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Sobre o marxismo e o acesso à universidade
Marlon Baptista
Doutorando em filosofia
A crítica de Marx à ideologia
O modo problemático como a história do Ocidente lidou com o pensamento pode mostrar suas consequências em diversos aspectos; dentre eles, o modo de compreender a organização da sociedade moderna e as suas propostas educacionais. O filósofo Karl Marx (1818-1883) foi um exemplo importante no que se refere à crítica à história do pensamento ocidental, acusando-o de se utilizar de abstrações e conceitos universalizantes para compreender a realidade humana, mas sem levar em consideração as peculiaridades históricas, concretas e materiais dos indivíduos abarcados pelo abstrato conceito de “humanidade”. No caso de Marx, tratava-se de uma crítica à ideologia, a qual poderia ser compreendida como um discurso mais ou menos destituído de validade objetiva mas que, mesmo assim, seria mantido por conta dos interesses claros ou ocultos daqueles que o utilizam. Um exemplo disso se mostra na concepção dos direitos humanos, em que se diz que todos os seres humanos são livres. Ao se pensar em sua aplicação econômica no liberalismo, por exemplo, em que todos são livres para produzir e conquistar, por meio do próprio trabalho, suas riquezas e bens, a incompatibilidade entre a realidade e o pensamento se torna patente. Seguindo a crítica de Marx, a afirmação de que todos os seres humanos são livres teria um caráter ideológico na medida em que não houvesse também as mesmas possibilidades de autorrealização dos indivíduos. Isso pode nos auxiliar a compreender algumas das motivações de diretórios estudantis pelas universidades do Brasil, que lutam pelo fim dos vestibulares, pois a proposta do vestibular seria uma evidência desse caráter de discurso ideológico, porque, ao se pressupor que a todos é dada a mesma chance para ingressar na universidade, a partir da neutralidade da aplicação de uma única e mesma prova, oculta-se a desigualdade presente nesse processo, que é a desigualdade de oportunidades educacionais que os vestibulandos tiveram para poder estar mais ou menos bem preparados para as provas do vestibular. Ou seja, trata-se das discrepâncias quanto ao acesso à educação básica, pois, se se estabelece um processo seletivo para o ingresso à universidade, naturalmente aqueles que estão mais bem preparados terão maiores chances, e este melhor preparo não depende somente do nível do esforço pessoal (como pressupõe a doutrina liberal), mas também das oportunidades de acesso a um ensino de qualidade, que, na realidade de nosso país, em que o ensino público básico apresenta tantos graves problemas, tem a ver diretamente com discrepâncias de cunho social. Ou seja, as escolas particulares (em geral) têm qualidade de ensino superior à das escolas públicas, de modo que o vestibular acaba por proporcionar vantagens àqueles economicamente favorecidos, auxiliando a perpetuar a história da universidade como espaço elitizado e sem relações mais diretas com a sociedade.
Por conta disso, para Marx a única forma de o discurso sobre a liberdade poder ter real sentido seria numa organização política em que todos tivessem oportunidades iguais. No caso de Marx, a forma de implementação dessa igualdade seria a estatização de todos os meios de produção privados, de modo que o Estado se constituísse como a representação dos desejos e objetivos dos indivíduos que o compõem, tendo absoluto controle sobre a educação, a economia, a ciência e a propriedade.
Com esta introdução, pretendo agora problematizar a postura de Marx sobre a ideologia e, consequentemente, a daqueles que lutam por formas de inclusão na universidade.
Herança e contraposição de Marx: o idealismo
A crítica de Marx à história do pensamento ocidental é válida, ainda mais no século e país em que ele pensou e escreveu. O século XIX na Alemanha foi marcado como um momento de colapso da Filosofia enquanto forma de saber privilegiada no interior da cultura. Foi nesse século que caiu por terra a pretensão universalizante de explicar a totalidade dos acontecimentos humanos no decorrer da história por meio da corrente filosófica então predominante, chamada idealismo absoluto e representada em particular pelo filósofo Georg W. F. Hegel (1770-1831). Uma característica específica dessa corrente de pensamento que me interessa aqui é o modo de ela pensar a realidade como uma constante consumação daquilo que ela deve ser: o constante desenvolvimento e autocompreensão do Espírito, o qual seria a humanidade inteira no decorrer de sua história. Isso significa que, para o idealismo, a realidade seria como algo formado por contradições que seriam constantemente superadas, surgindo então novas contradições e novas superações, infinitamente. Desse modo, poderia ser explicado, por exemplo, um momento de injustiça, pobreza ou subjugação de um indivíduo por outro, de uma classe por outra. Pois esse momento seria uma contradição necessária para o processo de desenvolvimento da autocompreensão da humanidade ao longo da história, levando à superação da contradição e à continuidade do processo de aperfeiçoamento do ser humano. Isso significa que a história humana teria um sentido e uma finalidade; não seria casual, mas seria perpassada por um processo racional e sistemático. Entender a realidade como um sistema é outra característica fundamental do idealismo, entendendo-se por sistema uma totalidade racionalmente ordenada em que cada elemento ocupa um lugar necessário, de modo que, sem ele, o todo carece de ordenação, de forma que até mesmo a falta de um elemento possa ser percebida pela disposição de todos os outros – assim como acontece com um organismo animal (como o nosso corpo) quando uma parte não desenvolve corretamente sua função e interfere no funcionamento das outras; ou como acontece na natureza como um todo, entendida como ecossistema, em que a desregulação de um elemento traz consequências diretas em outros, como o que vem acontecendo com as várias consequências do aquecimento global.
