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Discutir o ensino de graduação com um olhar inovador
Manuella Soares
Uma estrutura muito homogênea. Quando criados, nos anos 1960, nas diversas instituições públicas de ensino superior, os institutos de ciências biomédicas, ou de biomedicina, se estruturaram a partir de um modelo importado da França, proposto por Claude Bernard em Introdução à Medicina Experimental. Esse modelo determina que os cursos das ciências biológicas devem, necessariamente, ser divididos em quatro setores: Anatomia ou Morfologia, Fisiologia, Farmacologia Terapêutica e Patologia.
Para o diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Lent, a reforma universitária de 1968 teve o mérito de acabar com o sistema de cátedra e os professores universitários passaram a se organizar em departamentos com direções acadêmicas eleitas entre seus membros. Já a padronização dos cursos foi o lado negativo desta organização departamental, segundo o professor: “até pouco tempo, as organizações desses institutos universitários eram muito semelhantes e muito conservadoras, remontando ao século XIX”.
Este modelo clássico de organização reflete-se, segundo Roberto Lent, no ensino de graduação das universidades brasileiras, que vem sendo questionado por educadores de diversas áreas. “Estamos tentando superar essa herança secular de organização nos nossos cursos de pós-graduação em ciências biomédicas, mas ela ainda não foi superada nas nossas graduações. Todas as faculdades profissionais exigem as disciplinas de anatomia, histologia, farmacologia, citologia e bioquímica. Não há variedade ou experimentação”, diz o professor.
Com a expectativa de iniciar um debate sobre novas formas de educação em nível superior nas ciências biomédicas, a direção do ICB/UFRJ, que neste 2009 comemora 40 anos de fundação, convidou a pesquisadora em educação superior da USP, professora Eunice Durham, para a conferência Para onde vamos no ensino de graduação?.
O seminário foi realizado no início do mês de junho, no Centro de Ciências da Saúde, no campus do Fundão. “Queremos com este debate experimentar, tentar soluções novas, mais ousadas, na organização das nossas disciplinas de graduação. Dar mais liberdade aos professores, mais liberdade aos alunos para escolherem um perfil profissional, entre outras possibilidades”, afirmou Lent.
Universidades são responsáveis pelo tradicionalismo nas formas de aprendizagem
Antropóloga, ex-secretária de educação do governo Fernando Henrique Cardoso e atual pró-reitora de pesquisa da Universidade Estadual de São Paulo, a professora Eunice Durham diz que o que mais a impressiona em termos de ensino de graduação no Brasil é o enorme tradicionalismo e as mentes fechadas para novas formas de aprendizagem. Para ela, a universidade é, em grande parte, responsável por este tradicionalismo.
“Quem pensa educação superior no Brasil, é o pessoal das universidades públicas, com uma ideia absolutamente fechada sobre a formação.” Eunice reconhece que este pensamento vem se alterando nos últimos anos, mas considera que há ainda muita dificuldade por parte das universidades, em especial das públicas, em abandonar a produção de pesquisa como referência ou algo de maior valor entre as suas atividades, especialmente em relação ao ensino voltado para a profissionalização superior. “Há uma ideia, que foi transformada em mito na reforma universitária de 1968, de que o ensino superior que vale alguma coisa é aquele dado em universidades que reúnem a pesquisa, o ensino e a extensão.”
A professora criticou fortemente a visão de um ensino superior pautado pela produção de pesquisa básica, segundo ela, uma tradição das instituições brasileiras. “Ficamos com uma mentalidade de que a função dos professores das instituições públicas na graduação é formar os futuros pesquisadores.” Enquanto isso, segundo a professora, as faculdades e instituições particulares de ensino superior não produzem pesquisa, mas se apresentam para a sociedade como se o fizessem em seus cursos.
Eunice Durham também já fez parte do Conselho Nacional de Educação e diz ter recebido várias propostas de cursos de faculdades particulares de Administração ou Direito, por exemplo, com a disciplina ‘metodologia de pesquisa’ em suas grades curriculares. “São cursos de contabilidade, por exemplo, dados no interior do Brasil, que têm metodologia de pesquisa no currículo obrigatório.”
Modelo brasileiro segue padrão internacional, mas não atende demanda interna
A visão de universidade a partir das instituições que fazem pesquisa é uma visão própria de um tipo de instituição de ensino superior que é hoje uma preocupação no mundo inteiro – a chamada universidade de nível internacional – que é, segundo a professora, o modelo perseguido pelas universidades públicas brasileiras há décadas. “As nossas universidades públicas estão à frente da pesquisa e conseguem conversar com o mundo, estão em rede, vão aos congressos internacionais e fazem bem este papel.”
Mas, para Eunice Durham, a universidade pública brasileira, apesar de toda sua excelência, não tem sido um bom lugar para se pensar novas propostas de ensino de graduação. “Como ela (universidade) tem um outro papel, que é legítimo, ela fica só pensando na perspectiva de levar o aluno à pós-graduação e à pesquisa. Os sociólogos estão preparados para formar sociólogos; os cientistas políticos, cientistas; e nem mesmo uma carreira aplicada, como o cientista social, é pensada.”
