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O quarto elemento

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Conta Jean Pierre Vernant que as meninas da Ática, região da velha Grécia, não podiam se casar, ou seja coabitar sexualmente com um homem, caso não tivessem, entre os cinco e os dez anos, imitado a ursa.

Esse era o chamado “Ritual de Brauron” e fazia referência a uma antiga história sobre uma ursa que teria ido espontaneamente habitar nas redondezas do templo da deusa Ártemis. Reza a lenda que uma menina imprudente teria passado um bom tempo brincando com essa ursa até que, inevitavelmente, teria sofrido um profundo arranhão no rosto. Cego de fúria, o irmão da menina teria ido até o templo e matado a ursa. Desse dia em diante, como reparação pela ofensa à deusa Ártemis (deusa da natureza selvagem), as filhas dos cidadãos atenienses tinham, como regra fundamental, que imitar a ursa antes de estarem prontas para conviver sexualmente com um homem.

Curioso, não? A imitação do animal selvagem que se domestica e que aceita a convivência com os homens era um dos aspectos do sagrado feminino. A força natural sem controle que se apazigua, que se torna dócil e se submete para que a união sexual depois da cerimônia de casamento não se transforme em estupro. A resistência da mulher, sua selvageria, sua insubordinação precisavam ser vencidas e a melhor maneira de realizar isso seria pagando um tributo religioso à deusa virgem da floresta, à senhora da caça e dos animais que moram nos bosques.

Muitas são as formas que o sagrado feminino toma na história da humanidade. Das velhas imagens de mulheres gordas de fartos seios arredondados latejando de fertilidade encontradas nos sítios pré-históricos até as imagens de Ísis, com seu filho Hórus no colo (que serviu de modelo para a representação cristã de Nossa Senhora com o menino Jesus); todas as facetas possíveis da feminilidade eram objeto de culto, da maternidade à administração do lar; da promiscuidade sexual à castidade; da sabedoria estratégica à insubordinação selvagem e sem lei.

No monoteísmo judaico, o sagrado feminino, antes tão presente, foi ocultado. O nome da deusa – que deveria aparecer junto aos nomes de Deus, como nas epopeias sumérias que parecem ter servido de base para a formação de parte do livro de Gênesis – foi apagado e sua referência tornou-se indireta, relacionada a figuras como a Shekinah de deus, a rainha do Shabat, a noiva celestial. Uma presença feminina, insinuada como uma sombra ao lado do grande macho divino, Rei do universo.

Quando a Europa se cristianizou, precisou adequar essa base judaica para que seus novos adeptos (celtas, gregos, latinos e germânicos) pudessem encontrar, no meio daquela moral judaica, daquela utopia humanista, algo que tivesse a ver com sua própria cultura. Foi na era dos grandes concílios, a partir do de Nicéia em (325 da era comum) que alguns dos dogmas mais conhecidos do cristianismo começaram a ser formatados.

Nesse tempo, perto do fim do velho mundo antigo, no alvorecer da era medieval, o sagrado feminino teve na Europa o seu deslocamento. O Deus cristão se tornou três: Pai, Filho e Espírito Santo, o triângulo retângulo de Pitágoras (aquele do quinto ano do Fundamental). A tríade de Platão que renasce na Idade Média, carregada para dentro da Igreja do Cristo pelos primeiros teólogos.

Na doutrina oficial, a trindade é um estranho e insondável mistério, que não se explica e que não se entende, mas que tem sua utilidade. Manter uma base pagã, platônica, sobre uma capa de monoteísmo.

Mas a mulher, a deusa, para onde ela foi? O que aconteceu com sua presença sagrada? No final do livro As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, que conta a história do mitológico rei Artur a partir do ponto de vista das mulheres, aparece uma pista importante.

Morgana (irmã de Artur) vê uma imagem de Nossa Senhora em um templo cristão. O grande mote desse livro gira em torno de como o paganismo celta foi substituído pelo catolicismo, e Morgana, que era uma sacerdotisa dessa velha religião (mais conhecida nas bancas de revista e nas lojas de quinquilharias esotéricas com o nome de Wicca), ao olhar a imagem da virgem, se questiona se ali não estaria a presença da Deusa.

O cristianismo popular – não importa o que digam os doutrinadores, não importa quanto esperneiem os teólogos – divinizou Maria. Ela não é apenas o receptáculo de Deus (Theótokos), ela é o quarto elemento. A conexão misteriosa que aparece na trindade, a linha que une os aspectos cindidos da divindade cristã. Mãe de Deus Filho, filha de Deus Pai, noiva de Deus Espírito Santo, Maria é, no cristianismo católico, o que sobrou do sagrado feminino após o colapso do antigo mundo pagão na Europa. Ela retém, como a Shekinah judaica, a linha que une nossas crenças à força dos antigos ritos de fertilidade, à memória do tempo em que nós não conhecíamos a palavra “pai” e que nosso pertencimento no mundo dependia da nossa ligação, física, material e cultural, com nossas mães. Shekinah, Ísis, Ishtar, Gaia, Iemanjá, Maria. Não importa o nome: Ela ainda está entre nós. O sagrado feminino se metamorfoseou e ganhou um disfarce tolerado pela Igreja e que fala fundo na alma dos cristãos católicos nos quatro cantos do planeta, mesmo com a recorrente e incômoda dúvida lançada pela pergunta de Morgana (a fada) no final de As Brumas de Avalon: “o que sabe uma virgem das coisas do mundo?”

Publicado em 1º de setembro de 2009.

Publicado em 01 de setembro de 2009

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