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Saber só não basta
Marlon Baptista
Colocação do problema: conhecimento e ignorância
Existem pessoas com excessiva capacidade de armazenar conhecimentos, facilidade em fazer uso desenvolto da memória, junto de um impulso pela constante busca por novos conhecimentos. Obviamente trata-se de qualidades importantes, ainda mais diante de um mundo de esquecimento em que vivemos, onde a memória fraca parece ser a única explicação plausível para certas atitudes que presenciamos frequentemente: candidatos políticos com um passado repleto de erros, desonestidade e má-fé sendo reeleitos para importantes cargos após poucos anos de seus malfeitos; ou a programação da televisão aberta em geral (considerando-se as raras exceções), que induz o telespectador a um estado de letargia, abandono de si e falta de pensamento.
De fato, vivemos num tempo em que a memória não parece ser tão bem cultivada, ao menos não nos meios de entretenimento das massas. A televisão está em 98% das casas no Brasil – existem casas que não têm geladeira, mas têm televisão. Boa parte da responsabilidade sobre o conteúdo ruim da programação do veículo de informação e entretenimento de maior abrangência no Brasil (a TV) é do governo federal e dos governos estaduais, pois a concessão de emissoras de TV em nosso país compete ao Estado, de modo que ele tem autoridade inclusive para tirar canais do ar. Canais de qualidade duvidosa e conteúdo vazio angariam quase toda a audiência e influenciam de forma decisiva a formação da opinião pública. Cerca de 60% da população de nosso país têm a TV como única fonte de informação sobre os acontecimentos gerais do mundo. As ficções, com seus lugares-comuns nos filmes comerciais e nas novelas, junto de telejornais que não explicam as razões e o fundamento dos acontecimentos que narram nem as causas e antecedentes daquelas informações soltas, fragmentárias e sem relação alguma entre si, contribuem de forma significativa para a manutenção do estado das coisas, em que o esquecimento está presente de forma tão forte. Grande parcela de eleitores que votam em candidatos que não apresentam condições adequadas para exercer cargo político de forma correta pertence às classes D e E e têm poucos anos de frequência em escolas com qualidade de ensino prejudicada por conta de contextos socioeconômicos desfavoráveis, o que significa que, assim, se fecha o círculo, que é vicioso: o eleitor sem memória e conhecimento vota no mau político, este assume o poder e controla os meios de comunicação, esses meios de comunicação formam opinião de modo ilegítimo e duvidoso e o eleitor que tem a opinião formada assim vota mal.
Tudo bem, relembro o leitor que iniciamos o texto fazendo um elogio àqueles que têm boa memória, e por isso acabamos apresentando o seu contrário, a falta de memória e conhecimento, para estabelecer um contraste. Mas agora coloco uma questão que é o fio condutor deste texto: até que ponto faz diferença a quantidade de conhecimento que se consegue armazenar pelo do estudo para determinar o modo de pensar e agir de alguém? Com isso coloco em questão uma pergunta mais elementar: o que significa educar alguém? Ou ainda outra: quais as finalidades possíveis do aprendizado? Os nossos meios educativos são voltados para a formação de pessoas melhores? De pessoas que, através do aprendizado, mudem de atitude?
Conhecedores: o erudito e o especialista
Desde o século XVII a figura do erudito passou a ser considerada uma das mais valiosas no interior da cultura, da civilização. Quem é o erudito? É aquele que conhece os clássicos da literatura, da filosofia e das humanidades em geral, é esclarecido, conhece as ciências, as diversas línguas, costumes, as normas das boas maneiras, etc. O erudito, na figura do acadêmico, gerado no interior das instituições de ensino superior (as universidades), teve historicamente o mérito de ser o único que, mesmo não tendo nascido nobre, frequentava o ambiente das cortes e era respeitado pela riqueza de seu espírito, assim como se fosse um nobre de nascença. Trata-se realmente de uma exceção, pois cabe lembrar que os círculos aristocráticos desde a antiguidade levavam seriamente em consideração a linhagem de família, as origens, a descendência nobre, considerando de valor inferior aquele que ficou rico por meio do trabalho. O erudito pode ser compreendido como aquele que tem uma opinião aparentemente inteligente para dar sobre os mais diversos assuntos, tem bom gosto, sutileza, conhecimentos. Ou seja, para ser um erudito não é preciso nada muito excepcional, não é preciso ser algo muito raro ou único, com uma personalidade muito peculiar, pois um erudito não precisa criar nada, ele faz uso, por meio da linguagem, do vasto conhecimento que adquiriu – ainda que possa ser um fracasso em sua vida privada e afetiva, com neuroses variadas, questões pessoais mal resolvidas, com caminhos tomados sem muita consciência e reflexão; enfim, com uma vida prática desastrosa.
