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Por que ler Os sertões?
Cláudia Dias Sampaio
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... havia três meses(Os sertões – A terra, p. 55).
Talvez seja por trechos como este que a obra de Euclides da Cunha resista há mais de cem anos como uma das mais célebres da literatura brasileira. A poesia dos momentos que escapam ao privilégio dado pelo autor ao discurso científico e do modo como ele tratara a questão étnica (“o mestiço é um retrógrado ou um degenerado”) desponta como possibilidade de outras leituras dessa obra que se configurou como uma das seminais para pensarmos nosso país.
Grande parte dos leitores parece ter feito vista grossa para a situação embaraçosa em que Euclides se colocou ao importar as teorias da Europa (como a evolucionista) sem questioná-la e pensá-la para o caso brasileiro. Afinal, como conceber que, sendo o mestiço o cerne da nossa nacionalidade, este seria um “retrógrado ou um degenerado”? Qual pensador europeu desenvolveria um pensamento desse sobre sua própria cultura?
Ao invés de questionar, muitos preferiram justificar o positivismo de Euclides como fruto do ambiente intelectual do XIX e, pinçando frases de antologia como “o sertanejo é antes de tudo um forte”, obliteraram o equívoco do autor. Contudo, se nos dispusermos a pensar além desses limites, talvez encontremos nessas “ilhas”, como a da epígrafe, matéria para leituras renovadas. Note que o trecho encontra-se justamente em um das partes menos queridas da obra, “A terra”, que, por seu conteúdo exaustivamente descritivo, em que o autor desfia seus conhecimentos geológicos e geográficos, é tida como mero protocolo para chegar às outras duas partes: “O homem” e “A luta”.
A história da guerra de Canudos (1896-1897) narrada por Euclides da Cunha em Os sertões é matéria de inúmeros estudos e polêmicas. Entre os críticos que se dedicaram à obra estão José Veríssimo, Silvio Romero, Araripe Júnior, Roquette Pinto, Walnice Nogueira Galvão (autora de uma ótima edição crítica de Os sertões) e Luiz Costa Lima, que propôs outra via para a dupla inscrição entre o discurso científico e o literário, a partir justamente dessas “ilhas” em que o texto resiste à intenção do autor, a que chamou “terra ignota”.
Também foi Costa Lima quem chamou a atenção para os riscos de uma leitura que, ao invés de questionar, consentisse com os filões centrais de Os sertões, insistindo nas ideias da disseminação da imagem romântica de um povo nacional, na manutenção do privilégio do discurso científico evolucionista e no descrédito da ficção como possibilidade discursiva para pensar a sociedade humana. Entretanto, o crítico não deixa de louvar a obra como fundadora de nossa cultura e lembra a atitude corajosa, “quase uma loucura”, de Euclides de levar adiante a realização do livro, em tempos em que não havia financiamento para produção cultural e muito menos as condições de pesquisa que conhecemos hoje.
Euclides foi para a Guerra de Canudos como correspondente de O Estado de S. Paulo e de lá começou a escrever as anotações que resultariam em Os sertões. Teve morte trágica: foi assassinado pelo tenente Dilermando de Assis, amante de sua esposa, Ana. A história foi tema de inúmeras páginas em jornais e revistas e em 1990 foi adaptada para a televisão, na minissérie Desejo, de Glória Perez, exibida pela TV Globo. Os manuscritos do processo criminal foram reunidos pela pesquisadora Walnice Nogueira Galvão no livro Crônicas de uma tragédia inesquecível (2007).
O trágico acontecimento completará cem anos em agosto próximo; portanto, 2009 será lembrado como o centenário da morte de Euclides da Cunha, e diversos eventos deverão ser organizados para lembrar a data. Uma boa ocasião para incrementar as leituras da polêmica obra-mestra de Euclides da Cunha.
No rastro das polêmicas está a montagem que Zé Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, fez em 2007, numa turnê que incluiu as cidades vizinhas a Canudos e o próprio arraial que tornou Antônio Conselheiro figura ilustre na História do Brasil. Outro que se voltou para a obra foi o cineasta Sérgio Rezende, que adaptou o texto para o cinema, no filme Guerra de Canudos (2007). E Monte Santo, palco central da batalha de Canudos, foi o lugar escolhido por Glauber Rocha para as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).
O sertão nordestino é tema de inegável valor para a produção cultural brasileira; a ele dedicaram-se Glauber Rocha, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e tantos outros artistas que, mesmo com as distâncias e aproximações, dialogaram com a obra-mestra de Euclides da Cunha, o que já seria motivo suficiente para responder à questão-título deste texto.
Referências
Cunha, Euclides da. Os sertões.São Paulo: Editora Três, 1973 (publicado pela primeira vez em 1902).
Lima, Luiz Costa. Terra ignota. A construção de Os sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
Os sertões (texto na íntegra)
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/sertoes.html
Os sertões: ciência ou literatura
http://www.lacua.au.dk/index.jps/publikationer/dl2/4-costalima.pdf
2009 vai celebrar a obra de Euclides da Cunha
http://tribunadonorte.com.br/noticias/97171.html
Ficha técnica do livro:
- Título: Os sertões
- Autor: Euclides da Cunha
- Gênero: Romance
Publicado em 27/01/09
Publicado em 27 de janeiro de 2009
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