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Arte Clássica e Educação

Marlon Baptista

A inspiração nos antigos

A importância da arte na formação dos indivíduos parece se apresentar de forma notória, não somente por causa de sua presença nas grades curriculares do ensino regular básico, não só pela abertura e estímulo à imaginação e a potenciais criativos/poéticos que ela pode provocar, nem também só por conta da dificuldade em defini-la – que faz dela uma forma de expressão humana tão peculiar. A arte carrega em sua história uma carga de significado que lhe atribui poderes que remetem a forças presentes no ser humano que são essenciais para constituir sua própria humanidade – o que nos remete à ideia de que nossa humanidade não é algo dado, algo natural, mas algo que precisa ser formado, moldado em conformidade com um ideal de “humanidade”, o que se dá por meio de um processo educativo. Lembrando que, o próprio sentido originário da palavra “alma”, no latim, se refere a um “sopro”, o sopro divino presente em nós, a parte de divindade que reside em nossa natureza terrena, mundana. Não por acaso, na Antiguidade os artistas eram considerados inspirados por entidades divinas, como se fossem possuídos, como se não tivessem, na verdade, plena consciência do que estavam fazendo, da obra que estavam criando. Devido a esse modo de considerá-la, sempre houve aproximação da arte com o próprio espírito religioso; ao pensar nos gregos, por exemplo, em geral as figuras representadas nas esculturas que nos foram legadas eram sempre representações de deuses – obviamente na consideração grega sobre os deuses, os quais tinham forma humana no corpo e na personalidade, só que elevada a níveis muito mais grandiosos, belos e poderosos.

A arte, em seus primórdios, considerando as pinturas rupestres em pedras e cavernas, teve relação direta com a representação da realidade, como a pintura de caças, de rituais etc. Mas ela também já representou (e representa) uma oposição a objetivos naturalistas de representação, como, por exemplo, a capacidade de reapresentar o real, só que de forma mais bela. Refiro-me aqui à ideia de arte clássica, às formas típicas de corpos nus e bem cuidados, da qual o nosso atual estereótipo de beleza é herdeiro. Foi a arte grega que me inspirou a escrever este texto e a pensar como um determinado modo de interpretá-la foi capaz de ocasionar uma revolução cultural na Europa do século XVIII e deixou, ainda que de forma limitada, seus rastros em nossa cultura, também ocidental, mas abaixo da linha do equador no “novo mundo”.

As viagens de formação

Foi no século XVIII que tiveram início as escavações dos principais sítios arqueológicos de onde foram desenterradas as obras de arte antigas que constituem as principais coleções conservadas até hoje, principalmente na região da Itália. Com o descobrimento desses tesouros das origens da cultura ocidental passou a haver um tipo de prática formativa inédito até então: as chamadas viagens de formação, em que pessoas de classes sociais favorecidas (pois não havia ainda qualquer sinal de democratização e estatização do ensino) viajavam principalmente para Roma – onde se concentrava a maior parte das esculturas antigas gregas e a herança da própria Roma Antiga – para conhecer de perto as obras dos grandes mestres e, com isso, ter um elemento essencial em sua formação, o contato com o espírito dos antigos e com seu ideal de beleza, tido como o mais alto e nobre da cultura até então conhecida. Com essa prática surgiu o trabalho de cicerone, aquele encarregado de servir de guia, como conhecedor das belas-artes, para direcionar o viajante diretamente às obras mais merecedoras de atenção. Nesse momento surgiu também o que chamamos de história da arte e a definitiva admiração pelo ideal de arte grega expresso nas formas, linhas e contornos dos corpos de suas esculturas.

