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A ESCOLA ENQUANTO INSTITUIÇÃO DISCIPLINAR
Kelin Valeirão
Mestre em Educação, professora substituta da UFPel
Avelino da Rosa Oliveira
Doutor em educação, professor titular da UFPel
Na contemporaneidade, há, aparentemente, um consenso sobre a importância da educação e/ou da disciplina. Por outro lado, perguntamos: de que se constitui uma boa educação? Ou, ainda: o que é ser disciplinado? Na escola, são inúmeros os discursos em que permeiam questões relativas à indisciplina, sendo apontada por grande parte dos professores como uma das causas do baixo rendimento dos educandos. Sabe-se que esse tema ocupa lugar de destaque na lista de reclamações feitas pelas escolas às famílias dos educandos, e vice-versa. Educar seria disciplinar?
A escola, grande máquina de vigilância da modernidade, resulta de um longo processo histórico que a coloca como o lugar privilegiado, exclusivo e legitimado de saber. É o local onde, pelo ato de educar, os sujeitos são tirados de seu estado de “selvageria”. Aqui, não se objetiva concordar ou divergir da escola ou da forma como ela está posta, mas analisar a escola enquanto instituição disciplinar, através da diferenciação entre o exercício de violência e as relações de poder, principalmente quando surgem nos séculos XVII e XVIII as chamadas “disciplinas”, que tinham por objetivo tornar a criança um corpo dócil e útil ao corpo social, e a forma como essas disciplinas vêm sendo utilizadas no campo da Educação.
A escola, enquanto máquina de governamentalidade, constitui-se em um espaço de governo da alma dos sujeitos, operando a partir de sua subjetividade, fazendo uso do poder que a sustenta. As teorias psicológicas, fortemente presentes na escola, administram e governam a alma de forma aparentemente livre, mas que não a separa das mais profundas relações de poder.
Nota
Para Foucault, só há relações de poder enquanto ações sobre ações. Logo, para existirem relações de poder, há um pré-requisito: a liberdade. O poder só se exerce sobre sujeitos livres; caso contrário, seria obediência, e não relações de poder.
Dessa forma, a escola foi inventada para disciplinar e governar os sujeitos modernos, dispensando o uso da violência, valendo-se de métodos sutis de persuasão que agem de forma indireta sobre suas escolhas, seus desejos e sua conduta, deixando o sujeito “livre para escolher”, mesmo que constantemente envolvido por normas que o aprisionam à sua própria consciência. Assim:
a escola moderna é o locus em que se dá de forma mais coesa, mais profunda e mais duradoura a conexão entre poder e saber na Modernidade. [...] funcionando, assim, como uma máquina de governamentalização que consegue ser mais poderosa e ampla do que a prisão, o manicômio, o quartel, o hospital (Veiga-Neto, 2001, p. 109).
A construção da subjetividade operada na e pela instituição escola é um aspecto evidente porque a nossa identidade se constitui a partir dos processos culturais. Para Veiga-Neto (2006, p. 34) “a partir do século XVII a escola constituiu-se como a mais eficiente maquinaria encarregada de fabricar as subjetividades”, ao passo que hoje “boa parte da subjetividade operada na e pela escola [...] ou se deslocou para o espaço social mais amplo ou, mesmo ainda ocorrendo no espaço escolar, deixou de contar com aquele tipo de poder e aquelas práticas (como tecnologias) para a fabricação de sujeitos”.
Cabe salientar que “são as ‘práticas’ concebidas ao mesmo tempo como modo de agir e de pensar que dão a chave de inteligibilidade para a constituição correlativa do sujeito e do objeto” (Foucault, 2004, p. 238). Entre essas práticas, as que envolvem relações de poder, principalmente do poder disciplinar, são as cruciais para compreender como nos tornamos sujeitos.
Ao analisar a instituição escola numa perspectiva foucaultiana, consideramos importante salientar a diferenciação entre o exercício de violência e as relações de poder e ater-se a que tais modalidades sejam qualitativas e não quantitativas; uma relação de poder se diferencia do exercício de violência por usar de saberes, enquanto a segunda usa de agressão física, econômica etc. Ressaltamos:
Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro polo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis por ser exatamente uma relação de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual ela se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas; reações, efeitos, invenções possíveis (Foucault, 1995, p. 243).
Para Veiga-Neto (2006, p. 29), “o poder disciplinar faz de uma punição uma ação racional, calculada e, por isso, econômica; a violência faz de uma punição uma ação cuja racionalidade é de outra ordem e que, não raro, beira a irracionalidade”.
As instituições escolares enquanto práticas pedagógicas são da ordem da disciplina, do poder disciplinar, funcionando como “técnicas que constituem uma ‘profunda’ estratégia para dividir as pessoas em grupos disciplinados, individualizados, controláveis – como num desfile militar” (Rajchman, 1987, p. 63). Dessa forma, a escola age como dispositivo para dizer o que pode ser dito, feito ou pensado. Segundo Foucault, resulta também das disposições disciplinares que “o sujeito é dividido no seu interior e em relação aos outros” (Foucault, 1995, p. 231). Nesta perspectiva, o processo de disciplinarização transmitido pelas escolas objetiva “assegurar a ordenação das multiplicidades humanas” (Foucault, 1987, p. 181).
