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Como responder o que é a poesia?
Raquel Menezes
À Maria Clara, querida derridiana
Talvez uma das perguntas mais retóricas feitas pelos estudiosos de literatura seja “o que é a poesia?”. “Arte de compor e escrever versos? Arte de excitar a alma com uma visão do mundo, por meio das melhores palavras em sua melhor ordem? Poder criativo; inspiração? Aquilo que há de elevado ou comovente nas pessoas ou nas coisas?” (Dicionário Houaiss). As definições do dicionário eletrônico para poesia transformadas em perguntas, em certa medida, podem revelar a vontade de perguntas (e não de respostas) quanto a este assunto.
Como não pretendo responder a tal questão, trato, ou pelo menos tento cuidar, da resposta dada por Jacques Derrida a “Che cos`é la poesia?”. O importante filósofo francês de origem argelina é conhecido principalmente como criador da desconstrução, e seu trabalho, frequentemente associado ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo, teve profundo impacto sobre a teoria da literatura e a filosofia ocidental.
Para Derrida, a teoria da desconstrução consiste em desfazer o texto a partir do modo como este foi organizado originalmente para que, assim, sejam revelados seus significados ocultos. À primeira vista, a desconstrução pode sugerir uma destruição, mas trata-se do oposto, pois ela busca encorajar a pluralidade de discursos, legitimando a não-existência de uma única verdade ou interpretação, com um caráter de disseminação de possíveis e novas verdades. O autor pós-moderno localiza suas interpretações na estruturação e lógica dos textos, por serem estas as fontes primárias dos discursos políticos, sociais e culturais. Também é através dos textos que os atores sociais transmitem suas ideias, como reflexo de seus pensamentos.
A resposta a “Che cos`é la poesia?”, publicada primeiramente em Poesia, I, a 11 de novembro de 1988, é um exemplo da desconstrução derridiana e começa com as seguintes palavras:
Para responder a uma tal questão – em duas palavras, não é? – pede-se que você saiba renunciar ao saber. E saiba disso sem jamais se esquecer: desmobilize a cultura, mas não se esqueça nunca, em sua douta ignorância, daquilo que você sacrifica no caminho, atravessando a estrada. (Derrida, 2001, p. 113)
E como de daria essa renúncia ao saber? Afinal, esse ato, em certa medida, de negação tem como pilar o próprio saber – “E saiba disso sem jamais se esquecer” –, tornando-se, portanto, uma questão circular. E ainda se, mais adiante no texto, Derrida afirma que “a poesia vê-se ditada” (idem, p. 113), o autor apostaria na necessidade de a poesia ser decorada, recopiada, guardada? Se a resposta for afirmativa, o lugar próprio para guardar a poesia é o coração.
Sem qualquer clichê, e ao mesmo tempo usando-o, o coração que guarda a poesia guarda a memória; afinal, quando aprendo algo de cor, estou a apre(e)nder de coração, como bem nos aponta Derrida ao trazer a expressão inglesa à discussão: to learn by heart. De volta a coração, o vocábulo é formado a partir do latim (cor, cordis). Assim, etimologicamente pode ser apreendido (de cor) como sendo a sede (de conhecimento), o centro da alma, da inteligência e da sensibilidade. A partir disso, podemos pensar que a etimologia de coração está subescrita na famosa frase de Blaise Pascal: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, que sintetiza sua doutrina filosófica: o raciocínio lógico e a emoção.
Para Derrida:
Você não conhecia o coração e assim o aprende. Por essa experiência e por essa expressão. Chamo poema aquilo que ensina o coração, que inventa o coração, enfim aquilo que a palavra coração parece querer dizer e que na minha língua me parece difícil distinguir da palavra coração (ibidem, p. 114)
Para Luiza Neto Jorge:
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma
(2001, p. 141)
Permito-me fazer um falso silogismo: se para Derrida o poema ensina o coração e para a poetisa portuguesa o poema ensina a cair, logo, o coração ensina a cair. Desse modo, mesmo referindo-me a cair e não à queda, embora esta seja “vinda da lenta volúpia de cair”, estabelecemos um diálogo voluptuoso e frontal entre Luiza e Derrida.
Silogismos à parte, por meio de um ponto de vista imagético, a queda do poema e do coração podem ser aproximados através do vocábulo elipse, visto que afirma Derrida:
Para responder em duas palavras, elipse, por exemplo, ou eleição, coração ou ouriço, terá sido necessário a você desamparar a memória, desarmar a cultura, saber esquecer o saber, incendiar a biblioteca das poéticas. A unicidade do poema tem essa condição (2001, p.115).
Em outras palavras, a imagem da queda do poema poder ser em elipse fica muito forte. Afinal, não só Luiza afirma a queda do poema, mas também Derrida: “O poema cai, bênção, vinda do outro”. Grosso modo, a queda seria um gesto. Um gesto de amor. Um gesto do coração.
Referencias bibliográficas
DERRIDA, Jacques. “Che cos`é la poesia?”. Trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar. In: Inimigo Rumor. n. 10. Rio de Janeiro: 7 Letras, maio 2001.
JORGE, Luiza Neto. Poesia. Organização e prefácio Fernando Cabral Martins. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001.
Publicado em 3 de fevereiro de 2009
Publicado em 03 de fevereiro de 2009
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