Arte como imitação e o valor do ideal

Há críticos de arte e estudiosos que entendem a arte como um processo de imitação, de imitação da natureza. Mas não se entenda isso como meramente uma cópia. Johann Joachim Winckelmann (1717 – 1768), historiador alemão e teórico da arte, entendia que o mérito e a especificidade da arte grega consistiam em sua capacidade de imitar o real tornando-o mais belo. Com isso, estabeleceu-se um marco na história da consideração da arte ao separá-la de qualquer proposta realista, de cópia do real. O termo imitação, em Winckelmann, tem significado muito específico: realizar o que a própria natureza não conseguiu. Trata-se de unir os elementos belos criados separadamente por ela numa única obra, como por exemplo, unir o mais belo nariz, boca, olhos, abdômen, pernas, pés, e criar um único corpo humano que a natureza não conseguira criar por dispor de forma separada estas particularidades que, se estivessem juntas, constituiriam a forma realmente bela. Ou seja, trata-se de um modo de entender a arte como superação da própria natureza e como um privilégio do homem, o qual, em maior ou menor grau, deveria ser exercitado para se apropriar verdadeiramente de sua humanidade, daquilo que lhe é mais próprio: justamente esta capacidade se superar aquilo que é meramente natural.

A arte carrega consigo esse sentido de elevar aquele que a realiza ou que a contempla a um nível superior em relação à realidade e o de que esta habilidade (qual seja, de também saber desconsiderar o real em prol do ideal) é importante na formação das personalidades humana. Por quê? Um elemento determinante dessa consideração da beleza era o da serenidade, da jovialidade presente na expressão das obras de arte gregas. Essa serenidade se referia a um tipo determinado de posicionamento diante da vida com pretensões educativas. Ao contemplar esculturas gregas, é recorrente a não-expressão de características brutais, afetadas demais, restritas à realidade do desespero e da fraqueza que constituem a nossa humanidade. Pelo contrário: a característica de sua expressão dizia respeito à serenidade porque retratavam figuras que se colocavam acima da transitoriedade, da fugacidade, da contradição, da impotência e da limitação humanas. Basta ver alguma obra clássica de escultura antiga para perceber que não se trata de uma figura imersa nas preocupações do dia a dia; trata-se, sim, da representação de um momento que sobressai, como um certo tipo de postura numa luta, numa guerra, num evento importante, ou meramente como uma figura num estado superior, divino – que nós, por muitas vezes, devido ao costume de nossa atual cultura de imagem midiática, podemos até considerar como simplesmente inexpressivas. Mas, afinal, o que haveria de educativo nessas belas figuras?

O caráter educativo da serenidade

Com o estudo da arte grega, poderíamos nos elevar a um modo de valorizar a vida, ao invés da preocupação focada na utilidade, na necessidade ou na reafirmação por meio de um tipo de arte “inferior” daquelas características que constituem nossas fraquezas e imperfeições (como propostas naturalistas de arte que representam o que é comum, diário, banal); poderíamos, por outro lado, perceber como os gregos entendiam que a finalidade da vida humana não é somente seguir vivendo, procriando e trabalhando, mas estabelecer ideais que superem nossa naturalidade, que pretendam formas mais grandiosas, menos comuns, menos frequentes, que se destaquem, que sejam realmente únicas. Não era à toa que a educação grega visava formar o homem de modo completo, a fim de desenvolver nele habilidades variadas, para que ele aprendesse determinados conhecimentos que pudessem ser aplicados na intensificação do contínuo melhoramento de sua personalidade como um todo, e não somente com vistas a uma atividade profissional. Assim, ter contato com a arte grega poderia despertar naquele que a contemplasse o sentido e o desejo de superação daquilo que somos, de nos tornarmos melhores; a expressão sensível, concreta da pedra esculpida poderia mesmo ter efeito mais forte do que palavras e argumentos.

A dita “serenidade” se referia a um ideal que visava superar o nosso mundo de paixões, ou seja, nossos vícios, instintos irrefletidos, busca cega por satisfação e conforto meramente físico – como o ideal de vida de nossa atualidade, que tem como principal meta o conforto a partir do êxito econômico. Essa serenidade das esculturas gregas se referia muito mais ao interesse pela grandeza das ações praticadas do que por qualquer tipo de recompensa material. Tanto é que se pensava que aquele que fosse devidamente orientado na contemplação da arte dos gregos poderia ser educado moralmente no sentido de ser ensinado, por meio do exemplo expresso nessas obras, sobre o valor soberano das grandes ações e do cultivo da beleza, por conta do fato da consciência de que a capacidade de produzir belas coisas (ideias, esculturas, atitudes, modos de vida etc.) seria uma condição para que exercêssemos aquilo que realmente nos é mais próprio quando nos definimos como humanos.

