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O primeiro disco

Pablo Capistrano

Reza a lenda que o primeiro sujeito a tocar jazz morreu isolado, internado em um hospício, com um sombrio diagnóstico de demência precoce. Buddy Bolden bebia muito. Em 1907, enquanto animava as noites de Storyville, bairro boêmio de Nova Orleans, teve um surto de psicose alcoólica que parece ter de algum modo lançado sua carreira ladeira abaixo na escalada rumo à demência e ao ostracismo.

Segundo a tradição, Bolden teria criado o Big Four, uma cadência na quarta batida das marchas tocadas pelas bandas de rua, na qual tambores e pratos entravam juntos, produzindo um intervalo que permitia uma ruptura, uma síncope no tempo linear da tradição de música europeia. Aquilo era um convite, uma suspensão para o improviso, para o inusitado, para aquilo que não se pode antecipar.

Por essa invenção ele era chamado nas ruas de Nova Orleans de “King Bolden” e mesmo tempos depois, internado em um hospício, mergulhado naquele abismo de um surto esquizofrênico (em tempo de carência de medicações psiquiátricas mais sofisticadas), foi homenageado por gente como Sidney Bechet e Duke Ellington.

Buddy Bolden é considerado o pai do jazz, porque um estilo musical que nasceu como um meio de ritmar a fornicação sem fim que embalava as noites dos cabarés de Storyville precisava mesmo arrumar um pai. Se ele foi ou não o inventor do Big Four não importa muito. O que realmente importa é o vazio, o silêncio mitológico que esses primeiros músicos de jazz deixaram. Seus nomes são lembrados, mas seu som se perdeu na ausência de gravações de uma música fundamentalmente analfabeta. Uma música que se recusava a ser sistematizada na mesma fôrma gráfica que nos legou Mozart, Haydn, Beethoven. 

O termo jazz, dizem, surgiu como um neologismo a partir de da ligação do J (um dos sinais fálicos do nosso alfabeto) com a palavra ass (não preciso traduzir o significado, não é?). Procriação, fornicação, vitalidade, densidade sexual, desejo. Tudo isso se traduz na música que surgiu em meio ao trabalho duro das prostitutas de Storyville. Uma música que hoje se pode ouvir como eco, ruína ou resíduo na linhagem dos mestres que seguiram a trilha de Bolden.

Freddie Keppard, por exemplo, foi um dos que continuou explorando a deixa que o Big Four proporcionava. Contam que ele chegou a Nova York em dezembro de 1915 com sua Original Creole Orchestra e apresentou para o povo da Big Apple aquela que seria a trilha sonora perfeita para a experiência radical de construção daquela cidade. Nessas apresentações, Keppard explorou magnificamente um dos elementos mais característicos do jazz: o solo.

No intervalo da batida de Bolden, Keppard improvisava na corneta, criando desvios e sinuosidades por sobre a base rítmica que a orquestra se propunha a construir. Esse elemento era a sua marca existencial, sua contribuição, sua presença. Era o atestado de sua realidade, de sua vitória contra a morte. Ali, na hora do solo, Keppard era apenas ele mesmo. Única e radicalmente ele mesmo. Em um país que negava aos afro-americanos a condição de seres humanos, que os anulava, lançando-os em um nada sem nome de uma existência invisível, o solo de Keppardera o ato mais puro de insubordinação e de revolta. Um ato de afirmação de si mesmo, de superação de tudo aquilo que o limitava e que o condenava ao vazio social a que era submetido. Se os músicos de uma orquestra europeia se contentavam em repetir mecanicamente os ditames do compositor ou do maestro, no jazz nascia uma tendência fundamental da música do século XX: o músico era o compositor e era o maestro, e o solo era justamente o momento em que sua existência se justificava e se afirmava.

Por isso, quando Keppard foi convidado para gravar o primeiro disco de jazz da história, recusou. Seu medo, que beirava a paranoia, era de ser copiado. Perder seus solos, sua unicidade, sua mais significativa contribuição para o mundo. Perder isso era como perder sua marca pessoal, a prova da sua própria existência e o único trunfo que tinha para lutar contra uma condição de marginalidade. Por causa dessa paranoia, Keppard costumava a tocar com um lenço cobrindo a mão, para que outros músicos não acompanhassem os movimentos de seus dedos e roubassem seus tão preciosos solos.

25 dólares foi o preço oferecido pela gravadora para o registro da sua música. Keppard teria respondido: “vinte e cinco dólares! Eu bebo mais do que isso de gim em um dia!”. Realmente era menos do que ele ganhava tocando em algum cabaré vagabundo de Storyville. Só entre 1924 e 1927, quando o jazz já despontava como a trilha sonora que os EUA iriam dar ao mundo, é que Keppard resolveu gravar algumas de suas canções. Muito pouco para evitar que morresse esquecido e sozinho, vítima de tuberculose e alcoolismo, como seu antigo mestre Buddy Bolden.

A ironia é que em 26 de fevereiro de 1917 uma banda formada apenas por músicos brancos, denominada Original Dixieland Jazz Band gravou Livery stable blues, o primeiro disco de jazz da história. Nick La Rocca, que em 1925 teve um colapso nervoso e abandonou a música para trabalhar na construção civil, era o líder daquele grupo. Músicos que repentinamente, mesmo sem sombra da genialidade dos solos de Keppard ou a criatividade inovadora de Bolden, foram saudados pela imprensa norte-americana como inventores do jazz. Durante anos, a crítica musical estadunidense, usurpando mais do que os solos de Keppard ou a criatividade de Bolden, defendeu a tese de que o jazz era um produto de brancos que os negros haviam copiado e apenas ajustado a alguma de suas qualidades rítmicas.

A estrada da autoconsciência norte-americana era longa e o mundo ainda iria demorar muito para dar o crédito devido e fazer justiça aos pioneiros dessa música, sem a qual a própria ideia de modernidade não faria nenhum sentido.

Publicado em 03/11/09

Publicado em 03 de novembro de 2009

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