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Construindo História para toda a vida

Cristiane da Silva Brandão

Todo o futuro é a criação que se faz pela transformação do presente.

Paulo Freire

“Construindo história para toda a vida” foi uma experiência realizada na Creche Municipal Sonho Feliz, situada em Campo Grande, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, em uma comunidade de baixa renda marcada pela violência e pela carência de serviços básicos, onde há um número relevante de famílias chefiadas por mulheres, de pessoas desempregadas e/ou de trabalhadores que tiram o seu sustento no mercado informal.

Talvez devido ao acúmulo de tarefas dos responsáveis pelas crianças de nossa creche, observamos que muitas delas sofriam, no seu cotidiano, algum tipo de violência moral, social ou psicológica. Alguns responsáveis tinham dificuldades em entender o real significado do centro de estudos dos profissionais da creche.

Acreditávamos que a grande maioria das crianças chegava à instituição cercada por um medo excessivo: medo das cantigas, medo das brincadeiras, medo dos personagens, medo das demais pessoas à sua volta... O choro era uma forma predominante de comunicação das crianças com os outros. Elas pareciam se sentir sufocadas em um mundo com pouco diálogo, pouca interação, em que era preciso buscar um novo caminho para sua história.
Como educadoras, nós nos questionamos: como fazer vir à tona a história tão significativa desse grupo de crianças e como contribuir para transformar essa história?

Após o levantamento e o registro das observações feitas, a equipe do berçário se reuniu para pensar e elaborar propostas que estivessem relacionadas ao projeto político-pedagógico, que propõe a interação da creche com a comunidade, a fim de gozar de uma vida com mais qualidade em todos os aspectos e enfatiza o direito de brincar das nossas crianças.

Dessa forma, traçamos os nossos objetivos:

  • Construir paulatinamente a identidade infantil enfatizando aprendizagens significativas, além de desenvolver/explorar, no dia a dia, a oralidade.
  • Identificar e reconhecer os indivíduos de sua convivência através de uma relação prazerosa, buscando perceber as necessidades e os interesses das crianças, familiarizando-se com a imagem do próprio corpo e do outro.
  • Expressar diferentes sensações e ritmos corporais (com gestos, posturas, atitudes, linguagem oral...), socializando-se.
  • Envolver os membros da família nas diversas atividades desenvolvidas na instituição, valorizando o desenvolvimento e a aprendizagem da criança.

Notamos que o tom (oralidade) e o toque (contato físico) deveriam trazer um diferencial nesse momento. Adotamos diariamente, sem nunca esquecer o espaço privilegiado da rodinha, a “terapia do toque” para uma maior aproximação das crianças entre elas e com as educadoras. Adotamos o conto e “reconto de histórias”. Depois da contação de histórias, os pequeninos tinham a oportunidade de manusear e até brincar com alguns livros; aí contavam ao pé do ouvido do colega os segredos daquela aventura.

As crianças passaram a realizar atividades variadas diante do espelho, experimentando o grande prazer de descobrir a si próprio e ao outro à sua volta: almoçando, dançando, brincando, dramatizando, recontando a história...

Algumas letras de músicas eram transformadas, como Eu sou o lobo bom e Não atirei o pau no gato. As brincadeiras de faz-de-conta ganhavam nova significação, trazendo elementos da vivência das crianças. Com as brincadeiras de esconde-esconde, o lobo (brinquedo trazido por uma das crianças) passou a exercer um papel de destaque no espaço da creche.

Pensamos, então, em estabelecer essa troca: a criança traz, de forma positiva, elementos do seu cotidiano e leva para casa a experiência vivida em sala, interagindo, desse modo, com os demais membros da família e trazendo-os para o seu processo de aprendizagem.
Todo final de semana (ou seja, na sexta-feira), uma ou mais crianças deveriam levar alguma das atividades coletivas realizada pela turma no decorrer do mês. Essa foi uma estratégia utilizada a fim de desenvolver a oralidade da criança. Ela ficava muito feliz em poder contar e mostrar o que foi produzido coletivamente, dizendo qual foi a sua participação, fazendo com que os responsáveis tivessem outro olhar para a produção e o desenvolvimento de seu filho.

Sempre que possível, registrávamos cada pequena ação e produção para também compartilhar com os pais.

Percebemos ainda, no desenrolar da experiência, que as crianças passaram a trazer mais novidades durante a rodinha. Pensamos ser muito proveitoso poder transformar um pouco dessas vivências em uma história; assim, imaginamos que o personagem deveria ter um pouquinho de cada criança e expressar a conquista da coletividade. Daí surgiu o nosso “Amigo Lobo”. As crianças pintaram, colaram, amassaram, recortaram, enfim pintaram o sete, o que resultou na confecção do livro Cadê nosso amigo Lobo. Depois de “editado” (pronto), toda a turminha pôde explorar o resultado de seu trabalho e compartilhá-lo com as demais crianças da creche.

Todo esse encanto mostrou que o potencial daquelas crianças é muito maior do que podíamos imaginar e que as aprendizagens significativas estavam ajudando na construção de uma história de sucesso; então não paramos por aí. Planejamos uma dramatização (com a participação das crianças na eleição dos personagens) da Linda Rosa Juvenil, que encerrou com final feliz mais um capítulo da história construída pela turma do Berçário II.
A atuação, a caracterização e o prazer daquele momento mágico mostraram o quanto aquelas crianças haviam superado limites. Elas tinham o orgulho de socializar e contar aos outros a felicidade de viver sem medo tal fantasia.

Os resultados dessa experiência foram surpreendentes. Cada criança foi se desenvolvendo de acordo com o seu nível etário e social, aceitando a convivência com outras pessoas e profissionais da creche, além de expressar sua necessidade ou sensação através da oralidade – ao invés do choro, simplesmente.

A inclusão do outro se fez presente em diferentes circunstâncias, resgatando a socialização dos elementos presentes na creche, e a troca estabelecida com a família foi fundamental para o resgate da autoestima e do trabalho realizado na instituição. Alguns responsáveis se fizeram mais presentes, participando inclusive de atividades em sala com as crianças. Era difícil acreditar que era a mesma turminha... Trata-se de um Berçário II que entrou para a história de toda a comunidade escolar.

A Multirio tomou conhecimento de nossa experiência e entrevistou alguns responsáveis, resultando na publicação do artigo “Pelas lentes de uma criança”, da revista Nós da Escola, número 46, de 2007.

É preciso incluir todos nesse processo e fazer com que a criança se perceba como personagem principal, interativo, na construção de sua história de vida e de sua identidade.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente. Brasília, 1990.
BRASIL. MEC/SEF. Referencial curricular nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1987.
LUNA, Cristina. Lobo Guará. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996.
MARQUES, Cristina. Coleção Clássicos de ouro. Brasileitura.
ROSA, Sônia. Cadê Clarisse? São Paulo: Difusão Cultural, 2001.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO. Temas em debate. Rio de Janeiro: Multieducação, 2006.
SISTO, Celso. Contar histórias: Da oficina à sinfonia. In: Leitura e oralidade (Oficina realizada em Seminário promovido pelo Proler, Vitória da Conquista, 1992).
Revistas Nós da Escola. Rio de Janeiro: Multirio/SME, 2006.
CD As mais belas cantigas de roda (coleção). Ciranda Cultural.

Publicado em 30 de junho de 2009

Publicado em 30 de junho de 2009

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