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Amor supremo amor

Pablo Capistrano

Em 1957, quando ainda tocava com o quinteto de Miles Davis, John Coltrane teve um despertar espiritual. Reza a lenda que, durante uma apresentação, em meio a um solo de sax, Coltrane teve uma visão e parou de tocar. Congelou diante do vazio e não conseguiu voltar à apresentação. Após essa experiência, abandonou a heroína, formou seu próprio quarteto de jazz com McCoy Tyner no piano, Jimmy Garrison no baixo e Elvin Jones tocando bateria. Em 1964, mais precisamente no dia 9 de dezembro, em um estúdio de Nova Jersey, um Coltrane renascido, junto com seu quarteto, produziu uma das peças musicais mais espantosas do século XX.

A Love Supreme nem de longe se parece com um desses discos gospels que povoam as prateleiras eletrônicas das lojas evangélicas na Internet. Se Coltrane não tivesse escrito um longo texto, contando a história de seu despertar e explicando as quatro partes de seu disco como uma tentativa de dizer “obrigado, Deus”, provavelmente ninguém iria reconhecer ali uma peça de arte sacra.

Não sei se você gosta de jazz; eu particularmente demorei a gostar. Das coleções de discos de vinil que meus pais tinham em nossa casa no bairro do Mirassol, na Zona Sul de Natal, lembro que os discos de jazz permaneciam intocados. Eu só ouvia música erudita, MPB, alguma coisa de música do tempo das cruzadas (minha predileta na infância) e o bom e velho roquenrol, mas quando o negócio era jazz eu pulava. Não conseguia entender aquele tipo de música, e só depois de velho é que tive a chance de abrir meus ouvidos para o imenso universo estético dessa experiência radicalmente moderna, talvez a mais importante contribuição dos Estados Unidos para a cultura humana. Mas o que há de tão especial em A Love Supreme? Geralmente o jazz trabalha em um sistema de bases rítmicas, harmonias complexas e solos. O que acontece é que a bateria, o baixo e o piano se acalmam quando o sax ou o trompete aparecem, e esse mesmo sax e esse mesmo trompete educadamente silenciam quando o piano resolve voltar para improvisar um tema. O jazz é uma conversa de instrumentos em que cada um, democraticamente, tem sua oportunidade de se manifestar. Mesmo nas orquestras de jazz, como na de Benny Goodman ou na de Duke Ellington, esse preceito democrático é sempre respeitado.

Mas algo diferente ocorre em A Love Supreme. Em alguns momentos, no meio da improvisação, em duas ou mais seqüências simultâneas de melodias diferentes tocadas pelo piano e acompanhadas pelo baixo ou pela bateria, algo acontece. O sax de Coltrane surge enchendo o ambiente com uma tessitura sonora que não se curva, que não se divide, que não se contém. Os instrumentos não silenciam em A Love Supreme. Baixo, bateria, piano e sax falam ao mesmo tempo línguas diferentes, criando, em um mesmo instante de música, o igual e o diverso, o uno e o múltiplo, o muito e o um, como se melodias díspares pudessem, de modo misterioso, construir uma indestrutível harmonia.

O que o quarteto de Coltrane fez naquele dia 9 de dezembro de 1964 foi oferecer, em forma de música, não um simples canto de amor ou agradecimento a Deus por algum beneficio obtido. Coltrane não entende que Deus seja um corretor de imóveis ou um vendedor de carros, para sair por aí agradecendo a Ele porque conseguiu comprar uma Pajero nova ou completar o financiamento de um apartamento de dois quartos. Isso acontece porque não há linguagem verbal que possa reter a experiência mística. Não há doutrina escrita, palavra instituída, forma verbal nem gênero de escritura que retenha a sensação de ter presenciado o sagrado em seu próprio corpo, em sua própria mente. É por isso que os velhos sábios do budismo zen afirmavam: “não tente deter o espírito, mas deixe tudo tal como é... as coisas apresentar-se-ão como vêm e desapareceram como vão. Eventualmente o espírito claro e vazio acabará por se manter durante muito tempo”.

Coltrane oferece uma visão de Deus em forma de música, e nessa visão, misteriosamente, a tradição de um Deus único se mistura com a ideia de multiplicidade. No som de Coltrane, Deus é um e é muitos. O grande espanto de sua visão reside no estranhamento diante de um dado: como é possível que, de partes tão distintas, de melodias tão diferentes, de formas tão heterogêneas, possa surgir tão espantosa harmonia? O amor que Coltrane transformou em música no seu disco mais aclamado é um amor diverso daquele que nos acostumamos a ver nas telenovelas. Não é um amor de desejo nem um amor de vontade. Não é aquele amor que adoece a alma dos jovens, criando uma dependência química da presença do outro tão intensa e doentia que acaba transformando o amor, com o tempo, em solidão e angústia.

O amor, supremo amor, de Coltrane é a expressão de uma experiência de totalidade e de integração. A música que emerge desse amor é uma música absoluta, completa e plena, que preenche todo o espaço sem ser sólida, que invade o ambiente sem feri-lo. Uma música inexpugnável, sendo leve; densa, sendo solta; ampla, sendo extremamente exata. Esse é o amor que demora em sua rapidez, que une quando divide e que preenche justamente quando nos deixa vazios. Talvez eu esteja ficando velho ou louco, obcecado por anjos e por sonhos estranhos infestados de sinais, mas o fato é que às vezes eu penso que as lições sobre Deus que eu tive ouvindo Coltrane ultrapassaram em muito a leitura de todos esses livros que guardo nessa biblioteca empoeirada que eu trago na cabeça.

Publicado em 27/01/09

Publicado em 27 de janeiro de 2009

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