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Uma dívida (pública) com a Educação (Pública)

Romero Maia

Sociólogo e membro da Associação Universitária Internacional (AUI)

O mestre disse:
Por natureza, os homens são próximos; a educação é que os afasta.

Confúcio, em Os colóquios

Até que ponto uma nova geração pode ser responsabilizada pelo mundo que encontra? O papel desempenhado pela educação é a pedra de toque para entender a distribuição social das responsabilidades. Através dos tempos, a educação já recebeu vários moldes que não refletiam necessariamente a vontade da maioria. No ponto mais alto da responsabilização estão aqueles que concentram poder e decidem sobre a configuração educacional. Mas um projeto de futuro, seja de mudança ou de manutenção do status quo, depende essencialmente de como se transmitem saberes e se estimulam novos conhecimentos. A importância dada à educação indica como estão estruturadas as relações de poder e o que toda a sociedade pode esperar do rumo de sua própria história.

A educação é uma instituição social que remonta à pré-história. Consistia em assegurar a imitação das práticas coletivas que perpetuavam a sobrevivência dos grupos, como a caça, a colheita e a escolha de bons abrigos. Para o sociólogo francês Émile Durkheim, a educação tribal não instituía seus mestres, mas estava difusa como uma tarefa de todos os anciãos ou o conjunto das gerações anteriores. A educação era informal, mas tinha a responsabilidade de tornar comum o saber do grupo e, assim, garantir a integração de todos ao tecido social.

Os registros da Antiguidade Clássica mostram, por sua vez, que já ali o processo educacional adquiriu complexidade, formalizando-se na escola. O saber foi dividido em tecne e teoria; o primeiro era voltado para operações de ordem manual, com acréscimo do esforço físico; o segundo, para a elaboração intelectual, de caráter normativo e reflexivo. Esse caráter dicotômico é explicado pelo seu correspondente nas relações sociais da época. Na Grécia, havia os cidadãos e os escravos; em Roma, os patrícios e os plebeus. Uns deveriam comandar e decidir. Aos demais cabia obedecer e se resignar. O aspecto político da educação fica evidente nas palavras de Xenofonte: “Só os que podem criar seus filhos para não fazerem nada é que os enviam à escola; os que não podem, não enviam” (apud Brandão, 1995). Nesse contexto, o conhecimento não integra, mas divide os homens, inserindo-os numa relação desigual de acesso aos louros da sociedade. A educação fixa-se, portanto, num processo hierarquizado em dois polos: um, dos dominantes, indivíduos responsáveis pela forma do modelo; outro, dos dominados, os que têm a responsabilidade de se enquadrar nele. O jogo do poder é prioridade, e a educação é apenas importante para mantê-lo em funcionamento.

O legado dualista da Antiguidade Clássica ganha sobrevida quando se vislumbra, hoje, o estabelecimento da educação nos países ditos “em desenvolvimento”. A cisão operada está além da dicotomia tecne-teoria. Reside também na incapacidade dos governos desses países de garantir o acesso irrestrito das populações à educação de qualidade. Tal impotência implica outra dicotomia: a existência de dois tipos de ensino, um deles eficiente e outro que não oferece condições satisfatórias de ensino ou aprendizagem; o privado e o público, respectivamente.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007 mostram que, no Brasil, aproximadamente 90% dos estudantes do ensino fundamental estão matriculados na rede pública de ensino. Segundo a avaliação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em 2007, a maior parte deles (55%) conclui a quarta série com desempenho em leitura considerado crítico ou muito crítico. No embalo, percebe-se uma forte clivagem no ingresso para o ensino superior. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP),

87,9% dos alunos matriculados no Ensino Médio brasileiro pertencem a escolas públicas. Entretanto, com base nas estatísticas produzidas a partir dos questionários socioeconômicos preenchidos pelos participantes do Enade, os alunos que vieram do Ensino Médio em escolas públicas representam apenas 46,8% do total de matrículas nas Instituições de Educação Superior já avaliadas.

Não obstante a aparente autonomia de um em relação ao outro, o ensino oferecido no mercado se afirma cada vez mais a partir da derrocada do sistema público, justamente o que concentra o maior número de estudantes. A situação se agrava com a escassez de recursos governamentais em decorrência sobretudo do elevado custo da dívida pública. Um exemplo do impacto no orçamento dos países em desenvolvimento pode ser visto no Brasil quando, em 2004, o valor subtraído para pagamento da dívida girou em torno de US$ 45 bilhões, montante que poderia gerar imenso salto qualitativo no ensino público brasileiro. Mas a manutenção de uma relação de dependência econômica histórica parece ser prioritária sobre o direito à educação de qualidade.

Considerar a educação como uma peça importante para o desenvolvimento social não é suficiente, pois quando se considera apenas importante submete-se sua função a outras instituições como a política ou a economia. Vultos como Platão e Cícero poderiam ser mais frequentes se o acesso à instrução fosse equânime. Quanto a isso não há mais o que fazer. Há o caos. Todavia, para o futuro, se parte da dívida dos países em desenvolvimento for convertida em investimentos na educação, cujo retorno socioeconômico é comprovado, seria possível dar outro desfecho à história contemporânea.

O governo brasileiro já iniciou conversações sobre tal acordo. Organismos como a Unesco e o Banco Mundial estão cientes da insustentabilidade da dívida e acenam em consonância com a ideia. Espera-se que, desta vez, os líderes mundiais (ou, de maneira menos polida para os dias atuais, os “donos do poder”; claro que num sentido mais amplo, ou melhor, global, que aquele concebido pelo célebre Faoro em 1958) compreendam a educação como prioritária e, por isso, confirmem-na à frente de outros interesses. Assumir essa responsabilidade agora é, na verdade, poder exigir das gerações vindouras a realização de um mundo mais justo e renovar as esperanças na nossa história.

Referências

BRANDÃO, Carlos R. O que é educação. 33ª ed. Brasiliense: São Paulo, 1995.

BRASIL. IBGE. PNAD 2007. Mais de 50% dos trabalhadores contribuem para a previdência. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1230&id_pagina=1. Acesso em: 2 out. 2009.

BRASIL. MEC. INEP. Desempenho em leitura na 4ª série inverte tendência de queda. Disponível em: http://www.inep.gov.br/imprensa/noticias/saeb/news04_08.htm. Acesso em 2 out. 2009.

BRASIL. MEC. INEP. Alunos originários de escolas públicas têm menos oportunidade de ingressar na Educação Superior. Informativo do INEP, ano 4, nº 130, 6 mar. 2006. Disponível em: http://www.inep.gov.br/informativo/informativo130.htm. Acesso em 2 out. 2009.

FOLHA DE S. PAULO. MEC faz articulação para trocar dívida externa por educação. Folha On Line, 4 de abril de 2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u17274.shtml. Acesso em 2 out. 2009.

Publicado em 20 de outubro de 2009

Publicado em 20 de outubro de 2009

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