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Eu hei-de amar uma pedra
Ieda Magri
doutoranda em Literatura Brasileira pela (UFRJ) e autora de Tinha uma coisa aqui
António Lobo Antunes, em Eu hei-de amar uma pedra, radicaliza sua forma esquizofrênica de escrita dando voz a múltiplos narradores que se revezam ao contar ao leitor os lampejos de uma história de amor – e muitas de rancor – entre um homem e uma mulher maduros que se encontram semanalmente numa hospedaria barata em Lisboa.
Se digo lampejos é porque, ao contrário do que possa parecer aos que não leram Lobo Antunes ainda, Eu hei-de amar uma pedra não é a história desse amor apenas. Esse escritor português, desafeto de Saramago, não investe em enredos, em clímax, no desenrolar de uma história bem contada no intuito de fisgar o leitor. Em seus livros – e neste de forma mais radical – são convocados os fantasmas de narradores diversos e o fio da história é a eles entregue para que, aparentemente, apenas sintam e lembrem. A voz feminina sempre está em destaque, como, por exemplo, em Exortação aos crocodilos, em que quatro mulheres nos colocam a par do que se passa dentro delas para também nos envolver com a história de Portugal, com a Guerra de Angola, com um grupo de homens terroristas, seus maridos, com o câncer de uma delas, com a mudez, enfim, com toda dor latente nas salas de conversas bem arrumadas. Em Eu hei-de amar uma pedra essa atmosfera não é diferente. O que se intensifica é o ritmo da passagem do microfone entre os narradores – digamos assim, embora as personagens de Lobo Antunes falem bem baixinho, quase um murmúrio, quase uma fala sem mover os lábios. É como se o Pimpolho, sua mulher, suas duas filhas, o marido da mais nova, o amor de infância recuperado por acaso depois do casamento, o primo ido embora, o pai esperado, a mãe que não se sabe onde e ainda uma outra mulher muito misteriosa, uma narradora especial, meio autora, meio Ariadne na distribuição de seus fios, estivessem todos na mesma sala evocando suas lembranças e reconstruindo para si mesmos os acontecimentos passados. A sala, no caso, sendo o livro, porque essas personagens não têm mais vontade de conversar entre si, de chegar a qualquer entendimento, apesar de toda dor, solidão e culpa.
Apesar da organização formal do livro, como que a indicar ao leitor o que se passa na superfície do que é contado e o lugar que ocupam os narradores no tempo presente, o tempo da partida que leva ao tempo psicológico mais profundo, localizado no passado, as vozes estão embaralhadas e a cada capítulo que começa o primeiro desafio é saber quem fala. Para complicar, e penso também que para exigir que se desligue um pouco o comportamento detetivesco do leitor, Lobo Antunes coloca na mesma página pessoas diferentes fazendo parte do mesmo acontecimento e expondo seus pontos de vista no envolvimento com aquelas vivências. Dessa forma, o leitor é chamado a prestar atenção, a se entregar mesmo, à linguagem cuidadosamente elaborada de Lobo Antunes. Lançando mão de um ritmo e mesmo de elementos gráficos que se assemelham à forma poética, a grande personagem de António Lobo Antunes é a linguagem: o fluxo dos discursos e a natureza sensível das palavras. Os diversos narradores se pegam a desconfiar das lembranças, como se a memória falhasse, mas também se pegam às voltas com os sentidos das palavras e seus usos, isto implicando, e muito, com o desenrolar da história que se vai fazendo, numa afirmação de autonomia de cada personagem na forma de contar que não pode ser estendida à forma de sentir cujo determinante se localiza no passado e, portanto, não pode ser mudado.
Ao ler Eu hei-de amar uma pedra, participamos fortemente de uma verdade, aquela que envolve o passado dos diversos narradores; mas essa verdade é relativizada a cada momento por aquela narradora que chamei de especial e que, encontrando-se num asilo, já velhinha, dá voz à enfermeira que nos abre os olhos: “Nessa idade inventam tudo, não ligues”. Vemos as personagens se construindo, se mostrando a nós com toda sua complexidade de gentes acrescidas ainda da complexidade da ficção, como em: “O essencial de minha natureza, hão-de comprová-lo no livro quando a estima que entre nós vai crescendo”. E o essencial é visível apenas como sensação, não é feito de matéria palpável, assim como o livro, que se define muito mais que pelo enredo, pelo papel e suas 558 páginas. Depois de lido, Eu hei-de amar uma pedra vai sempre existir mesmo se queimado, fisicamente perdido sem remédio, porque sem começo e sem final. As personagens, mesmo quando optam por sair de cena, continuam ali como lembrança, como algo construído uma vez e condenado a habitar o mundo ou a página à revelia de seu autor, que faz questão de participar, ele mesmo: “(ou sou eu que imagino ou o António Lobo Antunes julgando que devo imaginar a fim de que o romance melhore)” ou seu duplo, mostrando o embate entre criador e personagem:
“não, enganei-me, isto não comigo, com a da arvéloa e da praia, a que me ordenou
– Tu é que fechas o livro a que manda na gente ou a quem mandaram que mandasse na gente, um fulano que não conheço a desesperar-se connosco, a alterar, a trocar-nos
(–Não é assim que gaita)
a voltar ao princípio, o fulano que decidiu não há muito, acho eu
– És tu que fechas o livro e embora arrependido de eu a fechar o livro continua por teimosia a escrever,”
Eu hei-de amar uma pedra foi lançado em Portugal em 2004 e ganhou edição brasileira em 2007, quando da vinda de António Lobo Antunes ao Brasil. Portanto, tá fresquinho ainda nas livrarias.
Publicado em 30 de junho de 2009
Publicado em 30 de junho de 2009
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