Marx e o seu contexto cultural
Marx identifica o idealismo como um discurso ideológico por entender que sua forma de explicar o processo de contradições somente admite a manutenção do status quo, do atual estado das coisas, pressupondo que as hierarquias superiores, por meio do crescimento de sua compreensão, resolveriam gradativamente os problemas sociais gerados pelas diferenças tão grandes estabelecidas entre os seres humanos pela distinção econômica das classes – ou seja, a questão se resolveria supostamente de cima para baixo. Mas é interessante notar que a cultura da qual Marx participava – a cultura alemã – tinha uma postura avessa a revoluções, por compreender que o pensamento deveria anteceder a ação e que as mudanças concretas somente deveriam acontecer com o devido amadurecimento de ideias que levasse às mudanças (sociais e econômicas) de forma orgânica, natural e necessária. Não é à toa o atraso econômico, político e social da Alemanha em comparação às outras duas potências europeias, França e Inglaterra –em ambos os países houve revoluções burguesas e rápida industrialização, enquanto na Alemanha predominava a herança de um sistema feudal com o domínio político da aristocracia pautado na produção agrária.
Assim, quando digo que a crítica de Marx é verdadeira quanto à discrepância entre pensamento e ação na Alemanha, refiro-me também aos âmbitos acadêmicos, em que a intelectualidade burguesa apolítica realizava um discurso culto e propagava valores culturais como meio de compensação pelo seu fracasso político. Isso significa que a estagnação política e econômica da intelectualidade burguesa ocasionava uma valoração exagerada da interioridade, da formação culta, sem necessária intervenção social ou qualquer outra forma de exteriorização concreta, como a moralidade, por exemplo. Como consequência disso, os alemães se tornaram conhecidos por terem profunda interioridade, a qual, se vista negativamente, pode significar incompatibilidade entre pensamento e ação, o que se relaciona diretamente com a inabilidade em exteriorizar-se no sentido social, ou seja, por conta desta inabilidade em interferir no mundo á sua volta, criou-se um valor tão grande para a interioridade do espírito ou da personalidade.
Marx, ao criticar essa cultura, fez com que uma classe até então não participante de determinação alguma no interior da cultura se tornasse consciente da exploração a que estava subjugada: o proletariado. E principalmente fora da Alemanha, em culturas em que os modos de produção moderna industrial já estavam mais avançados, como França e Rússia, por exemplo.
Problemas do marxismo
Acontece que Marx, ao pretender combater a ideologia, tinha como pressuposto que a ideologia era o discurso falso e que seu discurso de combate a ela seria o discurso verdadeiro. Além disso, pautando-se no idealismo, sustentava que a superação das contradições devia culminar num sistema político em que todos fossem econômica e politicamente iguais: o socialismo. Desse modo, por mais revolucionário que seja o pensamento de Marx, ele participa ainda assim de uma característica da tradição: a pressuposição de que aquilo a ser combatido é mentira e que o combatente porta a verdade. Ou seja, de que existe um discurso que é a verdade, de forma absoluta.
A partir daí, o primeiro problema é que os marxistas atuais ao redor do mundo por vezes ignoram contextos específicos unicamente nos quais é possível falar propriamente de marxismo, como um sistema político dividido entre burguesia e proletariado. Essa divisão em nosso país, por exemplo, é impensável, pois, pelo fato de aqui nunca ter ocorrido uma revolução burguesa, a distribuição de renda é tão desigual que é difícil pensar numa classe burguesa com poder político, sendo este dominado no mais das vezes por grandes empresários ou latifundiários que são eleitos por meio de manipulação da massa pobre e mal educada que se torna seu eleitorado. Além disso, numa época em que não existe mais algo como lastro (concentração em ouro como prova de riqueza) e há a virtualização do capital por meio da especulação financeira e sistemas de ações em sociedades anônimas – além de terceirizações de terceirizações –, torna-se inviável detectar conflito de classes tão facilmente determináveis e definíveis – como burguesia e proletariado.
