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Educação nos espaços populares: a experiência do I Seminário de Educação da Maré

Eblin Farage

Assistente social, professora da UFF e diretora da Redes de Desenvolvimento da Maré

Eliana Sousa Silva

Professora, diretora da Redes de Desenvolvimento da Maré

As favelas cariocas, especialmente a partir dos anos 1980, têm sido retratadas pela mídia, de forma geral, a partir da violência. Esse enfoque, centrado nas ações dos grupos criminosos que passaram a dominar os territórios favelados desde aquele período, ignora as diferentes formas de violência que produzem esses espaços.

Vistas como os espaços da ausência, da precariedade e da falta de recursos, as favelas passaram a ser consideradas espaços específicos, à parte da cidade formal. Um espaço que seria constituído com regras próprias, no qual o Estado não teria condições de intervir e ordenar dentro da mesma lógica vigente para outras áreas da polis. Considerada pelo senso comum como espaço caracterizado pela informalidade, em que as relações são instituídas a partir da malandragem e da desordem, seus moradores acabaram sendo destituídos de sua condição de cidadãos (o ser da cidade), ou seja, são incapazes de usufruir todos os espaços, serviços e direitos.

Essa imagem construída histórica e culturalmente sobre as favelas cariocas contribui para a reprodução de estigmas e estereótipos que afastam os seus moradores das oportunidades, dos serviços e direitos que a cidade oferece aos habitantes. Como afirma Paulo Lins no prefácio do livro Favela: alegria e dor na cidade: “A favela sofre, ainda, os mesmos males e preconceitos presentes desde a época de seu aparecimento no jogo político de uma sociedade outrora escravista e, agora, racista e egoísta” (Silva e Barbosa, 2005, p. 15). Esse preconceito se expressa, por exemplo, no déficit da oferta de serviços básicos como correios, bancos e entregas de compras, pelo simples fato de esses espaços serem considerados “áreas de risco”.

Na contramão dessas representações e práticas, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, a Maré, vem se desenvolvendo, criando e recriando o cotidiano e buscando alternativas para a superação das principais dificuldades enfrentadas pelos seus moradores, em especial no campo das políticas sociais.

Nesse sentido, este texto busca trazer subsídios para a reflexão sobre uma das questões fundamentais no campo da transformação da realidade social dos espaços populares: a qualidade da educação da escola pública. Isso porque, considerando nossa vivência como dirigentes de uma organização atuante há muitos anos no território da Maré, consideramos que apenas através da criação de alternativas inovadoras e sustentáveis no campo educacional será possível pensar alternativas e propostas concretas para a mudança das favelas e outros territórios similares na cidade. A materialização dessas proposições implica a devida articulação de diversos atores sociais: profissionais da rede escolar, estudantes, moradores e organizações locais.

Nesse quadro, a Redes da Maré coordenou a realização de uma iniciativa inédita no espaço das favelas cariocas: o I Seminário de Educação: refletindo sobre o ensino fundamental. É essa iniciativa que descrevemos nas páginas que se seguem.

As motivações

O Seminário de Educação da Maré articulou o conjunto de profissionais das 16 escolas da Maré, além de organizações locais; foi realizado em 7 de novembro de 2009. O evento decorreu de um processo de parceria entre a Redes de Desenvolvimento da Maré, as escolas públicas locais, a IV Coordenadoria Regional de Ensino e a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

A Redes da Maré é uma organização não-governamental que possui longa tradição de trabalhos nas áreas de educação, cultura, artes, comunicação e mobilização comunitária, atuando preferencialmente no território da Maré. O eixo central de sua estratégia acontece a partir da articulação de diferentes instituições – públicas, privadas, comunitárias e não-governamentais – que, de maneira partilhada, encaminham ações em rede que contribuam para a melhoria da qualidade de vida dos aproximadamente 140.000 moradores da região.

No caso específico do tema educação, a Redes prioriza a elaboração e realização de projetos sociais que, articulados com as escolas públicas da região, possam contribuir para a melhoria da qualidade do ensino, valorizando a escola pública como um espaço que possa garantir às crianças de origem popular perspectivas de ampliação do seu universo social, cultural e intelectual. Há ainda direcionamento no sentido de priorizar a reflexão e a formação do conjunto de agentes sociais – de dentro e de fora da escola – que atuam nas realidades da Maré.