Para a pesquisadora da USP, nesse contexto, as ideias de ciclo básico nas universidades, para todas as carreiras, se tornariam inviáveis. “Não sei se podemos ter ciclos básicos para todas as carreiras, a não ser um para cada dois ou três cursos de uma mesma área, como está sendo feito na UFRJ.” Eunice fez referência ao bacharelado interdisciplinar do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza da Federal. Oferecido a partir do vestibular de 2009, o Bacharelado em Ciências Matemáticas e da Natureza tem um mesmo ciclo básico para estudantes que poderão seguir para cursos específicos das áreas de química, física e matemática, após cursarem os quatro primeiros semestres do novo curso.
Apenas 16% dos jovens brasileiros estão no ensino superior
Na conferência, Eunice Durham apresentou alguns dados sobre o ensino superior no país. A faixa bruta de escolarização, ou número de pessoas matriculadas no ensino superior em relação à população de 18 a 24 anos, revela que o país melhorou nos últimos anos. “Mas temos uma porção de gente fora dessa faixa etária. O que dá para ver é que estamos crescendo, mudamos de 2,3 milhões para 4,6 milhões de matrículas. Isso significa que em sete anos dobramos o número de matriculados no ensino superior. É um esforço gigantesco que precisa ser levado em consideração”, diz a professora.
O Brasil está em 16% de taxa bruta da população de 18 a 24 anos matriculada no Ensino Superior (público e privado). No estado de São Paulo, segundo a professora, essa taxa está perto de 25% da população entre 18 e 24 anos matriculada em algum curso de ensino superior público ou privado. Desde 2006, no entanto, há um decréscimo deste crescimento no estado. “Notamos claramente nas estatísticas do ensino superior no estado de São Paulo um decréscimo no crescimento das matrículas, o que demonstra uma tendência de estagnação da expansão que já atinge os demais estados.”
Democratização depende de fim do analfabetismo funcional
De posse dos dados apresentados pela última avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Alunos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Eunice comparou o Brasil a países desenvolvidos ou em desenvolvimento, como a Finlândia e a República da Coréia. Nestes dois países, mais da metade dos graduados não são formados em universidades, mas em centros tecnológicos ou em institutos e faculdades isoladas.
“Não dá para termos um sistema democrático desenvolvido para todos, num país de dimensões continentais como o Brasil”, diz Eunice. “A Finlândia tem um índice de desenvolvimento humano fantástico, não há miséria, uma divisão de classes sociais muito próximas e um maravilhoso sistema de ensino básico.”
Para a pesquisadora, não adiantam projetos de democratização da educação pública somente a partir das universidades. “Isso não vai ser possível, enquanto a população pobre no Brasil for tão grande. Essa população toda, apesar das exceções, não chega à universidade e fica excluída de uma formação superior. A grande população que vive de salário mínimo não chega sequer ao ensino médio. Quando falamos em atingir 50%, não vai haver 50% de egressos do ensino médio para serem absorvidos pela universidade tradicional. O ensino médio também se encontra em processo de estagnação e está perdendo percentual de crescimento das matrículas deste nível educacional”, relatou.
Eunice reconhece o crescimento até 2003, de 3,8 milhões para 9,1 milhões de matrículas no ensino médio. Mas considera que esta população não tem condições efetivas de cursar uma formação superior nas universidades. “Temos que pensar, então, quem pode entrar na universidade e qual é o grau de exclusão que fica nos níveis anteriores. E qual inclusão é possível? É preciso resolver o problema da universalização do ensino médio para alterar a baixa taxa de matrículas no ensino superior entre a juventude.”
Crítica ao aumento de oferta nas faculdades e instituições particulares
Em 1965, 56,2% das instituições de ensino superior eram públicas e 48,8% eram privadas. Quarenta anos depois, em 2005, os dados mostram o que Eunice chama de distorção do sistema: as unidades particulares passaram a somar 73% do total das instituições de ensino superior. “As vagas de vestibular das instituições públicas somadas aos vestibulares das instituições particulares e aos concluintes do ensino médio mostram que há mais vagas do que concluinte. Qual é na verdade o público ao qual vamos atender?”, questiona.
Houve, de acordo com os dados apresentados, uma expansão exagerada do setor privado que têm atualmente vagas para 0,6 alunos concluintes do ensino médio, por ano. No ensino público, acontece o inverso: há um aumento do número de candidatos por vaga, até 2008, de 6,5 para 8,2. “Por isso o Prouni (Programa universidade para todos) foi eficaz. Salvou da bancarrota várias instituições particulares que estavam para fechar as portas e, ao mesmo tempo, digamos, atendeu a uma camada da população que quer uma formação superior, mas não tem a preparação básica para ingressar em uma universidade pública com suas exigências de ensino e pesquisa”, analisa.