Em segundo lugar, os atuais marxistas, além de ignorar o contexto em que o discurso de Marx foi possível, mantêm-se ainda no interior de uma ideologia: a de que o mundo humano é composto de forma maniqueísta, com os bons de um lado e os maus de outro; além disso (e o que é mais problemático), acreditam que seus discursos são uma verdade contra uma mentira, não levando em consideração que todos os discursos são formulados a partir de interesses, de perspectivas conflitantes, as quais são sempre interpretações inseridas num meio específico que as possibilita.
A ideologia do marxismo
Assim, podemos refletir um pouco sobre a questão do acesso à universidade. A reivindicação pelo acesso mais justo à universidade faz sentido, mas não é nada simples. As variadas formas de inclusão social que já ocorrem nas universidades brasileiras apresentam problemas, ainda que possam ser movidas por intenções legítimas.
A instauração de cotas para afrodescendentes é uma questão que pode servir de exemplo nesta nossa reflexão. Recordo-me de que, na época da discussão sobre a lei de cotas, um amigo meu, negro, discordava categoricamente das cotas, por achá-las injustas. De origem pobre, com nível de oportunidade como a de vários outros brancos ou negros, ele considerava mais correto a não existência de privilégios – ainda mais ele, tão inteligente, com facilidade de aprender e com imensa habilidade discursiva.
Esse exemplo serve para problematizar um aspecto da inclusão na universidade em relação a um pressuposto marxista: o de que as condições materiais determinam o pensamento, e não o contrário – o qual seria, a seu ver, uma ideologia. Esse meu amigo teve duas determinações concretas: sua condição social e sua cor (pois o pressuposto da lei de cotas para afrodescendentes é a do vigor em geral destes dois fatores), e nem por isso seu pensamento foi determinado por elas. Ou seja, inverter as coisas não basta para combater a ideologia, pois assim somente se cria outra. É importante lembrar que a postura de alguém diante de uma questão não tem como fator determinante de decisão as condições concretas de sua vida, mas sim o modo como o indivíduo interpreta, valora, julga a sua condição concreta. Assim, o pressuposto marxista de que só seria necessário trazer o esclarecimento para as massas para ocorrer a revolução seria um grande erro, pois quando alguém acata a qualquer ideologia é por que, de alguma forma, esta ideologia o conforta – como por exemplo, outro indivíduo negro que, com maiores dificuldades intelectuais, ainda que com as mesmas oportunidades que o meu amigo, considerasse interessante a lei por lhe proporcionar uma vantagem; ou ainda outro que concordasse num sentido histórico e político, pensando ser justa essa reparação para a sua herança e a de seus antepassados.
Tentativas várias têm sido realizadas no interesse de abrir mais as portas da universidade para a sociedade, como alfabetização de adultos na universidade, cotas étnicas e sociais, cursos de extensão à comunidade etc. Em geral há o discurso de que a universidade tem o dever de compensar danos históricos causados a determinados grupos sociais. Tudo bem, estes danos históricos são inegáveis. Mas me parece que há um equívoco quanto ao método de resolução do problema. Pode parecer a repetição de um lugar comum, mas tentar resolver a partir da própria universidade um problema tão grande tem somente efeitos paliativos, como o aumento do números de pessoas com diploma. As consequências desastrosas dessa tentativa de solução que não privilegia as bases (o ensino básico, além da melhoria geral das condições de vida da população) não estão sendo consideradas, como a geração de péssimos profissionais por conta da diminuição do rigor na avaliação tanto do ingresso quanto das avaliações de cursos universitários que prezam a justiça histórica, como se ela fosse realmente possível sem que sejam resolvidas questões que lhe são anteriores. Fala-se no caráter emergencial dessas ações, mas não estou convencido de que a pretensão de igualdade possa pretender ignorar (ainda que somente institucional ou burocraticamente) a existência de diferenças entre indivíduos, como uma maior ou menor habilidade para com determinada área de atuação.
Parece-me necessário ser repensado o sentido da universidade, a sua proposta originária, qual a sua finalidade; pois cada vez mais a universidade se descaracteriza, ainda que mantenha o mesmo nome. Um dos problemas da democracia – mesmo que seja o sistema político mais viável – é a pressuposição não de que todos têm direitos iguais, mas de que todos têm habilidades iguais.
Referências bibliográficas
MARX, Karl. O Capital. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Handen. 2ª Ed.. Brasília: Editora da UnB, 1999.
Publicado em 3 de novembro de 2009
Publicado em 03 de novembro de 2009
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