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Caprichos da vontade
Mariana Cruz
Uma amiga que vive numa eterna luta de gladiadores com a balança estava orgulhosa da disciplina alimentar que vinha mantendo durante um mês por livre e espontânea vontade: café da manhã frugal – à base de frutas e leite desnatado; almoço light – saladinha, arroz integral e peixe grelhado; e uma prosaica sopa no jantar. Além de estar satisfeita com as novas formas que iam surgindo em seu corpo – a cintura, até então desconhecida, desenhando-se, as maçãs saltando do rosto, o queixo duplo tornando-se uno –, estava com mais disposição para fazer as coisas, dormindo bem... até sua alergia havia melhorado. Como lhe fazia bem trocar as costumeiras frituras e refrigerantes por frutas, cereais e legumes!
E ainda estava conseguindo caminhar depois do expediente (coisa que dizia odiar e pela qual agora estava realmente tomando gosto). Falou-me de como sua nova vida estava lhe fazendo bem física e mentalmente. Eis que teve um aborrecimento bobo no trabalho. É preciso ressaltar bem o bobo, pois tal insignificância foi suficiente para que, findo o expediente, ao invés da benéfica caminhada, ela se atracasse com uma fatia enorme de torta de brigadeiro, acompanhada de uma coca-cola “normal” (“já que é pra fazer, vamos fazer direito!”). Mas ela não parou por aí: em casa, fez um macarrão ao molho branco e nuggets, muitos nuggets e mais coca “normal”. No dia seguinte deu adeus às frutinhas matinais e voltou ao velho breakfast composto de ovo com presunto, leite-marrom escuro (de tanto achocolatado), geleia, pão, pão e pão. O almoço seguiu a linha heavy: uma bela lasanha aos quatro queijos. Era sua versão light-disciplinada-saudável que tinha chegado ao fim. Começou a comer ainda mais do que antes da dieta frugal – não sabe se para se castigar ou para recuperar todos os quilos que perdeu. Ou ambos.
Isso me fez pensar na tal da fraqueza da vontade, trabalhada por diversos filósofos – desde Sócrates até os contemporâneos, como Donald Davidson.
Não precisa ser nenhum pensador para constatar que, por vezes, ocorrem determinados processos mentais que nos fazem agir contrariamente àquilo que sabemos ser o certo e que temos plena condição de fazê-lo, mas mesmo assim escolhemos fazer o que sabemos ser errado.
Como o caso de minha amiga. Afinal de contas não é uma compulsão, um vício, ou uma coação. Minha amiga tinha – e tem – total condição de controlar seus apetites e, sabendo não estar fazendo a coisa certa para ela, optou livre e conscientemente por agir assim.
Por vezes, sem que nos demos conta, agimos de forma parecida. Quem, depois de espremer uma espinha grande e incômoda, nunca resolveu por isso espremer qualquer ínfima protuberância que estivesse no rosto? O que tem espremer uma espinha a mais? E aí aparece o efeito bola-de-neve, em que o diabinho que mora dentro da gente é o grande vencedor: “já que amanheci tomando refrigerante, então vou comer besteira o dia inteiro”; “já que fumei um cigarro hoje, vou fumar outro agora, aliás, vou voltar a fumar”; “tenho um trabalho enorme para fazer no computador, mas, ao invés de terminá-lo vou dar uma olhada no site de fofocas e ficar sabendo da vida das celebridades que nem sei quem são”; “tenho que terminar essa pesquisa, mas vou ficar aqui vendo esse filme de terceira que já vi não sei quantas vezes”; “por que sempre prometo que não irei mais virar noites estudando em cima da hora para provas e todas as vezes isso acontece?” E o pior se dá quando tais autossabotagens vão puxando umas às outras no melhor estilo tomei-um-porre-acordei-tarde-perdi-a-prova-não-fiz-a-segunda-chamada-repeti-a-disciplina.
Na Filosofia, temos três condutas que podem descrever posturas desse tipo: a fraqueza da vontade – também conhecida como conduta acrática ou incontinente – e seus extremos (ela é o meio-termo entre a conduta intemperante e a compulsiva). O acrático tem pleno controle sobre seu desejo, não sofre nenhum tipo de coação para agir diferentemente do que sabe ser o melhor para si e mais: pretende agir segundo esse seu melhor juízo. No entanto, na hora de agir, não age de acordo como ele. Ao cometer tal ato, ele teria a intenção de fazê-lo e teria capacidade de não tê-lo feito.
