político e escritor brasileiro que aos 24 anos publicou seu primeiro livro de versos (1910), intitulado Poeira, que lhe deu razoável reconhecimento além do Norte e Nordeste. Dois anos depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, continuando a carreira jornalística e, como ativista, tornou-se famoso sob o pseudônimo de Conselheiro XX.

Um exemplo da importância do capital cultural (+ social) sobre o capital econômico está em Poder, Sexo e Letras na República Velha, de Sergio Miceli, livro no qual é apresentada análise que enfoca, em perspectiva sociológica, o desenvolvimento da vida intelectual brasileira em seu período de formação. Tendo como pilar o Modernismo, fase que permitiu que o trabalho intelectual fosse profissionalizado, especialmente em sua forma literária, os estudos de Miceli observam que a formação de um campo especializado de produção de bens simbólicos depende da identidade que o indivíduo tem com os símbolos – como a batina e a farda, por exemplo. Desse modo, a morte do patriarca e a falência econômica são possíveis causas de uma “reconversão a uma carreira literária determinada” (Miceli, 1977, p. 36), como aconteceu com Humberto de Campos Véras. Assim, esses símbolos de que fala Miceli são resultado do capital cultural, ou, nas palavras de Enguita, “à medida que se sobe de nível no aparato educacional, as relações do estudante com o conteúdo e o método ficam mais flexíveis” (1989, p. 112).

A posição social, ou ainda o capital cultural de que nos fala Pierre Bourdieu, está entrelaçado à inserção no mercado discutida pelos marxistas, na seleção social abordada pelos funcionalistas e pelos interacionistas. Tendo o exemplo do já citado Humberto de Campos e à luz dos escritos de Bourdieu, percebemos que o processo inicial de acumulação do capital cultural tem inicio, ainda que inconscientemente, desde a origem, sem atraso, sem perda de tempo, pelos membros das famílias que possuem capital cultural. Isso permite pensar que um filho de família de classe média terá mais sucesso do que o filho de um operário, que por sua vez terá mais que um filho de um trabalhador do campo. Desse modo, a posse de capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que facilita a aprendizagem dos conteúdos e códigos escolares. As referências culturais, a erudição e o domínio maior ou menor da língua culta, trazidos de casa por certas crianças, facilitam o aprendizado escolar à medida que funcionariam como ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar. A educação escolar, no caso de crianças oriundas de meios culturalmente favorecidos, seria uma espécie de continuação da educação familiar, enquanto para as outras crianças significaria algo estranho, distante ou mesmo ameaçador.

Outro exemplo de como o capital cultural é relevante no processo de formação, mais que isso, como é determinante no sucesso (ou no fracasso) de uma trajetória escolar, é o filme Escritores da liberdade. Entre outros tantos filmes sobre alunos norte-americanos indisciplinados, este filme de 2007 tem caráter diferencial: ainda que despropositadamente, Escritores da liberdade discute a relevância do capital cultural na sociedade escolar. Grosso modo, no longa-metragem a história real de Erin (interpretada por Hilary Swank) é narrada ora por uma das alunas, a mesma que se compara a (até então desconhecida para os alunos) Anne Frank, ora pelos próprios fatos. A professora novata em questão, interessada em lecionar Língua Inglesa e Literatura, vê-se diante de uma turma de adolescentes resistentes ao ensino convencional – alguns estão ali cumprindo pena judicial, quase todos são reféns das gangues avessas ao convívio pacífico com os diferentes.

É nesse filme que uma cena surpreendentemente emblemática é concedida. Ao serem questionados sobre o que foi o Holocausto, os alunos da novata Erin veem-se diante do desconhecido. E, quando perguntados sobre quem já tinha ouvido falar no terrível acontecimento da nossa história, apenas um aluno (o único branco e de classe média) sabia o que era. Ao ver esse filme, principalmente essa cena, torna-se inevitável não pensar em algumas palavras de Bourdieu, mais precisamente nas que definem o que seja capital cultural:

conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de interreconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis
(Bourdieu, 1998, p. 28)
.

De acordo com o que foi dito, para Bourdieu, é a família que realiza os investimentos educativos que transmitem para a criança um determinado quantum de capital cultural durante seu processo de socialização, que inclui saberes, valores, práticas, expectativas quanto ao futuro profissional e a atitude da família em relação à escola. Bourdieu observa também que o grau de investimento na carreira escolar está vinculado ao retorno provável que se pode obter com o título escolar, não apenas no mercado de trabalho, mas também nos diferentes mercados simbólicos, como o matrimonial, por exemplo.

Referencias bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
Escritores da liberdade (Freedom Writers), de Richard LaGravenese.
ENGUITA, Mariano Fernández. “A face oculta da escola”. Educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
MICELI, Sergio. Poder, Sexo e Letras na República Velha. São Paulo: Perspectiva, 1977.

Publicado em 13 de janeiro de 2009

Publicado em 13 de janeiro de 2009

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