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Vira e mexe: Os peixes do Mercado 45
Cláudia Sampaio e Joana Araújo
O sanfoneiro faz a contagem: 1,2,3... a noite sombreiro do dia está apenas começando. A luz amarela envolve o salão e aos poucos os casais vão se formando. Na beira da pista brilham os peixinhos vestidos de chita, suspensos por fios de náilon na parte onde o pé direito não é tão alto quanto no restante do salão. As cores das chitas também alegram a entrada, cobrindo o biombo que separa o espaço interno dos paralelepípedos da rua lateral àquela que foi a primeira do Rio de Janeiro, a Rua Direita (atual Primeiro de Março). No burburinho da entrada, curiosos espiam por sobre o biombo a quantas anda o movimento no salão. Enquanto isso, distraídos observam a dança poética dos peixes voadores.
Nas paredes de pedra descansam os estandartes que no carnaval desfilam pela Praça XV durante a saída do Cordão do Boitatá: Hermeto Pascoal, Dorival Caymmi, Bob Marley, Sivuca. Estão lá como se estivessem assistindo e aprovando o movimento do casarão de número 45 da Rua do Mercado – um dos pontos onde hoje a cultura pulsa forte na cidade.
“Se o Sivuca fosse vivo ele não ia sair daqui, ia vir toda semana. Isto aqui é tudo que ele sempre quis.” A revelação do baixista Ivan Machado, que tocou com Sivuca e hoje é um dos integrantes do VIRIMEXE, foi feita ao acordeonista Kiko Horta ao final de uma das apresentações do forró que há mais de um ano anima as noites de quinta no casarão. Dominguinhos, Gonzagão e Sivuca estão no repertório, mas o encontro idealizado por Kiko amplia o horizonte do xote e do baião. Sabendo da importância do estudo e do improviso na formação de um músico, Kiko faz questão de manter o espaço do VIRIMEXE como lugar de experimentação: “Porque na verdade a gente está fazendo uma coisa que esses caras plantaram. Sivuca viajou o Brasil inteiro tocando música instrumental, tinha música cantada porque precisava também, mas essa sementinha está lá”. O VIRIMEXE é formado por Cachaça, no Bandolim e guitarra; Ivan Machado, no Baixo; Bruno Abreu, na percussao; Rodrigo Scofield, na bateria; Luiz Flavio Alcofra, no violão e Paty Oliveira e Marcelo Mimoso, na voz.
Os improvisos e as canjas dos amigos, que certamente encantariam o mestre Sivuca, fazem de certas noites verdadeiras jam sessions. Em algumas noites durante a pesquisa para este texto, estiveram presentes, além dos músicos fixos do grupo, o violinista Gabriel Improta, o gaitista Gabriel Grossi e o flautista Alexandre Maionese, todos fazendo pequenas participações, as disputadas canjas. “É um forró jazzístico”, resume o ator Leo Carnevale, frequentador e participante do movimento cultural da CASA – sigla da cooperativa de artistas que ocupa o local desde 2002.
Teatro e música são as principais vertentes. Teatro de Anônimo, Cordão do Boitatá, Grupo Pedras, Leões de Circo, As Três Marias, Circo Dux, Etc. e tal e Mundo ao contrário são os grupos que atualmente participam da cooperativa.
Kiko Horta é um dos fundadores do Cordão do Boitatá, que começou em 1996 como um espaço experimental na PUC-Rio, com um núcleo de cerca de 15 pessoas de diferentes áreas (não apenas músicos) interessadas em mergulhar no universo das festas: Carnaval, pastoril, São João... Hoje o Boitatá é célebre pelos bailes de domingo de Carnaval que nos últimos anos vêm lotando a Praça XV.
Como as boas histórias de vida em que os fios se entrelaçam e os encontros vão reinventando novas estruturas, a criação desse espaço cultural é atravessada pela história individual de cada um dos participantes dos grupos.