A experiência acumulada pelo conjunto dos profissionais atuantes nas escolas da Maré ao longo dos anos, em especial a partir do Programa Criança Petrobras na Maré, possibilitou o contato com as demandas e necessidades de crianças, adolescentes e pais/responsáveis da região, gerando um conhecimento que precisava ser objeto de reflexão e partilhado entre os diferentes profissionais da educação ali inseridos.

Importante também é o reconhecimento dos desafios que se colocam. Com efeito, apesar dos esforços empreendidos até aqui, muito há para ser feito para que os alunos consigam desenvolver as competências desejáveis no campo da palavra e para que as escolas, na sua estrutura geral, atinjam desempenho adequado às necessidades de seus alunos. Desse modo, será possível efetivar mudanças no cotidiano escolar, de forma a garantir, aos profissionais da educação, condições adequadas de trabalho e, aos alunos, condições adequadas de ensino-aprendizagem, a partir de uma boa frequência e de um adequado desempenho escolar.

A realização do I Seminário de Educação da Maré, nesse sentido, se insere na perspectiva de ampliar a compreensão sobre as reais condições educacionais dos alunos matriculados nas escolas da região e contribuir no enfrentamento, de maneira partilhada com o conjunto de instituições públicas de ensino fundamental, dos desafios presentes na realidade educacional local.

Entendemos que, através de passos como esse, será possível inaugurar uma nova dinâmica de enfrentamento de problemas estruturais da educação no bairro Maré.

O Seminário destinou-se a todos os profissionais de educação (diretores, diretores adjuntos, professores, coordenadores pedagógicos, estagiários, voluntários, educadores das instituições parceiras, integrantes da RPE e do polo de atendimento extracurricular) atuantes na Maré, sendo um espaço de abertura para que, de maneira coletiva, fosse realizado o diálogo entres as diferentes experiências e realidades de cada escola. É uma estratégia, ainda, de interação entre esses profissionais, de modo que tenham condições de socializar desejos e projetos de melhoria da escola pública na Maré.

Como objetivos do seminário, destacamos:

  • Refletir sobre os desafios de definir um trabalho educativo conjunto no bairro Maré, voltado para a melhoria do desempenho dos alunos de ensino fundamental;
  • Propiciar o encontro e a integração do conjunto dos profissionais de educação atuantes na Maré, a fim de trocar experiências e pensar formas de enfrentamento dos desafios postos no momento.
  • Documentar e difundir, por meio da produção de uma publicação, as reflexões e definições do I Seminário de Educação da Maré: refletindo sobre o Ensino Fundamental.
  • Definir metas e ações estruturantes no campo da educação voltadas para o bairro Maré.
  • Deliberar, por unidade educacional, prioridades e projetos que contribuam para a melhoria dos níveis de domínio da palavra com baixo desempenho nas avaliações realizadas pela SME no ano 2009.
  • Construir um fórum de educação da Maré, com o objetivo de realizar estudos, reflexões e debates que apontem para a melhoria da qualidade da educação no bairro Maré.

Metodologia

Um aspecto central na realização do seminário em pauta foi a estratégia de mobilização utilizada: pelo contato direto com as direções das escolas, em reunião convocada pela IV CRE, e pelo contato direto com os profissionais da educação, através da inserção nos centros de estudos e de uma carta de motivação dirigida a todos os profissionais. A resposta a essa mobilização foi extraordinária: de 429 professores atuantes na rede local, 350 se inscreveram no encontro. O fato expressa o desejo profundo dos profissionais locais em buscar caminhos para seus desafios e questões cotidianas.

No processo de preparação do seminário, a Redes aplicou um questionário junto às direções das escolas envolvidas, com o objetivo de identificar suas percepções sobre a educação na Maré, seus desafios e possibilidades de superação. O material oriundo desse levantamento orientou a proposta de temas e as questões do encontro. Além disso, a equipe organizadora sistematizou os resultados de três provas de avaliação aplicadas pela Secretaria Municipal de Educação na rede, em 2009, de modo a possibilitar que as equipes das escolas olhassem de forma detalhada os resultados de sua unidade de ensino em conexão com o quadro geral da Maré. Esse trabalho foi iniciado nas reuniões dos centros de estudos que antecederam o seminário.

