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Aprendendo do amor
Cláudia Sampaio
Cartas d’ Amor - O efêmero feminino
É que voltei. Voltei, e da ombreira da porta readmirei os ombros de velas por trás, entre as orquídeas, nimbava de ouro; e sobretudo o sutil encanto dos olhos – dos olhos finos e lânguidos... Olhos finos e lânguidos. É a primeira expressão em que hoje apanho decentemente a realidade.
Foi uma surpresa conhecer este texto de Eça de Queiroz e sentir um frescor que a princípio parecia impossível, não só pelo peso canônico do autor de O primo Basílio e O crime do padre Amaro, mas mesmo pelo objeto do livro: cartas de amor do século XIX.
No que nos interessa hoje, frases como “Voltei, e da ombreira da porta readmirei os ombros de velas por trás, entre as orquídeas, nimbava de ouro”, na carta-prefácio que o personagem Fradique escreve à sua madrinha Madame de Jouarre, contando sobre o momento em que viu Clara pela primeira vez?
A despeito da linguagem não muito familiar para nossos dias, em um ambiente onde as palavras de amor surgem, em sua maioria, na informalidade de e-mails e blogs, entre dúvidas e interjeições, arrisco que algumas coisas interessam, sim.
De imediato, podemos pensar na proposição universal do tema, o amor. Ainda que o amor romântico do XIX, que toma o outro por tábua de salvação, encontre-se em xeque, e apesar do desconcerto nas relações – causado sobretudo pelo tanto que o “efêmero feminino” mudou desde os tempos de Eça de Queiroz –, a beleza do encontro continua a mover boa parte da humanidade.
O que atrai nessas cartas, publicadas originalmente em 1892, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, é a contradição de um texto que a princípio se mostra como produto do romantismo cego à moda do “até que a morte os separe”, mas que vibra justamente por carregar a crítica a esse tipo de amor. Em lugar da cegueira, temos a sugestão do “sutil encanto dos olhos finos e lânguidos”.
Eça fala do amor terrestre, exalta Buda, alfineta o cristianismo e prenuncia a falência do romance à moda Romeu e Julieta, como lemos no trecho a seguir, ainda na carta à madrinha:
O que mais prejudicou Petrarca aos olhos de Laura – foram os “Sonetos”. E quando Romeu, já com um pé na escada de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações à noite e à Lua – Julieta batia os dedos impacientes no rebordo do balcão, e pensava: “Ai, que parlador que és, filho dos Montaigus!” Este detalhe não vem em Shakespeare – mas é comprovado por toda a Renascença.
Vistos assim, momentos que parecem exaltar o sufocante amor romântico de outrora soam como aguda e bem humorada ironia:
O que eu desejaria na verdade é que fosses invisível para todos e como não existente – que perpetuamente um estofo informe escondesse o teu corpo, uma rígida mudez ocultasse a tua inteligência. Assim passarias no mundo como uma aparência incompreendida. E só para mim, de dentro do invólucro escuro, se revelaria a tua perfeição rutilante. Vê quanto te amo (Segunda carta a Clara).
O discurso das cartas é por excelência fragmentário, disposto a mostrar a inconstância do sujeito; no caso do Cartas d’ Amor, encontramos somente as cartas de Fradique para Clara, desde o arrebatamento do amor à primeira vista até a cordial despedida. O tratamento de Fradique revela as nuances de seu querer: na primeira das quatro cartas, ele a chama “Minha adorada amiga”; ao que seguem “Meu amor”, “Minha muito amada Clara”, e, por fim, “Minha amiga”.
Com “olhos finos e lânguidos”, eis a proposta para que “apanhemos decentemente a realidade” deste livro. O amaciamento do tempo se dá quando nos deparamos com algo ou alguém que nos arrebata; é a beleza do instante, passível de ser apreciada quando voltamos, readmiramos, afinamos o olhar. Voltar com a possibilidade de transformar – eis o exercício da literatura como expressão de um amor que se expande além da claridade:
por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única vida. É que, longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser – e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto, Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome – recomeço a aspirar desesperadamente para ti, como uma ressurreição! (Segunda carta a Clara).
As cartas foram publicadas em caráter inédito pela Editora Garamond, pois antes só chegaram ao público de forma esparsa. Além disso, a edição inclui um ensaio do pesquisador Décio Luís em que é possível conhecer mais sobre os personagens e o contexto em que se inserem. Elas estão disponíveis também no site Domínio Público:
Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu deus a minha Eva – que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu – “Amo, logo existo!” (Leia mais).
Ficha técnica do livro:
- Título: Cartas d'Amor - O efêmero feminino
- Autor: Eça de Queiroz
- Gênero: Romance
- Produção: Garamond
Publicado em 22/09/2009
Publicado em 22 de setembro de 2009
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