Nesse entrelaçar de histórias, chegamos ao encontro que aconteceu numa tarde de sábado do mês de maio entre os sanfoneiros Kiko Horta e Joana Araújo. Com a disponibilidade dos que de fato desejam investir na partilha, Kiko nos recebeu na casa de sua avó, em Botafogo, palco de inúmeras festas da família, entre pastoril, São João e Santo Antônio. No grande salão em frente ao piano, e em meio à correria das crianças, ele contou sua história à pesquisadora Joana Araújo. Musicista pela UNIRIO, ela vem estudando, para sua dissertação de mestrado, os lugares sociais e simbólicos que a sanfona ocupa neste momento. “Esse instrumento conheceu épocas de prestígio e de desprestígio na música popular e agora desperta o interesse de jovens que, curiosamente, não são descendentes de migrantes nem de sanfoneiros”. Kiko Horta, que desde pequeno estudou piano, fala sobre o preconceito que sofreu quando se decidiu pela sanfona: “O pessoal brincava, me chamava de ‘Kikinho da sanfona’ e dizia ‘você vai tocar esse nstrumento? Isso e coisa de paraíba!’”.
Segundo Kiko, as facilidades dos dias atuais acabam por favorecer o processo de aprendizagem do músico iniciante: “Quando eu comecei a tocar, por exemplo, era tudo vinil. Hoje em dia, se o cara resolve tocar sanfona o panorama é completamente diferente. Quando eu comecei a tocar, eu não tinha um lugar onde pudesse ver ninguém tocando. Dominguinhos raramente tocava por aqui. Sivuca, muito menos. Então era gravação. Hoje em dia você baixa, no Youtube, vídeos de Dominguinhos, Sivuca e outras pessoas tocando. E se o cara de repente está aqui na cidade, ele pode ir lá na Rua do Mercado, pegar um forró daquele jeito, com aquele formato, com uma banda tocando. Para chegar naquele formato ali, foi muito tempo destilando”.
São vários os eventos que acontecem na Rua do Mercado, 45. Em outubro do ano passado, aconteceu o II Encontro João Antônio no Rio de Janeiro, organizado pela escritora Ieda Magri. Em novembro, a banda Songoro Cosongo fez um show em frente à CASA numa tarde ensolarada de sábado. Maio deste ano foi a vez da homenagem a Sivuca, em que Kiko Horta e o também acordeonista Marcelo Caldi apresentaram um passeio musical pela história de um dos maiores sanfoneiros deste país, mediado pela socióloga Flávia Oliveira Barreto, filha de Sivuca. Outro evento acontecido em maio foi um cabaré organizado pelos atores dos Filhotes de Leões, uma dissidência dos Leões de circo, que animou a sexta-feira, 15. A intenção era arrecadar verba para a compra do figurino da peça O califa da Rua do Sabão, de Artur Azevedo, que estreará em breve com direção de Sidnei Cruz. À frente da CASA desde sua criação, Sidnei contou, durante o cabaré, que o movimento de teatro começou com a Cia. Leões de Circo, com uma peça estrelada por Julio Adrião, que em 2005 recebeu o prêmio Shell de melhor ator pelo monólogo A descoberta das Américas. “Em 2001, encenamos Ruzante; começávamos no Arco do Teles e seguíamos com o público pela Rua do Mercado; as pessoas então se sentavam em caixotes na rua, em frente ao número 45”. Sidnei conta também sobre a inusitada polenta que era oferecida ao público durante o espetáculo.
Um dos projetos desenvolvidos pela CASA é o Circuito Cultural Mercado do Peixe, que aconteceu nos últimos dois anos com o apoio da Unesco.
Todo esse movimento, criado pela disposição de cada um desses artistas e que ganha ainda mais colorido por acontecer em pleno centro histórico do Rio de Janeiro, é uma mostra do potencial que a arte tem de reinventar estruturas e criar novos acordos.
O VIRIMEXE começa mesmo é pelas beiradas, no calor da luz amarela e no brilho dos peixes que bailam no ar, “teus amigos agora são aves!”. E assim vão se formando as parcerias, tecendo-se os encontros que criam a cultura e escrevem a História.
Veja algumas músicas do evento
Publicado em 16/06/09
Publicado em 16 de junho de 2009
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