O intemperante, assim como o acrático, tem total controle sobre seu desejo. Apesar de ter acesso às outras opções, ele escolhe, livre e espontaneamente, obedecer a seus desejos, por acreditar ser isso o melhor a fazer. É o que pode ocorrer quando a pessoa está de regime e, ao se deparar como uma barra de chocolate e mesmo podendo domar seu desejo de comê-la, prefere saciar seu apetite e abrir mão do regime. Ela decide que entregar-se a tal prazer é a melhor opção. Quem fica de fato incomodado com a conduta do intemperante são as outras pessoas (o endocrinologista, a mãe, a esposa etc.), mas não o próprio.
O compulsivo é aquele que não tem comando sobre seus atos em relação ao objeto de desejo. São como os cocainômanos em relação à cocaína, os alcoólatras em relação ao álcool ou os chocólatras em relação aos chocolates. Mesmo sabendo que tal vício lhes é prejudicial e que o melhor a fazer é não sucumbir, eles não têm escolha, é como se fossem coagidos a fazer tal coisa.
Desses três tipos de conduta, vemos que o realmente problemático, no que diz respeito à asserção de sua natureza, sua causa, é o primeiro caso, o do acrático. No caso do intemperante, o problema consiste no desajuste entre o que ele considera o melhor a fazer e aquilo que os outros consideram o melhor. O conflito é externo – o que talvez possa causar aborrecimento para o agente em relação às outras pessoas, mas não há hesitação no momento da ação. O compulsivo não tem escolha, é “escravo de seus desejos” e sofre por isso. Com o incontinente, não se sabe o que o leva a agir contra seu melhor juízo; ocorre um conflito interno. Ele opta voluntariamente e tem a intenção de agir de acordo com sua opção, mas age contrariamente a ela.
A dificuldade está justamente em entender como o agente, tendo juízo sobre algo que irá por sua vez gerar uma ação intencional, age intencionalmente de outra forma. De qualquer maneira, no que diz respeito aos objetos que motivam o acrático, pode-se dizer que são da mesma espécie que os do intemperante; aquilo que diferencia o primeiro do segundo é a forma com que ele se relaciona com tais objetos. O segundo escolhe ser levado pelo seu desejo, pois pensa que deve sempre seguir seu prazer imediato, enquanto o primeiro, apesar de agir conforme seus prazeres, não pensa dessa forma (Aristóteles, 2002, p. 149).
Na comparação entre o incontinente e o intemperante, Aristóteles considerou o primeiro melhor que o último, por não ser mau no sentido amplo do termo. O incontinente, apesar de – igualmente – dominado pela paixão, guarda em si o primeiro princípio, que é a causa final da ação, como sendo o bem (porém ele não o consegue exercer), ao passo que o intemperante não preserva o primeiro princípio, uma vez que busca seus prazeres sem reservas (Aristóteles, 2002, p. 161).
Ao determinarmos como opostos da incontinência e da intemperança a continência e a temperança veremos que, pelo fato de a primeira consistir em resistir e da segunda em vencer, a continência é “mais digna de escolha” (Aristóteles, 2002, p. 159) que a temperança. Essas duas qualidades ocorrem de acordo com a justa razão. A diferença está na constituição dos homens que apresentam tais características; enquanto o continente é tentado por apetites contrários à regra justa, o temperante não tem tais apetites. Esse é mais um motivo de mérito do primeiro, visto que seu esforço é maior.
Tal exposição suscita a questão: se posso e quero evitar fazer o que acho errado, por que não faço? De onde vem esse espírito de porco da gente com a gente mesmo? E quanto mais ele vai se apropriando de nós mais um emaranhado de coisas que não deveríamos e não queríamos ter feito, mas que fizemos por livre e espontânea vontade, vai se formando e obstruindo, embotando, jogando nossa energia pelo ralo. É preciso conseguir desatar o nó inicial.
É uma imagem quase fiel ao que acontece quando há um barbante com um emaranhado de nós. À medida que tais nós vão se desatando, os outros vão também ficando mais fáceis de desfazer. Até que o barbante fique lisinho de novo. É uma questão de escolha e de força de vontade. Cabe à própria pessoa escolher desatar nó por nó do emaranhado ou torná-lo insolúvel.
Publicado em 22/09/2009
Publicado em 22 de setembro de 2009
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