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Ensino cooperativo e inclusivo
Rejane de Souza Fontes
Pedagoga, doutora em Educação pela UERJ
A inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais no contexto da escola regular ainda é um processo recente e cercado de tabus e preconceitos no cotidiano das escolas brasileiras. Ainda há um número relativamente pequeno de pesquisas nessa área e um número ainda menor de experiências bem-sucedidas que mereçam destaque. Mas é possível registrar, através de pesquisa etnográfica, experiências bem-sucedidas originárias de políticas públicas pró-inclusivas no âmbito da educação nacional que merecem ser socializadas, pois é positivo conhecer salas de aula de escolas brasileiras que apresentem uma proposta inclusiva que mostra como a cultura do ensino colaborativo ou bidocência pode ser a chave para o sucesso da inclusão em nosso país.
Segundo a Organização das Nações Unidas, há hoje no mundo cerca de 500 milhões de pessoas com deficiência, das quais 80% encontram-se nos países em desenvolvimento, como o Brasil. Os dados do Censo de 2000 apontam que 14,5% da nossa população, ou seja, 24,5 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência. Os números são bastante elevados para a média mundial, que gira em torno de 10%. Somente agora, depois de tantos séculos de exclusão, perseguição e discriminação, essas pessoas começam a ter seus direitos garantidos, ao menos na forma da lei.
Com o objetivo de promover a inserção social das pessoas com deficiência e de combater qualquer forma de discriminação em relação a elas, nas últimas décadas vem se instalando, em nível internacional, um processo de inclusão baseado no princípio de igualdade de direitos. A filosofia da Inclusão implica "a transformação de relações sociais estabelecidas e sedimentadas entre grupos humanos" (Glat, 1995, p. 17), valorizando em primeiro lugar a diversidade.
Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirmou, pela primeira vez, que "toda pessoa tem direito à Educação". Mas foi somente nas décadas de 1980 e 90 que começaram a surgir mais enfaticamente declarações e tratados internacionais na defesa dos direitos de grupos minoritários e excluídos, como mulheres, negros, povos indígenas, crianças, pobres, deficientes, nômades, homossexuais, imigrantes, exilados, refugiados de guerra etc.
Em 1990, a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, considerando que 100 milhões de crianças não tinham acesso ao ensino primário e 960 milhões de adultos eram analfabetos, defendeu a universalização do acesso à educação como forma de promover a equidade social. Quatro anos se passaram até que a assinatura da Declaração de Salamanca recomendasse princípios, políticas e linhas de ação voltadas para as pessoas com necessidades educacionais especiais, reconhecendo as diferenças e buscando promover uma educação que atendesse às necessidades de cada um, especialmente aos mais desfavorecidos, como as crianças pobres e/ou deficientes. Esses foram os primeiros indícios de uma proposta de inclusão em âmbito educacional.
Merece destaque o conceito de necessidades educacionais especiais que propõe um novo olhar sobre a deficiência, mais educacional e menos patológico. Necessidades educacionais especiais devem ser compreendidas como dificuldades ou elevadas capacidades, permanentes ou circunstanciais, manifestas em relação ao processo de aprendizagem de qualquer ser humano em algum momento de sua vida. Essas necessidades são, portanto, fruto das interações que os sujeitos estabelecem com o meio em seu processo de aprendizagem e que devem e podem ser superadas, de acordo com os apoios e suportes que recebem.
Esse conceito amplia o conceito de deficiência originalmente associado às pessoas que apresentam algum tipo de limitação física, cognitiva ou sensorial associada a uma causa orgânica específica, voltando-se também para aquelas com transtornos severos de comportamento (condutas típicas) e altas habilidades. Ou seja, implica o fato de que um indivíduo pode superar suas necessidades educacionais especiais sem, contudo, deixar de ter deficiência, distúrbio de comportamento ou alta habilidade.
Na Educação, o princípio da inclusão se materializa na proposta de uma educação para todos os alunos, inclusive aqueles com condições que afetam diretamente o processo de aprendizagem. "Deficiências sensoriais (surdez e cegueira), mentais ou cognitivas, bem como transtornos severos de comportamento (autismo e psicoses) devem ter a possibilidade de se integrar no sistema regular, preferencialmente sem a defasagem idade-série" (Glat & Duque, 2003, p. 70), com exceção dos alunos com altas habilidades, a quem deve ser garantida a aceleração de estudos, na forma da lei.
