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John Lennon, 29 anos depois

Alexandre Amorim

A noite de 8 de dezembro de 1980 trouxe uma notícia ruim para o mundo inteiro. O ex-beatle John Lennon havia sido baleado. Ainda não se sabia por quem nem por quê, e a perplexidade se tornou ainda maior quando ficou claro que os tiros disparados vieram da arma de um fã esquizofrênico que horas antes havia pedido um autógrafo do artista na capa de seu novo LP.

Como se fosse o desfecho de uma tragédia teatral, a morte de John Lennon interrompia sua volta ao mundo da música. Distante durante cinco anos da indústria fonográfica, quando resolveu “assar pães e cuidar de seu filho”, Lennon havia acabado de gravar um disco em parceria com sua mulher, Yoko Ono. Era uma espécie de diálogo entre eles, com músicas apaixonadas, mas trazendo uma visão amadurecida da relação. Em entrevistas, John demonstrava otimismo com seu retorno à arte e com o mundo a seu redor. Após o deslumbramento com os Beatles, nos anos 1960, e a bad trip dos anos 70, os anos 80 pareciam promissores ao compositor. Mas a promessa não se cumpriria.

Lennon já havia se envolvido com política e movimentos sociais desde o final dos anos 60, quando apoiou os Panteras Negras e a luta contra o envolvimento norte-americano na guerra do Vietnã. Não por acaso, muitos veem seu assassinato como um complô político, uma vez que o artista estava voltando a chamar a atenção da mídia. Morador de Nova Iorque, Lennon se sentia no centro do mundo, e desde os Beatles estava acostumado a ser porta-voz de vários segmentos sociais. A trama que aponta o FBI como mandante de sua morte parece bastante improvável, mas a recente descoberta dos papéis guardados pelo escritório de investigações americano a respeito de Lennon acaba por alimentar divagações conspiratórias. Delírios à parte, após 29 anos de sua morte, é um exercício interessante imaginar como o músico estaria atuando frente a questões mundiais como a busca por uma cultura de desenvolvimento sustentável e as intervenções norte-americanas nas questões do Oriente Médio.

Como John Lennon agiria hoje é, obviamente, uma incógnita. Nascido durante a Segunda Guerra Mundial e influente na cultura dos anos 60, o cantor passeou por movimentos sociais importantes, como a luta por igualdade racial, o feminismo e o pacifismo hippie. Seu engajamento como artista foi tímido durante os anos 60, uma vez que os Beatles preservavam sua imagem apolítica, mas, ainda com o grupo, o músico lançou a música Revolution, em que afirmava que “todos nós queremos mudar o mundo”, mas que não contassem com ele somente para matar seres humanos ou mesmo para carregar fotos de Mao Tsé-Tung. “Seria melhor você libertar sua cabeça”, ele diz na letra. Talvez a maior preocupação de Lennon tenha sido renovar o conceito de utopia como meta a ser atingida. Se o ex-beatle foi influente, também sofreu influências da cultura de sua época. As experiências com alucinógenos e meditação o levaram a perceber que toda revolução começava na cabeça, e não deveria haver nela os limites impostos pelas relações sociais. A utopia seria o ponto de partida, a pedra de toque para que as relações se desenvolvessem. Como artista, Lennon demonstrava sua vontade de expressão com músicas cada vez mais experimentais e letras que deveriam ser entendidas mais pela associação de ideias do que pela sua coerência.

Em 1971, foi lançada talvez sua canção mais conhecida, Imagine, cuja letra é simples e direta. Apesar de usar imagens simplórias, como o convite a imaginar um mundo sem fronteiras, sem religiões e onde se viva em fraternidade constante, a música não deixa de ser um coroamento de sua ideologia utópica. Lennon não se importava com a impossibilidade prática de sua proposta, porque sabia que a arte não pode se limitar a isso, mas também não se sentia impedido de tentar levar seu pensamento utópico para a práxis.

Suas manifestações políticas com Yoko Ono, seja no Bed-in, em que passaram dias sobre uma cama dando entrevistas pregando a paz, seja apoiando explicitamente os Panteras Negras, grupo americano que pregava a luta armada contra o racismo, podem ser contraditórias, mas eram também um reflexo de sua tentativa de uma sociedade igualitária.

Os anos 60 tiveram como herança algumas lutas fundamentais, como as suffragettes inglesas, que lutavam pelo direito de voto no final do século XIX, a satyagraha pregada por Gandhi pela independência da Índia, iniciada na década de 1920, e a luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Todas essas lutas desaguaram em um sentimento único de direito à liberdade que foi disseminado em várias direções durante os chamados anos de contracultura. Se na estética os cabelos apareciam mais longos e desgrenhados e as roupas apareciam mais coloridas, na ética os valores também estavam em ebulição. O grito por liberdade, no entanto, não tinha objetivo específico e, apesar de ouvido por todos, acabou por ser assimilado socialmente como um sentimento de desconforto com o que estava estabelecido, mas sem força e orientação suficientes para transformar esse grito generalizado em ação objetiva. Alguns focos mais organizados se formaram, outros focos tomaram a luta pela liberdade como princípio armado e se rebelaram contra ditaduras terceiro-mundistas, mas em geral o sonho pela liberdade se tornou um slogan absorvido pela mídia. E, em 1970, o artista John Lennon, no papel de captador do espírito de sua época, afirmou, com tristeza e mágoa: “o sonho acabou”.

