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Uma nova estética da imagem, segundo Soulages

Gordeeff

Em 17 de junho, aconteceu na UFRJ – mais precisamente na Escola de Belas Artes – uma palestra com o professor, pesquisador e escritor François Soulages, da Université Paris 8 / Institut National d’Histoire de l’Art, dentro do colóquio sobre Cooperação universitária e cultural entre o Brasil e a França: a experiência de Paris 8, um dos eventos do Ano da França no Brasil. Soulages, profundo pensador sobre a imagem, abordou o assunto sob a ótica filosófica, com o tema: “Por uma nova estética da imagem“. Aqui estão algumas anotações que fiz.

Em tempos de profundas mudanças de formas e meios de linguagem, em que a velocidade da vida pós-moderna acaba retirando de nós os momentos de contemplação, um momento de inércia física mas de retirada de antolhos é sempre positiva. Não somente para ouvir alguém mais sábio, mas para despertar do estado de estúpido torpor com o qual o cotidiano nos cerca. Além do mais, mesmo para indivíduos que não tenham a “imagem” como material, área de trabalho ou assunto de interesse, o “pensar sobre” é uma atitude necessária, já que estimula o senso de observação e análise sobre os inúmeros bombardeios de informação visual de que somos vítimas incessantemente – visores de celular, internet, displays de caixa eletrônicos, outdoors, revistas, TV, cinema etc. Para compreender melhor a complexidade do assunto, faz-se necessária, primeiramente, uma rápida abordagem histórica.

Até o final do século XIX, as únicas formas de representação visuais eram as artes: o desenho, a pintura, a gravura e a escultura. Exceto no caso da arte da gravura – cujo objeto artístico na verdade é a pedra, a madeira ou a chapa metálica entalhada (a matriz) – tudo era único: um quadro, um desenho, uma estátua. As cópias, se houvesse, seriam feitas à mão, gerando na verdade outros originais ou falsificações.

Com o advento da fotografia, a possibilidade de registro do instante para a posteridade – o instantâneo –, revolucionou as artes e o processo de comunicação. Não fazia mais sentido a pintura “copiar” o real – uma das suas principais funções era o retrato –, já que a máquina fotografia fazia isso melhor e mais rápido. A pintura então se libertou, encontrando sua real identidade e proporcionando o período de maior efervescência de estilos da História da Arte – Expressionismo, Impressionismo, Cubismo, Fauvismo, Construtivismo, Abstracionismo, Dadaísmo... só pra citar os mais importantes. Há então uma quebra de paradigma: o tecnicismo e a habilidade do pintor em representar o real numa tela deixou de ser o mais importante na arte de pintar. A capacidade de “criar” passou a ser o objetivo, o considerado “artístico”. Mesmo que essa criação tenha como referência o real (como no quadro Noite estrelada, de Van Gogh) ou imagens e fantasias internas do artista, como nas obras surrealistas. A “necessidade” de manter uma igualdade visual entre a imagem material real (o que é visto no mundo) e a imagem pintada na tela foi quebrada.

A fotografia, por sua vez, passou a ser utilizada também como elemento de pesquisa, de registro jornalístico e de propaganda. Esse período coincidiu com o desenvolvimento da indústria gráfica e da impressão colorida, e por conseqüência, com a produção de um maior número de cartazes, revistas e jornais em circulação.

Há, portanto, o surgimento de outros tipos de imagens e de utilização delas, em que a ideia da imagem única é perdida: não existe mais somente uma imagem (original), mas várias imagens dessa imagem (as reproduções), o que alavanca definitivamente a chamada indústria cultural: todos “podem ter” a Monalisa num cartão postal.

Completando o boom cultural do início do século XX, despontou uma nova indústria: a cinematográfica. Agora, além das imagens estáticas, também temos as imagens em movimento, abrindo um mar de possibilidades estéticas que, poucas décadas depois, desaguariam em telas bem menores nos lares das famílias: a televisão.

Pronto. Está completo o quadro da pós-modernidade e da sociedade de consumo que tão bem sabe lidar e reproduzir as diversas imagens, a fim de seduzir e vender a “imagem” de uma vida ideal, de ideal de vida, de felicidade, de satisfação, de homem/mulher, de carro etc.

Quando tudo já está suficientemente confuso – mas com pesquisadores, estetas e filósofos já conhecedores dos efeitos das imagens circulantes –, eis que surge o computador. Objeto de uso industrial ou de pesquisa, rapidamente evolui para os personal computers. Os PC, mais os avanços computacionais em todas as áreas, seguidos da expansão da rede de conexão de comunicação entre as universidades – o que resultou na internet, a grande rede mundial (World Wide Web: www) –, nos arrastou para um mundo totalmente novo e desconhecido em termos de “imagens”.

