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Crônica sobre algumas pessoas loucas
Ana Lucia Pinto de Almeida
(aquelas que, antes do almoço, ainda estudam Marx neste mundo)
Ao professor Avelino Oliveira
A aula hoje foi excelente, o professor estava alegre e motivado. Brincou sendo sério, falando de coisas essenciais para a vida. Como é bom, por algum tempo, sentir estar nadando em águas conhecidas; sensação de conforto e paridade.
A teoria elaborada por Marx ainda faz sentido.
Será? Ou será somente erscheinen?
Após a aula, o frio da rua, congelante. Caminhar assim, exposta, vivifica. O frio leva a pensar, é o retorno à condição de nefelibata.
Temperar o feijão, antes passar no supermercado. Super mercado... Marx teria pensado esse fenômeno contemporâneo? Óbvio que não. Como poderia? Filósofos não são adivinhos, por mais que aparentem. A aparência não é o real.
O real é o absurdo e o frio. Ou o frio absurdo que temos hoje.
Frio de gelar a alma.
Ainda assim remete a Marx e à lenda do sobretudo, será verdade o que reza a lenda? Será que quando um deles saía, na fria Londres, o outro tinha de ficar em casa? Será esse um dos motivos de Marx ser tão humano? Sentir na própria pele, manter-se próximo do próximo, ser solidário, compartilhar da necessidade do outro, seriam os motivos que colocam junto a Marx a ternura e o calor?
Qual é o verbo para solidariedade? Ele o conjugou todinho.
Esclareceu, denunciou. Renunciou a uma vida diferente, menos difícil, para ter voz. Para produzir. E distribuiu entre todos aquilo que pensou, de modo que a cada um coubesse uma parte e ninguém fosse excluído. Em troca recebeu apoio material, afetivo, intelectual. E precisava. Talvez porque fosse consumido pela responsabilidade da denúncia, que o fazia voltar a produzir, sem desistir, sem se entregar. Tudo entrelaçado, não vale uma denúncia aparente, é preciso examinar o todo, analisá-lo. Parte a parte, um grande quebra-cabeça a ser montado: o mundo e suas relações. Várias cabeças dedicam-se a essa montagem, infelizmente ainda nos faltam peças. Ou cabeças.
As crianças esperando, já é tarde. Quase meio-dia.
Corre-corre, todos com pressa para fugir do frio. O mesmo frio que um dia, em nosso passado remoto como humanidade, nos juntou em torno da fogueira – ou acolhidos e encolhidos uns nos outros dentro da caverna –, hoje nos distancia.
Todos esperam o ônibus para partir, cada um ao seu destino, cada um com seu cada um.
Ilhas humanas.
O frio sempre nos recorda das necessidades verdadeiras, básicas. Alimentação, proteção, luta contra a natureza (chata essa tal natureza que tenta, constantemente, mostrar que manda), abrigo...
E o super mercado?
Imagine pensar um mercado gigantesco, um grande mercado mundial. Hoje somos, antes não.
Imagine pensar que um dia existiria um lugar onde se reuniriam vários produtos, de diversos modos de produção, quase nunca com valor de troca justo, cuja distribuição é abundante, onde a economia é, em sua aparência, linear. Encontramos em qualquer lugar.
Em sua erscheinnungsform, o supermercado é o paraíso. Em seu modo de aparecer não há exclusão... então por que o velhinho sujo e com frio fica do lado de fora? Por que a criança estende a mão querendo algo? Coisa ridícula! Parece até aquela adivinhação infantil: por que a galinha atravessou a rua? Para chegar ao outro lado, ora!
Porque eles estão ali, o super mercado é tão ???! democrático? Estão ali para entrar. Entrar e consumir. Consumir com o que lhes consome: a fome.
(Parênteses:
Poema-código
(José de Arimatéia)
Mundo | |
Homem | |
Fome | |
Fome | |
Fome |
Morte
(Fecha Parênteses.)
Por que o velhinho e a criança não fazem como eu: vão estudar Marx para entender, ficar por dentro.
Pertenço a uma ilha: ilha mestrado. No imenso mar da cidade, onde cada um pertence a uma ilha, esta é a minha. Nesta ilha todos são loucos. Doidos de pedra. Quase como o Hegel fora da casinha, achando que o pensamento é o real...
Motivo? Quer motivo mais válido do que estudar Marx em pleno capitalismo selvagem e globalizado? Estudar para quê? O que eu quero entender? Está tudo aí. A contradição entre o carrinho cheio de mercadorias (que não é meu) e os que nada têm (onde também não estou). E o mundo? O mundo continua aí, concreto, caótico, não seria real? O velho não é real? A criança não é real? Sim, pois segundo aquilo que aprendi hoje são determinações do concreto, são seres que determinam o meu mundo. Mas o mundo, enquanto caos, não é real.
O nosso mundo.
Suas histórias, quando se entrelaçam à minha, produzem relações e com essas relações, analisadas e sintetizadas sem deixar nada perdido, conhecemos/compreendemos. Dialeticamente. Sempre dialeticamente, levados que somos pelo materialismo histórico e dialético.
Sempre dialeticamente.
As crianças... o feijão... o resto do almoço ainda por fazer...
O frio dilacera.
Tudo se perde...
Quer algo mais concreto do que o cotidiano com consciência?
Se o que nos consome fosse apenas fome, bastaria o pão...
Seria tão mais simples.
Publicado em 30 de junho de 2009
Publicado em 30 de junho de 2009
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