A trajetória de envolvimento político do artista começou ainda no meio dos anos 60, com o incômodo de ver a Guerra do Vietnã acontecer e se prolongar sem que ele pudesse se manifestar, por caprichos de publicidade dos Beatles. Segundo o próprio cantor, eles sabiam o que acontecia a seu redor, mas se fechavam em seu próprio mundo. Aos poucos, John Lennon começou a driblar essa proibição velada de se manifestar. Em 1966, respondendo às críticas por tocar rock em um local sagrado de artes marciais no Japão, Lennon afirmou que a música deveria ser considerada mais sagrada do que lutas. Após gravar Revolution, os Beatles se sentiam mais à vontade para se manifestar politicamente e, em 1969, Lennon devolveu sua medalha de membro do Império Britânico, ganha anos antes, protestando pelo envolvimento inglês no massacre de Biafra e pelo apoio aos Estados Unidos no Vietnã. Após a separação dos Beatles, em 1970, o músico estava livre para se engajar política e socialmente.

Durante o início da década de 70, Lennon acreditou que os movimentos sociais deveriam ser encorajados e mais bem organizados. Acreditava que Nova Iorque era a capital do mundo e se mudou para lá, no intuito de ser visto e ver, de ser ouvido e ouvir. Apoiou o feminismo, promoveu passeatas por esquerdistas presos nos EUA, defendeu o direito dos Panteras Negras de se organizarem, lutou contra Nixon e a continuação da Guerra do Vietnã. A seu modo, o ex-beatle tentava canalizar a energia revolucionária dos anos 60 para um modo mais objetivo de luta. Os discos Imagine, de 1971, e Some Time in New York City, de 1972, são marcos da atuação política do artista. O primeiro LP, ainda ligado a um ideal utópico, demonstrava desilusão com políticos e governantes e oferecia a esperança de imaginar um mundo melhor. O segundo, porém, mostrava que não adiantava apenas viver na esperança e na utopia. Lennon entendeu que precisava sujar as mãos e tratar dos assuntos terrenos: injustiça social, preconceitos de raça e gênero e corrupção generalizada do poder. Esse envolvimento político quase custou ao casal Ono-Lennon sua expulsão dos Estados Unidos. O governo norte-americano usou de um antigo processo inglês por posse de maconha para tentar impedir a concessão do Green Card (o visto definitivo para viver nos EUA) aos dois. Esse processo durou até 1976, quando Lennon conseguiu se tornar cidadão norte-americano.

Mas, a partir de 1975, com o nascimento de seu segundo filho, John resolveu “assar pães e trocar fraldas”. Deixou o mundo do entretenimento e da política e se reservou o direito de se tornar um cidadão comum, ou um “dono de casa”, como se chamava. Durante cinco anos, o ex-beatle passou a ser o cidadão John, cuidando de seu bebê e esperando a esposa chegar em casa com novidades do trabalho. Sua guitarra ficou guardada embaixo da cama, as entrevistas para a mídia eram raras e suas aparições públicas quase nulas. Mais uma vez, John Lennon escolhia a utopia. Desta vez, a utopia de uma vida sem contratos e sem compromissos sociais. Esse hiato da vida pública durou cinco anos.

Em 1980, John e Yoko entravam em estúdio para gravar um diálogo amoroso que viria a se chamar Double fantasy. Um disco em que as faixas de Lennon se revezavam com as faixas de Yoko, em uma troca de impressões sobre a vida a dois. Sobre o período de reclusão, o ex-beatle cantava que “estava ali só observando o movimento”, apesar de as pessoas estranharem que ele “estivesse se sentindo bem, sonhando sobre sua vida e sem participar da vida social”. Mas, nas entrevistas para divulgar o novo disco, o compositor começava a falar de uma nova visão do mundo, em que o pensamento positivo seria a chave para mudar as coisas.

Se os anos 60 foram de sonho e os anos 70 foram um eterno lamentar de que nada havia dado certo, os anos 80 deveriam ser vistos como uma nova esperança, mas com a consciência de que cada um deveria trazer sua contribuição. Agora, a utopia amadurecia para uma chamada de responsabilidade de cada indivíduo. Acreditar na sociedade, esse amálgama sem rosto, não parecia o suficiente. É necessário acreditar no movimento de cada um. Em seu último ano de vida, o músico afirmava:

“Ainda acredito em amor e na paz. Acredito no pensamento positivo. Enquanto houver vida, há esperança. Sempre considerei minha obra como uma coisa só. E considero que meu trabalho não terá terminado até que eu esteja morto e enterrado. E espero que seja daqui a muito tempo.”

Apesar da ironia melancólica da frase, ainda se nota a força de Lennon em acreditar na utopia de que a vida é sinônimo de esperança. Se hoje ele estaria lutando pelo fim da Guerra no Iraque ou se estaria brigando pela Amazônia e pela diminuição da emissão de gás carbônico são meros exercícios de imaginação. John Lennon estava voltando a se engajar socialmente quando foi morto, em 8 de dezembro de 1980. Vinte e nove anos depois, cabe a nós aceitar ou não a herança desse engajamento. Se uma vez o ex-beatle afirmou que o sonho havia acabado, ele mesmo provou que não, que um sonho acaba para que se transforme em nova luta. Lennon provou que sua utopia se adaptava aos tempos e persistia. Uma boa lição para os cínicos tempos em que vivemos.

Publicado em 8 de dezembro de 2009

Publicado em 08 de dezembro de 2009

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