Outra forma de compreender o perfil daquele que se dedica ao conhecimento está na figura dos cientistas especializados em qualquer área do conhecimento. O que eles fazem? Dedicam-se exaustivamente a uma única área de estudo, especializando-se cada vez mais, e, por conta disso, tornando-se gradativamente uma autoridade sobre um determinado assunto ou objeto de pesquisa. O que é exigido de um estudante de Engenharia, por exemplo? Questionamentos sobre o sentido de seus comportamentos, decisões e valores? Sobre o sentido de seus costumes, sua vida, seus preconceitos, suas posturas veladas por hábitos? Reflexões sobre como dar sentido ao que vive e ao que faz em geral? Não, é-lhe exigido um grupo de conhecimentos técnicos muito específicos para que ele desenvolva bem uma função profissional e tenha bom salário. Até certo ponto existe pertinência nisso, pois há uma finalidade específica a ser alcançada com determinado estudo. Mas, por outro lado, existe também algo muito nocivo nisso, pois pode fazer com que a personalidade do estudante não se desenvolva. Por exemplo, há um tempo encontrei, depois de alguns anos, um amigo de infância que estava fazendo mestrado em algo extremamente técnico e especializado, algo como criar um antivírus completamente intransponível na ciência da computação. Levei um susto por ter me dado conta do quão alienante pode ser até mesmo o curso de pós-graduação de mais alta excelência. E por que digo isso? Por que sua personalidade parecia ser a mesma de quando ele era um adolescente com cabelos compridos tocando numa banda de punk-rock num bar underground sujo. Com o diferencial de que passou a ter como meta única em sua vida a proposta de ganhar muito dinheiro – o que provavelmente conseguirá, pois tem facilidade para aprender conhecimentos técnicos e frequenta um dos maiores polos tecnológicos do país.
Mas daí eu recoloco a questão: formar cientistas e formar alguém é a mesma coisa? É possível que meu amigo não vote em Silvio Santos ou em Collor, tudo bem; mas o que será de sua personalidade? O que será dele quando, já bem mais velho, estiver farto dos prazeres que o dinheiro pode dar, se não tiver uma interioridade minimamente preparada para lidar com a difícil tarefa humana que é precisar colocar algum sentido para a vida? Ou pior: certas coisas a velhice ensina na marra, como o modo como a questão sobre a finitude, a morte se torna mais recorrente na velhice; e, diante da morte, pode-se por vezes, de forma inevitável, ser levado a colocar em questão aquilo que não foi posto na juventude: vivo pra quê? Qual é o sentido?
A bela juventude
A juventude é algo muito vivo, e, por conta do excesso de vivacidade, realiza por vezes atos inacreditáveis. Se por um lado, a juventude pode se mostrar tímida, insegura e vacilante por não se conhecer ainda muito bem, por outro lado, justamente por não se conhecer direito, pode se mostrar ousada, expondo-se demais, sendo temerária, ou seja, corajosa demais. A valentia e intrepidez da juventude pode ser algo realmente belo: somente sendo jovem mesmo que o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) pôde escrever algo tão impetuoso e arrebatado como Os sofrimentos do jovem Werther, em que o protagonista, após dezenas de páginas de oscilações bruscas entre alegria exaltada e tristeza desesperada, decide-se pelo suicídio, e tem a coragem de praticá-lo por conta de um amor não correspondido – o que, diga-se de passagem, influenciou vários jovens tomados por tamanha força do romantismo, aumentando o índice de suicídios na Europa do século XVIII. Somente sendo jovem o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) escreveu os textos intitulados Considerações extemporâneas, maldizendo todas as manifestações culturais e políticas de seu tempo de modo tão agressivo e belicoso, tão reativo, tendo que combater algo, com tanta raiva –e em textos de sua maturidade afirma sobre si mesmo que esses textos eram extremamente juvenis em sua ousadia e necessidade de conflito, de se opor, quase assim como os adolescentes têm necessidade de se opor como forma de autoafirmação, como modo de definição e construção de uma identidade própria. Mas esses são textos fundamentais para a história da cultura, pois se trata aqui de duas exceções e não de meros adolescentes chatos e teimosos.
