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Carta a D. História de um amor

Ieda Magri

Escritora; doutoranda em Literatura Brasileira pela UFRJ

Quando André Gorz deu a público sua Carta a D. História de um amor, não deu apenas um livro a seus leitores, mas um ato, uma ação física, um gesto que é percebido como tal por quem lê esse livro sensível e arrebatador.

Teórico da Revolução nas décadas de 1960 e 70, depois lembrado como mentor da Ecologia Política, André Gorz foi jornalista e filósofo, tendo oito livros lançados no Brasil. Seus textos versam sobre teoria social e política contemporânea, mas essa história de um amor anunciada no título não está destoando de sua postura política: quando militou pela ecologia, buscava fazer o planeta “ficar mais agradável”; quando disse sobre as estruturas sociais, defendia a autonomia do indivíduo. Durante toda a sua vida se empenhou em buscar soluções para a crise social, atento aos acontecimentos à sua volta tanto na esfera social como na privada. Acontecimentos vividos por ele e Dorine (a D. do título), sua mulher, influenciaram pensamentos, tomadas de posições, engajamentos políticos, novas percepções do mundo. È o que ficamos sabendo pelas páginas de Carta a D.

Quando o escritor é diferente do homem que escreve? Até onde o homem público e o indivíduo são separáveis? Lendo a relação de André e Dorine, tateamos a carreira do jornalista que declara só ter sido quem foi pela relação que o casal estabeleceu na feitura do trabalho diário. Enquanto André Gorz cuidava do resumo da imprensa estrangeira no vespertino Paris-Presse, em que precisava examinar por volta de 40 jornais por dia, era Dorine quem fazia seleção, recortava e classificava as matérias. Embora ele fosse o contratado, eram os dois os jornalistas responsáveis. Ele fala que seu trabalho só foi o que foi pela parceria dos dois. Nessa época, depois do expediente, entre 22h e 3h da manhã, ele escrevia seu Taître. Só depois das 3h Dorine o chamava pra dormir. Ela sabia que havia se casado com um escritor. E dizia: “Amar um escritor é amar que ele escreva”.

Dorine teve papel fundamental na vida do escritor, pois, ele a sentia como se sua vocação fosse confortá-lo na dele. E na vida do homem foi a mulher que ele amou, a única que foi capaz de amar. André Gorz dedica várias páginas sobre esse sentimento, a princípio estranho. Uma passagem me parece uma confissão: “Tive muitas dificuldades com o amor (ao qual Sartre dedicou umas 30 páginas em O ser e o nada), pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras”. O escritor não foi buscar na experiência que o homem vivia naquele momento as respostas à pergunta o que é o amor. Pois o amor era percebido a princípio como algo banal demais para que pudesse buscar nele, na vivência de um amor silencioso, tranquilo, matéria de investigações filosóficas ou literárias. O amor era uma fraqueza para o escritor que escrevia sobre política e economia, apoiado em estatísticas, em documentos comprobatórios tão distantes do afeto ou da intuição. “Estar completamente apaixonado pela primeira vez, ser amado de volta, era aparentemente banal demais e privado demais, comum demais: não era uma matéria apropriada para me fazer atingir o universal. Um amor naufragado, impossível isso sim, ao contrário, rende a nobre literatura”.

Foi preciso que o escritor amadurecesse para que pudesse liberar o homem para o amor. Encontrar um lugar, aceitar a existência, era pesado demais e era justamente a matéria que impulsionava o homem em direção à escrita. E, como diz ele, se o principal objetivo do escritor não é o que ele escreve, mas sua necessidade primeira de escrever, a matéria de sua escrita vai se elaborando no escrever, no viver e perceber a sua existência e a dos outros. Desse modo, a partilha dos temas e da vida, as escolhas individuais e coletivas permitem escrever, tornam-se as elaborações literárias, filosóficas, intelectuais que se tornarão o escrito propriamente dito.

O pacto de amor entre André Gorz e Dorine redimensionou a vida íntima e a vida intelectual do escritor, e esse ato uma vez praticado continuou reverberando e conduziu toda a vida futura. É esta a declaração mais bonita de André Gorz a Dorine: “você deu tudo de si para me ajudar a me tornar eu mesmo”.

Carta a D. História de um amor foi escrito entre março e junho de 2006 e publicado na França no mesmo ano. No Brasil, foi preparado em novembro de 2007, apenas dois meses depois do suicídio de André e Dorine, recebido como um ato de amor anunciado no livro. Foi publicado pelas editoras Annablume e CosacNaify no início deste ano.

Publicado em 16 de junho de 2009

Publicado em 16 de junho de 2009

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