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A maçã de Martim - II

Cláudia Sampaio

– Martim, muito gosto.
– Ah, prazer, meu nome é Luana.
– Deusa da Lua?
– Da escuridão.
E os dois se olharam, sem sorrisos.

Ele estava quieto, parado, com as duas mãos entrelaçadas e apoiadas sobre a barraca.
De onde estava via a chuva por trás da mulher.

– Maçãs? Quantas?
– Três. Mas quero levar mais.
Nela não havia hesitação, nem preocupação com a quantidade de palavras. O que importava: esta agora é a sua medida. Já que era por demais difícil saber o que seria importante para aquele homem a sua frente, decidiu dizer o que considerava imprescindível para ser o que se é. E que algum dia ele consiga ver a sua alma e possa então pintar seus olhos? Tanto melhor.

– Meia dúzia de bananas, quatro laranjas-lima, uma caixa de morangos, uma dúzia de limões. Como você veio parar aqui?
– Ih, moça, esta história é longa. E hoje quem pode com histórias longas?
– Também não é assim, se for interessante a gente ouve.
– Mas quando começa de um jeito, passa para outro diferente que demora a acabar e parece que se errou o compasso, depois acaba de modo leve, como ninguém esperava?
– Tá dizendo que a gente sempre espera o pior?
– Também não é assim?
– É de que jeito?
– E eu sei?
– Sei nada, moça.
– Luana, pode me chamar assim.
– Luana – Repetiu, curtindo bem a sonoridade luna, una.

Não resistindo ao que poderia descobrir naquele inesperado, já que esperar era rotina, disse resoluta, como quando um pequeno gesto é suficiente para irromper uma avalanche:
– Aceito um café, não ontem, nem amanhã, hoje. Então você conta sua história longa?
– Mas a que horas esse café?
– A que for melhor pra você.
– Não sei se minha história é interessante ao ponto de te fazer ficar mesmo ela sendo longa. Que te interessa a verdade de um homem em fuga?
– Sim, talvez agora me interesse, por que duvidas? Acho mesmo é que você tem medo de contá-la? Há um segredo.

– Vamos ali naquela padaria. Tomemos o café nesse instante.
– Sabiá! – Gritou Martim para o companheiro da barraca de verduras colada à sua.
 – Segura a onda aqui?

Atravessaram a rua, e então os dois, xícaras, pires, café quente.
– Onde você nasceu?
– Na Argentina.
– Sabia que você não era daqui, o sotaque.
Era importante para ela não parecer romântica. Mas a cena, os dois, xícaras, pires, suores, bocas, olhares, café quente. Tudo aqui, uma contradição.
E ele nem se importando em parecer romântico:
– Acho que errei tanto foi pra te encontrar neste lugar.
A pouca luz da padaria, o cinza e o zumbido do dia nublado que vinham de fora fizeram com que se olhassem de modo concentrado.
– Como veio parar aqui?
– Viemos?
E o sorriso de Luana acendeu por um momento, apesar da obscuridade desse segundo movimento.

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Publicado em 29/09/2009

Publicado em 29 de setembro de 2009

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