A juventude que quer o conhecimento sem buscar se conhecer
O que me preocupa é justamente a maioria dos meros mortais, aqueles que, quando muito jovens, fazem de sua teimosia algo desprovido de sentido, inconveniente e besta. Não falo aqui dos revoltados sem causa, dos “I don’t care”, dos aborrecidos e tristes adolescentes típicos; também não me refiro àqueles que só querem saber de praticar esportes e participar de campeonatos e competições; refiro-me àqueles que pretendem ter conhecimento, esses são os mais perigosos, porque podem ser mais nocivos, consigo mesmos e com os outros. Refiro-me a jovens pedantes que, devido a uma eventual maior facilidade do que a média para adquirir e armazenar conhecimentos, não conseguem perceber a importância do exercício de outras habilidades em que não é o conhecimento teórico que está em jogo, mas sim a capacidade de saber como se comportar, de ter maior sensibilidade com sutilezas inerentes às relações humanas em geral, tipo de coisa que não se aprende como um conteúdo programático de uma ementa, mas por meio da abertura à troca de vivências e de reconhecimento das próprias limitações e do espaço de atuação do outro.
Ocorre facilmente que aqueles que se interessam pelo conhecimento se coloquem numa posição superior aos outros. O problema é que aí reside um erro elementar no critério de julgamento sobre quem é melhor ou não, pois é problemático pensar que alguém é melhor que alguém por conta de maior acúmulo de conhecimentos, pois isso nada tem a ver com a posse de características humanas fundamentais determinantes para avaliar alguém. Um portador de vastos conhecimentos pode ser uma personalidade desprezível e insuportável, ou, se não tanto, desinteressante, sonsa e sem graça. O que por vezes não se entende bem é que fatores totalmente não teóricos determinam a simpatia que sentimos por alguém: a habilidade em lidar com imprevistos, com o acaso; a abertura para o cultivo de sentimentos verdadeiros; o exercício de características morais, como sinceridade, senso de justiça, franqueza; até mesmo trejeitos corporais que, junto com as características espirituais, formam o todo da personalidade de cada um de nós.
Por outro lado, temos outro tipo de juventude a evitar, também dedicada ao conhecimento: uma que não é pedante como a já citada mas que pode se manter no lado desagradável da juventude pelo resto da vida: o do desconhecimento sobre si mesma. Enquanto as pessoas que se dedicam a aprender, que gostam de estudar não estiverem abertas tanto a outros tipos de conhecimentos como de vivências, toda e qualquer formação com pretensões profissionais/científicas vai continuar deixando a desejar num elemento fundamental ao qual toda legítima educação deveria se ater: formar bem a individualidade, a personalidade das pessoas.
A formação da personalidade
Para isso é fundamental levar em consideração de forma realmente séria questões como a importância do ócio, momento em que podem surgir criações, novidades, mudanças ou mesmo o próprio amadurecimento de coisas que já vinham sendo gestadas. É importante levar em consideração a necessidade de não pretender um amadurecimento muito rápido, pois a precocidade, a falta de paciência pode ser decisiva para todo o decorrer de uma vida que se decidiu rápido demais, de forma imatura demais. Levar em consideração o cultivo de habilidades diferentes daquelas exclusivas de uma área de estudo, dedicando atenção e tempo para outras atividades de conhecimento, culturais, artísticas, corporais, para o cuidado com a própria casa, com as relações pessoais, com o estar aberto para o mundo no decorrer do cotidiano dos dias, ao invés de considerar a eficiência do estudo como sinônimo de unilateralidade do exercício de uma única habilidade que enrijece e petrifica as outras possíveis. O valor dos passeios, da troca de experiências instrutivas por meio de amizades verdadeiras; do cultivo adequado da solidão e da busca pelos outros; da modéstia e humildade diante dos caminhos mais longos e diferentes dos outros.
O que me preocupa é como existem tantos adultos que são ainda adolescentes, como por muitas vezes levam para toda a vida um grau de desenvolvimento pessoal que paralisou na juventude, somente acrescentado pelo amadurecimento inevitável do envelhecimento – e dos acontecimentos e sofrimentos causados por ele. Os sistemas formativos em geral (não só do Brasil), desde sua estatização e democratização no início do século XIX na Europa, parecem não viabilizar muito bem o crescimento da personalidade das pessoas.
Bibliografia
NIETZSCHE, F. Consideraciones intempestivas I - David Strauss, El confesor y el escritor (y Fragmentos Póstumos). Trad. Andrés Sanchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1997.
NIETZSCHE, F. Considerações intempestivas II - Da utilidade e dos inconvenientes da História para a vida. Trad. Lemos de Azevedo. Lisboa: Presença; São Paulo: Martins Fontes, s.d. p. 101-210.
Publicado em 20 de outubro de 2009
Publicado em 20 de outubro de 2009
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