Foucault, no seu estudo genealógico, propõe a articulação entre o poder e o saber, em que as disciplinas estão ligadas aos regimes de verdade, ou seja, as disciplinas “não apenas engendram determinadas maneiras de perceber o mundo e de atuar sobre ele como também separam o que é (considerado) verdadeiro daquilo que não o é” (Veiga-Neto, 2006, p. 26). Cabe salientar que o efeito do poder disciplinar não é o de se apropriar violentamente de um corpo para dele extrair energia, afeto, submissão e trabalho, mas é, sim, o de adestrá-lo, tornando-o corpo dócil e útil para o corpo social.
Segundo Comenius, criador da Didática moderna e um dos maiores educadores do século XVII, “a todos aqueles que nasceram homens é necessária a educação, porque é necessário que sejam homens, não animais ferozes, nem animais brutos, nem troncos inertes” (Coménio, 1957, p. 125). A visão de educação trazida pela escola moderna – ensinar tudo a todos – entende que todo ser humano é capaz de ser educado, por isso a considera obrigatória. A perspectiva comeniana de educação não aceita que alguém não passe pelo processo de escolarização, uma vez que entende o ser humano como educável por natureza. Pensando na educabilidade humana, faz-se necessário instituir nesta escola pedagogias corretivas que deem conta daqueles “ineptos” que não se enquadram no padrão de normalização que ela impõe.
As pedagogias corretivas partem do princípio de que toda criança é um selvagem que precisa ser corrigido e docilizado; o bom selvagem é aquele que está apto a aprender, levando em conta sua natureza educável. A correção já não ocorre mais através da violência; torna-se indireta, deslocando-se para a organização do meio, já que prega uma ação educativa ativa e criativa, respeitando o desenvolvimento infantil, operando a partir da subjetividade. A regulação e o controle exercido por essa pedagogia tornam clara a tentativa de homogeneização das classes escolares, uma vez que através do próprio autogoverno os sujeitos passam a buscar o modelo de normalidade que devem atingir.
Locke, filósofo precursor do empirismo, viveu boa parte da sua vida durante o século XVII, quando houve grandes mudanças na mentalidade e nas relações sociais, principalmente na Inglaterra. Em 1693, é publicada a obra educacional Some Thoughts concerning Education (Alguns pensamentos acerca da Educação), em que a questão da disciplina é mais especificamente desenvolvida justamente para instruir a formação de boas maneiras para que, enquanto perdurar o período de transição da sociedade feudal à burguesia, a educação atue como um alicerce de sustentação do novo momento instaurador.
Locke afirma (2001, p. 170): “tenho certeza de que o homem que é capaz de ter em casa um tutor pode oferecer ao filho uma conduta mais polida, [...] com maior proficiência do que qualquer escola”. Cabe salientar que Locke não considera os educadores incapazes de instruir os filhos, mas, sim, acredita que as crianças necessitam de atenção constante e individual, o que, segundo o filósofo, se torna inviável devido ao grande número de discentes na escola.
Kant, pensador moderno do final do século XVIII, já afirmava que “a falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina” (Kant, 2002, p. 16) e acrescenta “as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranquilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado” (Kant, 2002, p. 13). Com essa fala, o filósofo deixa claro o objetivo da escola moderna: a disciplina. Ao associar escola à disciplina, Kant marca, de forma importante, o papel que o tempo e o espaço ocupam nesse processo. Aqui, não pretendo concordar com o filósofo ou dele divergir, mas apontar que talvez ele tenha sido o primeiro a abordar a escola moderna envolvida com o disciplinamento dos corpos infantis.
Nota
Na escola moderna, a disciplina é marcada através do tempo e do espaço, que são conceitos imbricados e servem como mecanismos que buscam controlar a vida dos indivíduos. Tempo e espaço se engendram determinando posições, legitimando saberes e produzindo os sujeitos modernos.
A escola, em sua constante busca pelo enquadramento dos sujeitos, normatiza o tempo, produzindo sujeitos autocontrolados. Ao normatizar o tempo, a escola passa a exigir que todos internalizem, apreendam esse tempo que serve como medida comum para todos, determinando a aprendizagem dos sujeitos e excluindo aqueles que não se enquadram nesse tempo. Responsabilizar os sujeitos pela sua adequação ao tempo escolar, pela sua aprendizagem, caracteriza-se como uma perversa estratégia da escola moderna para determinar aqueles que podem ou não ocupar o espaço escolar.
Foucault constata que a articulação entre poder e saber nos séculos XVII e XVIII permite um controle minucioso sobre os corpos dos indivíduos com o intuito de produzir corpos dóceis e úteis para o corpo social. Nesta perspectiva, a escola passa a ser um ambiente de dominação e controle, uma estratégia para documentar individualidades. É sabido que, anteriormente a esse período, já existiam diversos processos disciplinares; porém, nessa fase específica, as disciplinas atuaram como verdadeiras estratégias de dominação.
