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O brinquedo na literatura infantil: uma leitura psicanalítica
Ninfa Parreiras
Mestre em Literatura Comparada pela USP, escritora e psicanalista
O brinquedo me acompanha desde que eu era criança, pela adolescência afora, na maternidade, quando fui professora de crianças e quando fui atendê-las na clínica psicanalítica. O brinquedo não me escapa aos olhos; estava lá, dentro e fora de mim, no raso, no fundo, nos meus pensamentos e lembranças. Estudei Literatura, Psicologia e Psicanálise. E o brinquedo continuava me chamando a atenção para a infância como o tempo da brincadeira e para a possibilidade de criação subjetiva.
Para a Psicanálise, a subjetividade passa a existir com a identificação do bebê com a mãe e com as possíveis identificações que ele vai fazer com outros adultos, quando ele começa a se perceber uno sem a mãe. A psique nasce, no ser humano, num momento de fragilidade e de desamparo do bebê, quando ele vai se percebendo só, separado da mãe. A partir daí, surge a necessidade de estabelecer comunicação com o mundo e consigo mesmo, que começa a ser feita por meio de alguma coisa, que pode ser um objeto, um brinquedo – seja ele um trapo, um pedaço de pano, um travesseiro, um urso de pelúcia, uma boneca, um livro...
O bebê substitui o corpo da mãe por esses objetos, que passam a fazer parte de sua vida social, cultural e psíquica. Há necessidade de pedir alimento, de falar da dor, do sono, da sede... E como falar disso tudo sem a linguagem, sem a palavra? Nasce, assim, a brincadeira no ser humano, resultante do desejo de se expressar, da possibilidade de construção de um mundo lúdico e onírico para dar conta dos sentimentos e emoções do bebê, da criança. Por isso o brinquedo ocupa um lugar de extrema importância no desenvolvimento psíquico da criança. Ela precisa de um brinquedo ou um objeto que o substitua, que facilite sua comunicação, a fruição de seus pensamentos.
A literatura para crianças, assim como toda a produção cultural para a infância, é concebida e apresentada à criança pelo adulto. É ele quem cria, escreve, ilustra, edita, divulga e faz a mediação do livro com a criança. Refletir sobre os elementos lúdicos presentes numa história para crianças pode trazer a compreensão da relação do adulto com a criança e da criança com o mundo. Se conhecermos os elementos que a caracterizam, teremos um aprofundamento dessa literatura.
Como ponto de partida para o nosso estudo, podemos propor algumas questões: O brinquedo está presente no livro para crianças? Como está representado o brinquedo? Que representações o brinquedo pode trazer para uma compreensão da infância? Que desejos (do adulto e da criança) estão subentendidos por trás do brinquedo existente nos textos e ilustrações dos livros para crianças? Como entender a ausência do brinquedo na literatura para crianças? Que relações essa ausência pode suscitar numa leitura do sujeito e da sociedade? É possível conhecer a subjetividade da criança a partir do brinquedo? De que maneira o brinquedo é abordado estilisticamente no texto e na ilustração de um livro infantil? Por que o brinquedo se presentifica na literatura para crianças?
Ao buscar subsídios na Psicanálise, sabemos, por Sigmund Freud, da importância do lúdico e da fantasia para a infância. Em uma de suas grandes descobertas, ao partir de um brinquedo de criança, Freud (“Além do princípio do prazer” In: Obra Psicológica Completa de Sigmund Freud. v. XVIII. Rio de Janeiro: 1989) trouxe para a humanidade a compreensão da pulsão de morte e uma leitura para os movimentos compulsivos, tão inerentes ao ser humano. Essa é considerada uma das mudanças mais profundas na teoria freudiana, conquistada ainda em vida pelo mestre. A partir dela, passamos a entender que a luta entre Eros e Thanatos – pulsão de vida e pulsão de morte – é o que garante e mantém a evolução da espécie humana.
