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Ser e não ser, eis a resposta!
Mariana Cruz
A contradição é algo inerente ao pensamento. Os opostos não apenas se atraem: eles se fundem, se confundem e, por vezes, são a mesma coisa vista de ângulos diferentes. Uma multidão é dita no singular, mas compõe-se de muitas pessoas; o mar é finito quando consideramos sua extensão vista por satélite, mas é infinito quando olhamos para o horizonte; o número 1 pode ser dividido cem, mil... infinitas vezes; o branco, a mais clara das cores, é a junção de todas elas. Uma coisa pode ser finita e infinita, singular e múltipla ao mesmo tempo. Não por acaso Pitágoras, filósofo pré-socrático, afirmava que “tudo é um”.
No Oriente, a dualidade é representada pelo símbolo Yin/Yang – duas forças opostas e complementares. O Yin é o princípio passivo, feminino, noturno, frio; o Yang é o princípio ativo, masculino, diurno, quente. Vales e lugares próximos de um rio têm energia Yin; planaltos e montanhas são Yang. De acordo com a sabedoria oriental, tal principio está contido em todas as coisas, sem que haja hierarquização entre os elementos; um é causa e efeito do outro.Uma das leis que tratam da combinação dessas duas energias afirma que todas as contrariedades são complementares.
No séc. VI a. C., Heráclito de Éfeso, um dos mais complexos pensadores da Antiguidade, falava sobre a unidade de forças contrárias. O sábio considerava que luta e contradição não deveriam ser evitadas, pois são elas as responsáveis pela formação do mundo. Tudo é essencialmente unidade e polaridade, o devir é sempre resultado da luta entre opostos, da harmonia entre contrários: dia e noite, bem e mal, guerra e paz, unidade e multiplicidade. Ao falar de pares contrários, não raro se está tratando de uma única coisa, assim como na historinha do otimista e do pessimista, em que, diante de um copo com água pela metade, o primeiro considera que o copo está meio cheio e o outro que o copo está meio vazio.
Qual é o oposto do caminho que sobe a montanha? O caminho que desce. A obviedade da resposta pode esconder o fato também óbvio de que ambos os caminhos são um só. O oposto do velho Heráclito não seria o jovem Heráclito? E não se trata, contudo, da mesmíssima pessoa? Exemplos como esses estão em todos os campos. Na Química, o corpo está eletricamente neutro quando o número de prótons e elétrons é equivalente. No mundo da moda, o feio de antes é muitas vezes o bonito de hoje. A beleza rechonchuda renascentista é o oposto do anoréxico padrão estético contemporâneo. Na arte barroca, está presente a tentativa de conciliação elementos antagônicos, como claro e escuro, bem e mal, corpo e espírito, razão e emoção, cristianismo e paganismo.
Na música O quereres, Caetano Veloso cria versos magistrais sobre os opostos e o desejo de ter o contrário do que se tem:
Onde queres família, sou maluco
Onde queres romântico, burguês
Onde queres Leblon, sou Pernambuco (...)
Onde buscas o anjo sou mulher
Onde queres prazer sou o que dói (...)
Não se trata de opostos clássicos (feio vs bonito; gordo vs magro; alto vs baixo etc). É justamente a falta de obviedade das oposições e, ao mesmo tempo, a exatidão entre elas que tornam a letra genial. No refrão, a expressão “bruta flor” traz em si uma contradição de termos inexata e ao mesmo tempo perfeita. Caso similar, porém pouco notado devido (infelizmente) a seu uso corriqueiro, é a expressão “guerra santa”. Se guerra, como santa? Se santa, como guerra? Existe contradição maior?
É no cânone da literatura nacional e mundial, nos livros que compreendem a alma humana, que encontramos os melhores exemplos dessas oposições em relação ao gênero humano. Em Shakespeare está o magistral “ser ou não ser” de Hamlet, personagem que o tempo todo oscila entre o papel de herói decidido e o de príncipe inseguro.
Em José de Alencar, sua Lucíola, a meretriz caprichosa conhecida pela extrema luxúria e voluptuosidade no fundo é a mais pura das criaturas. Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Stevenson, mostra a oposição entre o médico solidário, gentil, dono de bondade e amabilidade absolutas, e o monstro, assassino impiedoso e cruel. E o intrigante fato de se tratar da mesma criatura. A ironia e a sutileza machadiana também não deixam escapar a contenda entre opostos, como na famosa passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando o personagem do título descobre que a “flor da moita”, Eugênia, é coxa: “Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?” Outro exemplo machadiano está nos gêmeos idênticos Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó, que, embora tenham temperamentos antagônicos, amam a mesma mulher: Flora – que corresponde ao amor dos dois, sem conseguir escolher com qual ficar.
E, por fim, a tragédia sofocliana Édipo-Rei e o oxímoro matricial que persegue nosso herói: Édipo, inocente ou culpado?
Dilemas da literatura, dos personagens, dos homens, da natureza humana mostram que nada é de um só jeito. Tais elementos contraditórios talvez sejam parte de um todo misterioso que engloba o ser e o não ser, o inocente e o culpado, a santa e meretriz, o belo e o imperfeito, pares opostos e complementares que nossa limitada e dicotômica mente não consegue compreender.
Publicado em 3 de fevereiro de 2009
Publicado em 03 de fevereiro de 2009
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