Cotas não seriam solução
Para a professora, políticas de compensação como cotas étnicas e, até mesmo, as de renda também não resolvem a alta demanda por formação superior no Brasil. “Porque a política de cotas não se trata de aumento de vagas, mas de substituição de população. Não há inclusão se não há aumento de gente dentro do ensino superior.”
Para quem pensa nas cotas apenas para alunos oriundos do ensino médio das escolas públicas, a professora alerta para o dado relativo aos candidatos da faixa de renda familiar de um a meio salário mínimo: somente 64 mil estudantes entraram no ensino superior em 2006, em todo o país e, destes, 53% cursaram escola privada no ensino médio. “É uma população que faz um enorme sacrifício para manter seus filhos numa escola particular. Então, me preocupa o fato de, em vez de botarmos o bônus das cotas para a renda, darmos este bônus para o ensino médio exclusivamente público. Isso gera outra distorção. Exatamente a população mais pobre, que faz um enorme esforço, fica excluída deste ensino superior.”
Analfabetismo funcional é barreira para a graduação
Outro problema estrutural do ensino superior no Brasil, segundo Eunice Durham, é a formação precária dos estudantes que saem do ensino médio para se candidatar a uma graduação. A avaliação internacional do PISA mostra que países como a Coréia tem 1,4% alunos no nível 1 do índice de capacidade de leitura . No Brasil, a situação se inverte e 28% da população estudante da educação básica está abaixo do nível 1 do PISA.
No primeiro nível da comparação entre países, se enquadram o percentual também assustador de 27,6% dos jovens brasileiros. Isso significa que mais da metade dos brasileiros até 15 anos que estão na escola se encontram abaixo ou no primeiro nível elementar de aprendizagem do PISA, o que demonstra um altíssimo nível do chamado ‘analfabetismo funcional’. “Mais da metade dos jovens de 15 anos sequer dominam a capacidade mais básica de leitura e escrita e as operações fundamentais de adição e subtração matemáticas”, revela.
Cultura do analfabetismo
Para a antropóloga, há um problema de elitismo cultural envolvido nesta questão. “Há uma imensa tradição de analfabetismo no Brasil e há uma população cujos pais são muito pouco escolarizados e uma escola que não sabe trabalhar com estes alunos.” Para Eunice Durham, é preciso pensar os três níveis de ensino: superior, fundamental e médio, conjuntamente, ou vamos continuar na política do ‘faz de conta’: “faz de conta que somos democráticos, faz de conta que abrimos as portas das universidades para todos, mas, na verdade, todo mundo está fora”.
Outra crítica da professora ao sistema privado altamente inchado é a falta de seletividade já que, como sobram vagas, todos entram sem serem preenchidos requisitos básicos de formação fundamental e média. Os cursos privados também costumam ser, na avaliação da professora, muito pouco exigentes. Ao contrário dos programas das universidades públicas que, por sua vez, investem apenas nos cursos de excelência para formação de pesquisadores em nível internacional, o que também não abriria espaço para a recepção da massa de estudantes oriundos das diversas classes sociais, especialmente as menos favorecidas.
Diversificação como saída
A professora alerta, no entanto, que estes cursos de formação profissional ofertados pelas instituições particulares acabam sendo mais democráticos para a real demanda da população. “Mesmo se conseguirmos botar todas as universidades públicas no padrão das melhores, como a UFRJ, UFMG e as estaduais paulistas, por exemplo, deixaremos de fora, por falta de formação básica, uma enorme parcela da população.”
Para a professora, o estudante médio brasileiro não recebe o conteúdo e o preparo intelectual exigido pelas universidades acadêmicas. “Não é que este aluno seja menos inteligente ou não seja capaz, mas ele não sabe aquele tipo de conhecimento que a universidade valoriza. Ele pode aprender muitas coisas, mas o nosso tipo de curso não tem sido adequado à maioria da nossa população que busca na formação superior uma determinada qualificação para ocupar postos de trabalho em diversas áreas.”
Eunice propõe uma diversificação nos cursos de formação superior públicos no Brasil que não se limitem ao modelo de universidade de pesquisa. “Parte da população tem um desempenho acadêmico de nível médio muito baixo e deve receber um tipo de formação diferente que o ensino público precisa oferecer.”
Na Europa, segundo a professora, o sistema de educação superior se diversificou e os países investiram pesado na formação tecnológica de seus jovens. “Criaram cursos tecnológicos tão bons que hoje alguns são melhores que muitas instituições de pesquisa”, brinca.
Como alternativas de diversificação do ensino superior público, a professora sugere a criação de cursos pós-secundários profissionalizantes e formação sequencial e continuada. Para ela, é necessário o investimento público em formação superior diversificada para esta população heterogênea representada desde o estudante ‘ideal’ – cuja formação média foi concluída até os 18 anos em nível de qualidade para ingressar em uma universidade de pesquisa – até os alunos oriundos das mais diferentes classes e formações, jovens ou trabalhadores adultos, que precisam ou querem uma formação superior profissional e não acadêmica.
Publicado em 4 de agosto de 2009
Publicado em 04 de agosto de 2009
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