O dia de realização do seminário foi marcado, para nós, por um sentimento profundo de esperança e tensão: a presença de tantos professores, moradores e gestores da Maré revelou o profundo desejo e vontade do conjunto de atores, sinalizando a transformação de sua realidade pessoal e coletiva.

Durante a manhã, foi possível refletir sobre a educação nos espaços populares e fazer um panorama do desempenho das 16 escolas nas provas de avaliação aplicadas pela SME. Na parte da tarde, os profissionais de educação foram convidados a olhar especificamente para suas escolas, fazendo uma avaliação das principais dificuldades encontradas no processo pedagógico e sendo estimulados a propor diretrizes para a educação na Maré em 2010.

Reunidos por unidades de ensino, cada escola elegeu um relator, que apresentou, em plenária, as considerações do grupo. Questionados sobre os principais fatores que contribuem para o baixo desempenho dos alunos nas escolas da Maré, os profissionais da educação, reunidos por escola, destacaram, de forma geral: a baixa qualidade da estrutura física das escolas, a pouca participação dos pais na vida escolar dos alunos, o grande número de alunos por sala, a falta de profissionais da educação nas unidades de ensino e a dificuldade de encaminhamentos diversos para o atendimento de demandas de saúde e assistência social dos alunos e de sua família.

Como ações que devem ser implementadas para contribuir na melhoria da qualidade do ensino na Maré, os profissionais da educação destacaram, de forma geral: ampliação do número de escolas na Maré; redução do número de alunos em sala; trabalho específico de envolvimento das famílias na vida escolar das crianças; inserção de profissionais técnicos, como assistentes sociais, psicólogos e fonoaudiólogos, entre outros, nas unidades de ensino, diminuição da violência na escola e no seu entorno e ampliação do quadro de funcionários das escolas.

Sobre as principais diretrizes para 2010, os participantes destacaram, de forma geral: necessidade de maior investimento nos profissionais da educação; ampliação do número de vagas; gestão democrática e participativa das unidades de ensino; maior autonomia para as escolas e maior diálogo entre o poder público e as escolas.

O material produzido pelas escolas será sistematizado pela Redes da Maré. Ele será objetivo de estudo e proposições de uma comissão a ser formada com representantes das escolas. Seu produto central será uma carta de intenções sobre a educação na Maré para o ano de 2010, a ser entregue ao poder público e cobrada pelos atores locais.

Como desdobramento do seminário, e de modo a manter o processo de mobilização e incentivo à participação dos profissionais da educação da Maré, a Redes está organizado um livro, intitulado Escola, Violência e Segurança Pública: caminhos possíveis para a melhoria da Educação na Maré, reunindo artigos de diferentes profissionais atuantes na Maré sobre a temática, de modo a contribuir para a reflexão sobre questões surgidas no seminário a respeito dos temas assinalados.

O seminário finalizou suas atividades com a proposta de montagem de uma comissão para trabalhar os resultados e pensar uma proposta para dar continuidade ao processo de mobilização dos profissionais da educação. O objetivo maior, após esse auspicioso evento, é dar sequência ao trabalho iniciado, o que inclui a constituição de um fórum permanente sobre educação na Maré e a organização de um seminário anual sobre educação na Maré. Com iniciativas como essa, temos a crença de que será possível construir uma nova realidade social na Maré e, por extensão, na cidade do Rio de Janeiro. Uma realidade que seja sustentada em um projeto ampliado de cidadania, na qual se reconheça o direito fundamental de todos os moradores de viverem na cidade de forma plena.

Referência

SILVA, Jailson de Souza e; BARBOSA, Jorge Luiz. Favela, alegria e dor na cidade. Prefácio de Paulo Lins. Rio de Janeiro: Ed. Senac-Rio, 2005.

Publicado em 17 de novembro de 2009

Publicado em 17 de novembro de 2009

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