A arte grega seria educativa, pois seria capaz de humanizar. A capacidade de criação seria uma característica humana por excelência; quanto mais ela se eleva em relação ao real, mais poder e intensidade tem. Haveria, na forma grega de ver o mundo, um valor tão grande atribuído à arte porque ela nos ensina a visar aquilo que não morre, o ideal, em oposição ao real. Um exemplo dessa pretensão por imortalidade está nas imagens (como a escultura Laocoonte) que retratam momentos em que o protagonista se insere numa situação terrível, amedrontadora, violenta, e que, mesmo assim, devido a esse cultivo em relação à maior importância da força do espírito em oposição à luta cega pela continuidade da vida do corpo, não expressa o desespero comum em que entramos caso nossa existência seja ameaçada.

A serenidade diante da morte é possível de se dar por conta da compreensão grega de que, por exemplo, vale mais morrer cedo e de forma nobre, valiosa, criativa, cheia de vida, do que viver muito com uma vida que nada tem de especial, que não é intensificada com o valor do constante cultivo e aperfeiçoamento de si mesmo. A serenidade é proporcionada pelo modo de lidar com a vida, em que cada decisão visa melhor conhecimento sobre si e, consequentemente, um aperfeiçoamento que possibilita criar obras que se imortalizem na memória e no respeito das gerações vindouras.

A herança dos gregos que nos restou

A herança que temos desse ideal da arte grega infelizmente se reduz somente à superfície, às formas dos corpos, por exemplo, das mocinhas do Big Brother, dos atletas e estrelas televisivas. Não se preservou o sentido que impregnava essa forma de imagens; só se preservaram as imagens. Num tempo de fragmentação crescente dos diversos âmbitos de atuação da vida, em que instituições de ensino se tornam cada vez mais cursos com pretensões meramente profissionalizantes, em que a relação com o divino passa cada vez mais pelo intermédio de religiões ilegítimas que surgem aos borbotões diariamente para consolar as pessoas de suas mazelas; enfim, em nosso contexto de valorização ao que é rápido e útil, torna-se realmente cada vez mais difícil vivenciar esse tipo de valoração da vida expressa na arte grega. Mas mesmo assim vale a pena lembrar que a realidade em que estamos inseridos não é a única possível, e, ainda que coletivamente sejam lentas, difíceis ou por vezes quase impossíveis, certas transformações, individualmente é sempre possível o despertar para a mudança que proporcione outra perspectiva, de modo que possamos atribuir valores diferentes a isso que chamamos vida humana. Isso é possível não só individualmente, mas também no âmbito do micro, ou seja, sem pretensões massificantes de transformar a sociedade em sua totalidade; mas, por outro lado, no exemplo de um professor em sua reflexão com seus alunos, alguém numa conversa séria com seus amigos, um escritor com seus leitores etc. A influência entre pessoas é também um modo de fazer ocorrer processos educativos, os quais pressupõem sempre as mudanças de postura, o deixar para trás de algo que se mostrou de menor valor e a conservação daquilo que se mostrou mais valioso para a vida.

Pode-se pensar que não faz muito sentido elaborar analogias entre o modo grego de ver o mundo e o modo da atualidade, pois isso seria um mero anacronismo. Mas o interessante é que determinados modos de encarar o mundo, quando são realmente profundos e carregados de sinceridade e verdade, conseguem conservar seu valor, mesmo independentemente de contexto. Talvez, por mais que os gregos tenham se tornado algo definitivamente passado, sua visão de mundo visando a imortalidade tenha conseguido, sim, se imortalizar, pois, por mais inviável e irrecuperável que seus valores possam ser hoje para nós, eles não deixam de conter sua verdade.

Referências

BORNHEIM, Gerd. Introdução à leitura de Winckelmann. In: WINCKELMANN, Johann Joachin. Reflexões sobre a arte antiga. Tradução de Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre: Movimento, 1975.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

WINCKELMANN, Johann Joachin. Reflexões sobre a arte antiga. Tradução de Herbert Caro e Leonardo Tochtrop. Porto Alegre, Movimento, 1975.

Publicado em 22/09/2009

Publicado em 22 de setembro de 2009

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