O pressuposto básico da Educação Inclusiva é o reconhecimento da existência de diferenças no processo de desenvolvimento individual. No entanto, essas diferenças não justificam a separação de todos os alunos em classes especiais para o atendimento de suas necessidades de aprendizagem. Assim, a Educação Inclusiva deve ser entendida como um processo contínuo de inserção do aluno com necessidades educacionais especiais ao sistema de ensino regular, o que pressupõe simultaneamente a adaptação da instituição e da filosofia escolar para receber esse aluno e a adaptação dele para ser incluído no processo educacional.
Deve-se ressaltar que a expressão "aluno com necessidades educacionais especiais incluído em classe regular" tem sido objeto de debate em âmbito acadêmico, por ser considerada excludente em sua essência. Alega-se que a inserção desse aluno em classe regular não garante sua inclusão e, mesmo que esteja incluído, a palavra sublinha um diferencial em relação a esse aluno, que originalmente não pertenceria àquela classe.
De fato, tal argumento é procedente. Contudo, neste momento da história da Educação Inclusiva em nosso país, é necessário que não somente as necessidades educacionais advindas da deficiência sejam ressaltadas, através do termo "inclusão", para que possam ser atendidas como o mesmo termo deve fazer parte do horizonte da proposta educacional da escola, começando por seu discurso em relação a esse aluno. Nesse sentido optamos pelo uso da expressão "alunos com necessidades educacionais especiais/deficiência incluídos em classes/turmas regulares/comuns", em vez de "alunos com deficiência inseridos em classe regular".
Nessa perspectiva, a proposta de inclusão sugere mudanças profundas na concepção de educação e de escola. É o que aponta Mittler (2003, p. 16):
A inclusão não diz respeito a colocar as crianças nas escolas regulares, mas a mudar as escolas para torná-las mais responsivas às necessidades de todas as crianças; diz respeito a ajudar todos os professores a aceitar a responsabilidade quanto à aprendizagem de todas as crianças nas suas escolas e prepará-los para ensinar aquelas crianças que estão atual e correntemente excluídas das escolas por qualquer razão.
Não basta inserir o aluno com necessidades educacionais especiais nas classes regulares para que a inclusão aconteça. Além disso, há outras barreiras para que a Educação Inclusiva se torne realidade no cotidiano de nossas escolas: o número excessivo de alunos em turma, grande parte dos quais apresenta dificuldades de aprendizagem e de aceitação social; a precária acessibilidade física aos prédios escolares; a rigidez curricular, com ausência de suportes especializados e de apoio pedagógico individualizado; e a formação pedagógica superficial e aligeirada.
A concepção de inclusão no espaço da escola é algo muito mais amplo, que envolve a reestruturação dos espaços físicos e dos processos de ensino-aprendizagem. Nessa reestruturação, um ponto merece destaque: a falta de preparo do professor para trabalhar com a diversidade.
Estudos desenvolvidos por vários pesquisadores apontam o despreparo dos professores para trabalhar com a diferença – dentro de um currículo engessado e planejado para turmas homogêneas – como um dos principais obstáculos para a implementação da proposta de Educação Inclusiva.
Contextualização do problema
Pesquisas – como a realizada para o Banco Mundial em 2003 com a finalidade de traçar um perfil do processo de Educação Inclusiva no Brasil – apontam que a inclusão escolar ainda não conseguiu superar seu nível de simples integração do aluno com necessidades educacionais especiais ao espaço institucional da escola. Em linhas gerais, o paradigma da Integração pressupõe a preparação do aluno com necessidades educacionais especiais para ingressar numa classe regular, o que difere do modelo de Inclusão educacional que preconiza a adequação da escola às necessidades educacionais desse aluno.
Esse fato se deve tanto à ausência de instrumentos didáticos e suportes pedagógicos adequados que facilitem o processo de inclusão do aluno com deficiência quanto à ausência de política efetiva de formação de professores que os qualifique como agentes de inclusão. Tais programas de formação devem ser regidos por princípios de sensibilização frente às diferenças e comprometidos com a superação do fracasso escolar como profecia autorrealizável. (Pletsch & Fontes, 2006).
