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Amargo da memória

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas


"Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus” W. Benjamin.

Em 1999 tive oportunidade de viajar à cidade de Heraclion, em Creta, para conhecer as ruínas do Palácio de Knossos. Era época da guerra do Kossovo e a Europa estava meio agitada com a movimentação de tropas da OTAN. Em Veneza, o que mais se via eram soldados de vários paises da aliança do Atlântico Norte e, de vez em quando, os voos tinham de ser retidos nos aeroportos por causa da movimentação de aviões de combate. Enquanto andávamos por um imenso sítio arqueológico com inúmeras áreas ainda em processo de escavação, ouvi um comentário curioso por parte de um conterrâneo que estava no grupo. O sujeito era de São Paulo e, a certa altura, enquanto passávamos próximo do labirinto do rei Minos ele disse: “Porra! Não é possível que eu paguei essa grana toda para vir aqui ver um monte de pedra!”.

Olhar para o passado é um exercício que requer uma certa dose de atenção e paciência. Na verdade é necessário um certo treinamento para observar, em meio aos resíduos da história, os sinais e as lições do tempo. Walter Benjamin alertava, de modo extremamente lúcido, para o fato de que o passado só se apresenta a nós em forma de ruína, de fragmento. Ele vai ser sempre incompleto e truncado. Sempre vão existir lacunas a serem preenchidas. A figura basilar desse tipo de interpretação era o Ângelus Novus, uma gravura que impressionou Benjamin. Um anjo com as asas empurradas por um intenso vento, que não conseguia vencer o fluxo que o arrastava inexoravelmente a um lugar desconhecido. O anjo era levado por esse fluxo e contemplava com horror e espanto o que havia deixado para trás. A simbologia parece ser clara. O vento é o fluxo do tempo que nos carrega rumo ao futuro, ao desconhecido. Não há como bloquear esse fluxo. Não há como escapar do vendaval da história. Nós somos como o Ângelus Novus, de costas para o porvir, contemplando as ruínas de nossa história.

Quando o Fantástico mostrou documentos que supostamente trariam revelações sobre o período da ditadura militar queimados num lixão próximo de uma base área em Salvador, imediatamente me lembrei da figura descrita por Benjamin. No Brasil, a apreensão do passado é um exercício quase sobre-humano. Basta perguntar a qualquer pessoa que trabalhe num arquivo público ou em um instituto histórico para perceber o tipo de descaso com que as autoridades lidam com as ruínas da história que ainda insistem em se manter em nosso agora. No caso de Salvador, parece que não se está diante de um simples descuido, mas realmente de má-fé. O interesse de esconder informações sobre o regime de 1964 parece estar intimamente ligado ao sabor amargo que a memória geralmente deixa em nossa alma. Nem sempre lembrar é um exercício prazeroso; nem sempre preservar os fragmentos do passado é lucrativo para alguns setores.

Unindo-se essa dose escatológica de má-fé com um descaso natural que temos em relação aos pedaços do grande quebra-cabeça que é o passado, acabamos por nos defrontar com uma situação extremamente curiosa. De um lado, estamos ainda sendo arrastados pelo fluxo da história rumo às sombras do futuro, ao passo que, por outro lado, parece que nos recusamos a contemplar os restos de nosso passado, por medo, culpa ou vergonha. A grande questão que se apresenta à sociedade brasileira é saber até que ponto estaremos aptos para entender os mecanismos que nos definiram enquanto povo. O problema agora é saber se os esforços daqueles que querem preencher as lacunas do passado vão neutralizar a velocidade daqueles que querem aumentá-las.

Essa não deveria ser uma discussão apenas entre “interessados” (carrascos e vitimas do regime de 1964). Afinal, tentar evitar que as ruínas da história se desfaçam no picador de papel de nossa própria negligência deveria ser uma tarefa de cada brasileiro.

Publicado em 23 de junho de 2009.

Publicado em 23 de junho de 2009

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