Foi a partir de uma observação de um brinquedo de um menino que Freud desenvolveu seus estudos sobre a compulsão à repetição e a pulsão de morte, em 1920, no artigo “Além do princípio do prazer” In: Obra Psicológica Completa de Sigmund Freud. v. XVIII. Rio de Janeiro: 1989.
A Psicanálise pode servir à literatura como ferramenta de leitura e de interpretação, para fundamentar uma teoria ou crítica literária. Além de ser um método de investigação que consiste em evidenciar os meandros da nossa psique, os significados inconscientes das palavras, ações e produções imaginárias, a Psicanálise ganhou espaço nas universidades, nas rodas culturais e na imprensa e não se restringe ao uso clínico do divã e da poltrona, como costuma ser estereotipadamente caracterizada. Ela abre caminhos para os conflitos que moram dentro de nós. E permanece como o grande interlocutor da subjetividade.
Com a análise das obras, desvelamos as figuras e as palavras dos livros para crianças, deixando-as falar sobre o que não está dito mas que está presente nas construções literárias. Intencionamos, desse modo, a leitura das entrelinhas, dos silêncios que moram entre as palavras e entre os desenhos. Traduzimos, com a Psicanálise, os afetos presentes que podem estar despercebidos na literatura. E discutimos, finalmente, a sublimação e a transferência, dois conceitos da Psicanálise, para compreender a presença do brinquedo como um encontro – da criança com o adulto e do mundo interno com o mundo externo – na produção literária e na leitura de uma obra. A Psicanálise, um século e meio depois do nascimento de Freud, ocupa hoje um espaço de diálogo e negociação – do possível e até do impossível – com o outro. É o diálogo das diferenças, das dúvidas e dos conflitos.
Nosso olhar está dirigido à presença do brinquedo nas narrativas e nos poemas e, principalmente, à literatura como brinquedo, que está presente na nossa sociedade em diversas produções culturais além da literatura. Muitos artistas plásticos – para citar os brasileiros, Milton Dacosta, José Pancetti, Candido Portinari e Guignard – já haviam materializado e eternizado o brinquedo em algumas de suas obras. Recentemente, a exposição Homo Ludens – do faz-de-conta à vertigem (Itaú Cultural, São Paulo, curadoria de Denise Mattar, de 12/10/05 a 29/01/06), mostrou em instalações, cenários, pinturas e desenhos o brinquedo como um dos cinco núcleos da exibição. Faz-de-conta apresentou obras de artistas brasileiros que representaram e interpretaram o real: a boneca, o papagaio, o cavalinho, a bola...
O brinquedo traz a possibilidade de conhecer o mundo e de estabelecer relações no universo imaginário da fantasia. Isso porque a criança brinca, disfarça, imita, inventa, representa, cria com a ajuda do brinquedo. Assim se estabelece seu processo de conhecimento de si e do outro – como os pais, os irmãos, os familiares, os vizinhos, os amigos, os professores...
Mesmo que a nostalgia e a saudade da infância não estejam expressas diretamente nos poemas, em que há um eu-lírico, há a presença dos brinquedos na literatura para crianças. O brinquedo se apresenta ora como brinquedo mesmo (bola, pião, papagaio, boneca, carrinho...), ora como um objeto que faz as vezes de brinquedo. Com isso, podemos conceber a literatura como brinquedo cuja linguagem da ternura está a serviço da infância.
Quanto aos desejos do adulto presentes no brinquedo, vimos que podem ser tanto um retorno à infância, uma saudade, uma nostalgia quanto a necessidade de deixar falar a criança adormecida e calada em cada um. Quanto aos desejos da criança presentes no brinquedo, observamos que são muitos: o de se comunicar, o de construir a relação com o outro, o de se deleitar, o de existir como criança, o de se subjetivar, que possibilita a criação de si.