Nunes Sobrinho (2003) aponta a formação de professores como o aspecto primordial para a proposta de inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais na classe regular. Daí a necessidade de mais pesquisas que busquem analisar práticas educativas de inclusão ainda pouco discutidas por estudos acadêmicos.
Ainda se identifica certa fragilidade teórica nessa área, pois há poucas pesquisas brasileiras que relatem práticas pedagógicas de cunho inclusivo produzidas nesse contexto educacional. Baptista (2006, p. 28) reforça tal ideia afirmando que "os estudos que procuram associar a descrição densa do cotidiano à análise dos processos inclusivos em contextos singulares e historicamente situados podem auxiliar a compreender o atual momento da educação brasileira".
Em outras palavras: o sistema ainda não reúne dados para uma avaliação do processo de inclusão escolar. Os casos de inclusão bem-sucedidos de que se tem notícia foram baseados em relatos de pessoas que conseguiram ser incluídas no sistema educacional através do seu esforço pessoal, e não por mérito de políticas públicas pró-inclusivas. "Suas vozes não necessariamente auxiliariam na avaliação do impacto das experiências de inclusão sobre o cidadão deficiente hoje ingressando no sistema escolar, para o qual as políticas públicas de inclusão consistiriam a única alternativa" (Glat et al., 2003, p. 61).
Foi pensando nessas questões e por me ver, de certa forma, impotente diante do panorama de inclusão incipiente que venho vivenciando em minha prática de supervisora educacional das redes municipais de Educação de Niterói e São Gonçalo (RJ), que proponho como campo de investigação as salas de aulas de escolas que apresentem proposta inclusiva. Além disso, tenho observado explícita resistência ao processo de inclusão, tanto das escolas regulares públicas quanto privadas, bem como dos meus alunos dos cursos de licenciatura – que serão futuros professores.
Por que é importante esse estudo
De acordo com as orientações de Quivy e Van Campenhoudt (1992), este tema pode ser delimitado na forma de pergunta: Como se materializa, no contexto escolar, o diálogo entre as políticas públicas e a prática pedagógica da inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais matriculados em turmas regulares de ensino? Qual o papel do professor nesse processo?
Para desenvolver a análise, a pesquisa se apoiará nos estudos de Booth e Ainscow (2002) que propõem um enfoque multidimensional, a partir do qual o processo de inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais em turmas regulares de ensino pode ser analisado considerando as seguintes dimensões: a) as políticas públicas de Educação Inclusiva; b) a cultura escolar e c) as práticas pedagógicas em turmas regulares de ensino.
As políticas públicas de Educação Inclusiva dizem respeito ao conjunto de diretrizes e normas que regulamentam a proposta de Educação Inclusiva nas escolas de ensino regular e orientam sua efetivação na prática pedagógica. A segunda dimensão se refere ao conjunto de crenças e valores que permeiam a cultura escolar, orientando a prática e as ações da comunidade escolar em relação ao processo de inclusão. Por fim, a última dimensão se refere a práticas pedagógicas inclusivas, envolvendo as formas de efetivação das políticas de Educação Inclusiva na sala de aula regular, englobando as estratégias de ensino-aprendizagem desenvolvidas por professores que trabalham em turmas com alunos com necessidades educacionais especiais incluídos.
Para esses autores, "a inclusão implica reestruturar a cultura, as políticas e as práticas das instituições educacionais para que possam atender à diversidade de seus alunos" (Booth & Ainscow, 2002, p. 20). Essas três dimensões devem ser consideradas de igual importância para o desenvolvimento da inclusão dentro do espaço escolar, e será sob seu enfoque multidimensional que a pesquisa se desenvolverá.
Como vem acontecendo a inclusão pedagógica de alunos com necessidades educacionais especiais no ensino regular, sob a luz das políticas públicas de inclusão e da cultura escolar? Além disso, investigamos como o ensino colaborativo entre professores do ensino regular e professores da Educação Especial pode contribuir neste processo.
Com base na abordagem etnográfica, o estudo analisou práticas pedagógicas com alunos com necessidades educacionais especiais incluídos em turmas regulares de duas escolas da rede pública municipal de Educação de Niterói.