As imagens hoje podem ser produzidas no computador, totalmente digitais, por pontinhos coloridos (os pixels), linhas e pontos (cálculos matemáticos que formam imagens vetoriais), ou podem ser originadas de imagens fotográficas – digitalizadas ou obtidas através das máquinas fotográficas digitais – e serem alteradas digitalmente, podendo até perder totalmente o referencial com a imagem original.

Na verdade tem-se um novo original a cada versão modificada e salva em um arquivo de imagem. Essa imagem, por sua vez, pode ser postada em algum blog e distribuída na web indiscriminadamente – e isso pode ser feito por qualquer um que tenha acesso a essa tecnologia. E pode-se ter várias impressões dessa imagem; todas são originais e nenhuma o é (!). Quando a imagem é originária de uma imagem real – imagem fotográfica – pode perder o vínculo com a realidade, como é o caso das fotos tratadas das modelos para capas e miolos de revistas masculinas. Sem falar da publicidade que cria universos virtuais 3D (em três dimensões – com altura, largura e profundidade) sedutores, cheios de sensações audiovisuais procurando desesperadamente a identificação com os anseios e o universo imagético de seu público-alvo, mas com o simples propósito de vender bala ou refrigerante.

O mundo digital, com as facilidades técnicas dos programas de manipulação de imagens, funciona como fábricas de ilusão, e pode enganar também não somente a informação visual (o modelo tem olho azul ou não?), mas também quanto à qualidade, quanto ao valor artístico de um trabalho – se é realmente um trabalho artístico ou somente uma série de aplicações de filtros e efeitos que podem ser feitos por qualquer indivíduo e não um artista.

Para François Soulages, a “Alegoria da Caverna” de Aristóteles continua atual. Mas do que nunca a imagem é ponto de interrogação.

Voltando à pintura: quando temos um quadro de uma flor, temos a imagem de uma flor e a flor. Mas não somente isso. Temos a imagem do quadro, o claro/escuro, a textura da pintura e a flor (em botão, viçosa ou murcha). Todo o conjunto da composição da imagem “nos fala” não somente sobre a flor, mas sobre a imagem como um todo.

E ainda há o contexto histórico-social em que foi pintado o quadro. Dependendo dessas variantes, o quadro pode ser uma crítica, uma declaração de amor, uma ironia... Ele é resultado material de outra imagem, a imagem mental formada pelo artista que pintou o quadro. Essa imagem mental, por sua vez é resultado de imagens do mundo real memorizadas pelo pintor. É, então, o resultado de suas lembranças visuais. Recordemos o famoso caso de uma tribo isolada da África que não identificou a garrafa de Coca-Cola como sendo uma garrafa, e da Coca-cola, pois nunca havia visto uma.

Tudo é imagem: o pensamento, a memória, as lembranças, o mundo real. O real e o irreal. Ou melhor: o material e o não material – quem diz que nossas lembranças não são reais?... Se não o são, então não são lembranças, são fantasias – mas estas também são imagens. Lembre que fantasia é algo que esconde, mascara, não nos deixando ver completamente. É a ilusão.

Mas como é possível imaginar, pensar sem a criação de imagens mentais? Não é. Mas essas imagens mentais, mesmo sendo baseadas em imagens do mundo real, material, são somente parte dessas imagens. Elas são incompletas, pois não as apreendemos totalmente, assim como não temos uma imagem completa de nós mesmos, mesmo quando nos vemos no espelho. Neste, aliás, vemos o reflexo de nossa imagem, e por isso invertida...  E é justamente nessa parte não conhecida das imagens que devemos nos ater, segundo Soulages. Esse mesmo raciocínio se aplica aos outros tipos de imagens, inclusive as digitais, pois, na realidade, não importa muito se uma imagem é real ou virtual. O que importa é como ela é feita e em que meio ela está.

Nessa dúbia natureza da imagem – é real e irreal, material e mental, “analógica” e virtual, é e não é ao mesmo tempo –, é possível encontrar uma nova estética da imagem. Uma estética que possa ser aplicada a todos os tipos de imagens, desde as pré-históricas até às imagens digitais. Ainda segundo Soulages: “estamos num momento-chave da História das Artes e das artes da imagem. Passamos de lugar fechado e de uma imagem fechada em si mesma a um universo infinito, uma imagem que pode ser explorada e modificada ao infinito”.

Nós estamos no “olho do furacão”, vivendo uma revolução das artes, das imagens e dos meios de comunicação. E, em consequência disso, não há uma definição de caminho ou de ideal estético na atualidade. É um momento totalmente novo onde visualmente. Praticamente tudo é possível. Em sua exposição, o pesquisador ressalta que é preciso partir do triplo conhecimento da tecnologia, das Artes e da Filosofia para uma nova estética da imagem. A pesquisa estética deve se ater aos diferentes modos de imagens, diferentes imagens, diferentes abordagens, apoiando-se não somente na teoria mas também no sensível da imagem, para compreender como uma imagem (seja ela estática ou em movimento, material ou virtual) pode emocionar o olhar.

Publicado em 14/07/2009

Publicado em 14 de julho de 2009

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