O brinquedo pode ser a porta de entrada para conhecer a subjetividade da criança. Podemos concebê-lo como um campo de transformação para e da criança, um encontro criativo (como produto cultural feito pelo adulto) e criador (como símbolo de representações para a criança). Vimos como o adulto trabalha os signos, os objetos transicionais, que permitem a subjetivação da criança, o estabelecimento de um campo paradoxal de criação e criatividade e sua representação psíquica. Uma subjetivação que mostra o encontro da criança com o signo, que é a potência do encontro; o texto (escrito e ilustrado) é a produção feita pelo adulto, em que a criança se subjetiva – se cria, se desenvolve, num processo de sublimação. É como uma transferência que a criança estabelece com o texto.
As representações do brinquedo na literatura para crianças são símbolos que provocam a transferência da criança com o texto – quando ela se identifica ou não, se apropria, associa. É onde se dá a subjetivação da criança.
Em relação à ausência do brinquedo em algumas obras da literatura para crianças, entendemos que há uma ausência física do brinquedo, mas não simbólica. Ele se faz presente em outros objetos. Isso nos leva a crer, no caso da literatura para crianças, que o que não está dito em palavras pode estar dito em ilustrações, nas expressões e nas brincadeiras da criança.
O brinquedo nas obras para crianças se faz presente de várias formas, se materializa como recurso para o reconhecimento de cada leitor e das coisas e das pessoas que o rodeiam. O brinquedo aparece como um objeto da infância, seja um antigo ou moderno, como um instrumento de lazer para ser manuseado. Ou como um objeto a ser descoberto pela criança. Tanto na prosa como na poesia, o brinquedo está representado na literatura para crianças.
Não é à toa que notamos, na análise de algumas obras, o uso da transgressão e da catarse pelos autores. Ambas permitem ao leitor, à criança, um mergulho na ludicidade e na brincadeira, como recurso para combater algumas dificuldades que cercam as crianças: a apatia, a tristeza, a adicção, a falta, a melancolia, a solidão.
A ousadia da criança ao brincar, ao manipular um brinquedo, em algumas obras, mostra o potencial de um brinquedo para a infância. O brinquedo é um instrumento de trabalho a serviço do inconsciente, dos desejos subtendidos dos pequenos. É o objeto soberano da infância. Ao brincar e ler, a criança se insere como sujeito da dúvida, como um interlocutor para quem foram criadas as produções culturais. O brinquedo na literatura para crianças mostra a atemporalidade do inconsciente, reedita as marcas infantis que convivem com as atuais; marcas anteriores e posteriores ao Édipo: a criança que há em todos nós.
Como trabalhamos com duas categorias da cultura – o brinquedo e a literatura –, observamos que a produção cultural para a infância tem funcionado como um substituto para coisas que as crianças perderam, como o quintal, a rua, a praça, os grupos, a família, os pais... E, para sustentar essas perdas, o mercado de consumo tem ditado as regras, marcadas por um autoritarismo que entra nas nossas casas pela televisão ou por outros meios de comunicação, como o computador. No entanto, podemos fazer dessas produções encontros entre mundos que se distanciaram, o passado e o presente, o adulto e a criança, o brinquedo e a criança, a serviço da memória, da criatividade e da criação. Seria desejável poder tomar a literatura para crianças como uma expressão de arte comprometida com o imaginário da criança.
A literatura como brinquedo não é uma novidade da idade contemporânea, mas é, sim, uma marca das criações artísticas comprometidas com o belo, com o inconsciente e com o deleite. Essa literatura valoriza a criança como sujeito da dúvida e da produção de sentidos. Ela abre caminhos para a criança se defrontar consigo mesma e com os outros, permite a subjetivação e a criação de si, tão necessárias à infância.
Referências
PARREIRAS, Ninfa. O brinquedo na literatura infantil: uma leitura psicanalítica. São Paulo: Biruta, 2009.
Obras de Ninfa Parreiras para crianças: A velha dos cocos, publicado pela Global; Com a maré e o sonho, pela RHJ; Um mar de gente, pela Girafinha; Coisas que chegam, coisas que partem, pela Cortez; Um teto de céu, da DCL.
Este é um excerto da dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (USP), para a obtenção do título de mestre em Letras.
Publicado em 27 de outubro de 2009
Publicado em 27 de outubro de 2009
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