Os objetivos específicos foram os seguintes:
- descrever e analisar o processo de desenvolvimento de práticas pedagógicas inclusivas e sua relação com a política educacional vigente e a cultura escolar;
- identificar e refletir sobre as dificuldades, os limites e as possibilidades de atuação do professor em turmas inclusivas;
- avaliar a contribuição da proposta do ensino colaborativo ou bidocência para a Educação Inclusiva;
- sinalizar indicativos para a construção de políticas de formação continuada de professores e de orientações pedagógicas pró-inclusão que considerem as múltiplas realidades do cotidiano escolar.
Anos depois da promulgação da Declaração de Salamanca (1994), importantes análises da legislação de inclusão escolar já foram realizadas. Em relação a mim, com dez anos de pesquisa no campo da Educação Especial e diante da carência de estudos acerca da inclusão no cotidiano escolar, acredito ser este o momento propício para analisar os encaminhamentos que têm sido dados à política de Educação Inclusiva em nosso país.
Linhas gerais da abordagem metodológica
A pesquisa do tipo etnográfico tem sido utilizada com sucesso no campo educacional. Seu mérito reside na tentativa do pesquisador de buscar capturar, sem se desfazer de seus valores pessoais, o significado com que o grupo de sujeitos observados interpreta suas próprias ações.
Com essa pesquisa, acredito estar contribuindo para pensar as possibilidades de construção de uma sociedade menos excludente, com o aperfeiçoamento de políticas públicas nesta área, em que todos possam efetivamente ter os mesmos direitos fundamentais, como o acesso à educação e à cidadania.
Está claro que é preciso pensar novas possibilidades de formação continuada de professores como elemento-chave para a inclusão escolar. A análise aponta para o ensino colaborativo, ou seja, a colaboração entre os professores do ensino especial e os do ensino regular como uma possível alternativa para a construção de práticas pedagógicas que atendam às necessidades de todos os alunos, com ou sem deficiência.
Várias pesquisas vêm sendo desenvolvidas na área de Educação Inclusiva, e um estudo com abordagem etnográfica pode contribuir para a construção de conhecimentos neste âmbito.
É possível contextualizar a discussão dos dados relacionados à cultura escolar a partir das falas e gestos dos sujeitos do estudo e, através das cenas do cotidiano escolar, fazer uma análise das práticas pedagógicas que compõem o cenário de duas escolas municipais de Niterói.
De todo modo, é preciso retomar o percurso e recomeçar o debate a partir do itinerário de volta, ou seja, com base nas experiências concretas de ensino colaborativo em sala de aula, caminhar em direção à construção de políticas públicas de Educação Inclusiva mais condizentes com a nossa realidade.
Referências
BAPTISTA, C. R. (Org.). Inclusão e escolarização: múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Mediação, 2006.
FONTES, R. de S.; PLETSCH, M. La inclusión escolar de alumnos con necesidades especiales: directrices, prácticas y resultados de la experiencia brasileña. Revista Educar, México, v. 9, n. 37, p. 87-97, 2006.
GLAT, R. Integração social dos portadores de deficiência: uma reflexão. 3. ed. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.
GLAT, R.; ANDRADE, E. R. de; OLIVEIRA, E. da S. G. de; NOBRE, D.; BONFIM, M. I. do R. M.; FARAH NETO, M.; ROSA, S. P. da S.; VALLE, B. B. R. do. Fundamentos teóricos e metodológicos do Ensino Fundamental. Curitiba: IESDE, 2003.
GLAT, R.; DUQUE, M. A. F. T. Convivendo com filhos especiais: o olhar paterno. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2003.
MITTLER, Peter. Educação inclusiva: contextos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2003.
NUNES SOBRINHO, F. P. O manejo eficaz do comportamento dos alunos em sala de aula: uma estratégia inclusionista. Revista Movimento. EdUFF, v. 7, p. 70-77, 2003.
Este texto é um excerto da Apresentação do livro Ensino Colaborativo: uma proposta de Educação Inclusiva, publicado pela Editora Junqueira e Marin.
Publicado em 20 de outubro de 2009
Publicado em 20 de outubro de 2009
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