Forma-se toda uma anatomia política sobre o corpo, uma análise minuciosa que estuda as formas, as estruturas e as relações desse corpo-objeto que atua como um mecanismo de poder; esta, porém, não ocorre de maneira inesperada. Há muito tempo que essa anatomia do corpo encontra-se em funcionamento nas mais diversas instituições disciplinares como, por exemplo, nas escolas militares, nos conventos, nos asilos etc.
Ao investigar minuciosamente os regulamentos das instituições disciplinares, Foucault atenta para o controle das minúcias que levará a todo um conjunto de informações e relações de poder e saber, donde, sem dúvida, constituiu-se o homem moderno. A escola faz parte de uma rede produtiva que age sobre o corpo social, não somente enquanto poder repressivo, mas principalmente como um dispositivo de produção de subjetividade que diz respeito ao contexto disciplinar que ocorre tanto na sala de aula como para além dela, afetando o processo de constituição do próprio sujeito.
Para melhor compreensão do que vem a ser o poder disciplinar, é crucial fazer uma alusão ao panopticon, de Jeremy Bentham, editado no final do século XVIII, que propõe um tipo de disciplinarização através de um consenso na construção arquitetônica das instituições disciplinares. Segundo Foucault, bastaria colocar um vigia na torre e em cada cela trancar um indivíduo (um aluno, um delinquente, um louco...) para que o panopticon pudesse substituir as masmorras. Dessa forma,
o princípio é: na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro (Foucault, 1982, p. 210).
Bentham, com sua estrutura arquitetônica, resolve não somente a questão física das instituições como a escola, mas acaba de criar uma tecnologia da vigilância, em que os indivíduos são mantidos sob um olhar permanente. Fazendo analogia com a instituição escolar, significa registrar, observar e anotar tudo sobre a vida escolar dos educandos através de mecanismos específicos, como, por exemplo, avaliações individuais. Dessa forma, não é preciso obrigar o aluno a ser aplicado, pois ele sabe que está sendo vigiado. A disciplina, então, surge como uma estratégia para distribuir os indivíduos no espaço, mas, para isso, é crucial ater-se a algumas técnicas, como a clausura, o quadriculamento, as localizações funcionais, a fila etc.
Foucault, ao se referir à disciplinarização através da estrutura arquitetônica, dirá que “cada aluno devia dispor de uma cela envidraçada onde ele podia ser visto durante a noite sem ter nenhum contato com seus colegas, nem mesmo com os empregados” (Foucault, 1982, p. 210). Porém, somente a clausura não era suficiente para os aparelhos ou instituições disciplinares; o quadriculamento surge, então, da busca de poder vigiar o comportamento de cada indivíduo, saindo da análise coletiva, pluralista. O importante era documentar individualidades. Nessa perspectiva, era preciso que cada indivíduo ficasse em seu lugar e que em cada lugar ficasse um indivíduo, evitando as divisões em grupo.
Não obstante, era necessário não somente vigiar e conter as comunicações perigosas. A escola, enquanto aparelho disciplinador, precisava constituir-se num espaço útil, pois o capitalismo só poderia ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Portanto, fez-se necessária uma vigilância individual e geral, atenuando para o lugar onde cada indivíduo ocupa:
A disciplina é a arte de dispor em fila e da técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações (Foucault, 1987, p. 125).
No século XVIII, as ordenações por fileiras começam a dividir o corpo discente de forma a organizar a escola em arranjos, surgindo as filas para entrar na sala, sair da sala, filas no corredor, no pátio, por séries, por idade etc. Segundo Foucault, é esse conjunto de alinhamentos, em que os alunos ora ocupam uma fila ora outra, que marca as hierarquias do saber e do poder na instituição escola. Nessa perspectiva, a escola faz parte de uma rede produtiva que age sobre o corpo social, não somente enquanto poder repressivo, mas principalmente como um dispositivo de produção de subjetividade que diz respeito ao contexto disciplinar que ocorre tanto na sala de aula como para além dela, afetando o processo de constituição do próprio sujeito.
A Modernidade instituiu uma nova prática que não é a violência, até porque uma ação violenta exige uma guarda constante, de modo que aquele que é persuadido passa a exercer uma ação sobre si mesmo; para isso, é preciso que o sujeito se vigie, mas antes alguém precisa vigiá-lo: a escola.
Referências
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
FOUCAULT, Michel. Foucault. In: Ditos & Escritos, vol. V – Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 234-239.
KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: Editora Unimep, 2002.
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RAJCHMAN, John. Foucault: a liberdade da Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
VEIGA-NETO, Alfredo. A Ordem das Disciplinas. Porto Alegre: UFRGS/FACED, 1996.
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VEIGA-NETO, Alfredo. Dominação, violência, poder e educação escolar em tempos de Império. In: RAGO, M.; VEIGA-NETO, A. Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. p. 13-43.
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Publicado em 1º de setembro de 2009.
Publicado em 01 de setembro de 2009
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