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Bliss
Cláudia Sampaio
Assim como saudade, para a qual não há tradução exata em outro idioma, bliss é uma palavra da língua inglesa cujas traduções mais próximas para o português seriam: êxtase, felicidade absoluta, euforia. Mas nenhuma delas expressa a profusão de nuances da palavra original. Uma das possibilidades de conhecer as múltiplas tonalidades de bliss é ler Felicidade e outros contos, de Katherine Mansfield. Os oito contos magistrais que compõem o livro apresentam um sentimento distante do happy end em que todos são felizes para sempre; a felicidade aqui acontece em lampejos e carregada de uma densidade estranhamente familiar que a torna “quase insuportável”.
É assim o estado de Bertha, protagonista do conto que dá título ao livro:
O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta! — como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?
Felicidade de queimar o peito, por que conjugada a uma crueldade que também faz parte da vida? Eis uma das perguntas que o leitor se faz ao final de cada um dos contos. Nesse aspecto, “A pequena governanta” é emblemático: a jovem inglesa de “cabelos que lembram tangerinas” vive intensamente a experiência dessa conjugação em sua primeira viagem sozinha ao estrangeiro. Amedrontada, ainda mais pelo fato de ser noite, a pequena governanta recebe, antes do embarque, as recomendações da senhora da Agência de governantas:
Bem, eu sempre digo às minhas meninas que, no início, é melhor desconfiar das pessoas do que confiar nelas, e é mais seguro suspeitar de má intenção das pessoas do que esperar delas boas intenções... Parece uma atitude um tanto dura, mas somos mulheres com o pé no chão, não somos?
Mas o chão escapa quando a trama criada por Mansfield entra em funcionamento e o que se coloca são as contradições, inconstâncias e dores que constituem a vida de todos nós. Então onde estaria a tal felicidade do título? Na beleza da pereira de Bertha (“Felicidade”); nas carícias que Josephine recebe dos raios de sol enquanto ouve o realejo (“As filhas do coronel”); no sorvete de chocolate da pequena governanta e no canto triste do canário companheiro da moça solitária (“O canário”). Este foi o último conto escrito por Katherine e um dos mais comentados do livro, talvez porque sintetize as tantas nuances da palavra bliss:
Com o tempo as pessoas se recuperam de qualquer coisa. Dizem que eu sempre estou bem-disposta, e têm razão. Graças a Deus, estou.
... Contudo, sem ser mórbida e mexendo nas lembranças, devo confessar que vejo nisto alguma coisa de triste na vida. Não me refiro à tristeza que todos nós conhecemos, como a doença, a pobreza e a morte. Não, é algo diferente. É lá no fundo, bem no fundo, faz parte da gente, como a respiração. Por mais que trabalhe, por mais que me canse, basta parar para sentir que essa coisa está lá, esperando. Muitas vezes eu me pergunto se todo mundo sente do mesmo jeito. Nunca se pode saber. Mas não é extraordinário que dentro de seu canto alegre, doce, tudo o que eu ouvia era: tristeza? Ah, o que é isto?
As palavras de Katherine são um deleite para quem ama a literatura. Nascida na Nova Zelândia, em 1888, ela viveu grande parte da vida em Londres e escreveu durante os primeiros anos do século XX; além dos contos, cartas, relatos curtos e um diário onde conta passagens de uma vida conturbada e do sofrimento com a tuberculose que a matou aos 34 anos. Aclamada como uma das melhores escritoras da língua inglesa, comparada a Dickens e de quem Virgínia Woolf declarou que tinha ciúmes do que escrevia, a obra de Katherine continua a repercutir nas gerações posteriores.
No Brasil, a poeta Ana Cristina César, que traduziu para o português o conto Bliss, foi uma das que mais dialogou com seus textos. Em A teus pés, lemos: “Mas hoje estou doente de tanta estupidez, porque espero ardentemente que alguma coisa... divina aconteça”. E em Bliss, da personagem Bertha, Katherine escreve:
Quase não tinha coragem de olhar-se no espelho frio; mas olhou, e ele mostrou-lhe uma mulher radiante, com lábios trêmulos, sorridentes, grandes olhos escuros e um ar de quem está à espera de que alguma coisa... divina aconteça. Ela sabia que iria acontecer infalivelmente.
Na literatura de Katherine, repercute um sentido quase missionário do ato da escrita, daqueles que seguem confiantes de que algo divino acontecerá, inevitavelmente, conscientes de que “com o tempo as pessoas se recuperam de qualquer coisa”, afinal, há perdas, dores, mas também o azul dos dias de primavera. E se para senti-los em toda sua plenitude é preciso “ter os pés no chão” e lembrar que a vida é tudo isto, são os lampejos de felicidade, bliss, que estimulam nossos movimentos. E como não mergulhar de cabeça na vida se há a possibilidade de um instante como o de Edna("Um tanto infantil, mas muito natural"), no êxtase do primeiro amor em plena chegada da primavera?
“Parece até que engoli uma borboleta, que está batendo as asas exatamente aqui.”
- Leia aqui dois contos do livro: “Felicidade” (Bliss) e “O canário”
- Soneto de Vinícius de Moraes a Katherine Mansfield
- Ana Cristina César – a tradução como exercício de recriação
Ficha técnica do livro:
- Título: Felicidade e outros contos
- Autor: Katherine Mansfield
- Gênero: Contos
- Produção: Editora Revan
Publicado em 18/08/09
Publicado em 18 de agosto de 2009
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