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O modernista Ascenso Ferreira

Luiz Alberto Sanz

Diálogos Poéticos

Ascenso Ferreira nasceu Anibal Torres em 9 de maio de 1895, em Palmares (PE), e morreu em 5 de maio de 1965, em Recife (PE). Fascina-me desde garoto, quando minha mãe me ensinava a dizer poemas e me levava para dizê-los em algumas das aulas que ministrou durante longos anos para professoras de todo o Brasil (ainda encontro gente de muitas gerações que participou dessas aulas).

É claro que o poema aprendido na infância que mais me agradava era o clássico Predestinação, que minha amiga Beth Müller adora, creio, por ser sensível e psicanalista:

- Entra pra dentro, Chiquinha!
Entra pra dentro, Chiquinha!
No caminho que você vai
você acaba prostituta.

E ela:
- Deus te ouça, minha mãe...
Deus te ouça...

Empolgavam-me também a sonoridade e o ritmo de Filosofia, plenamente adequados ao conteúdo que calava fundo no meu ser:

Hora de comer - comer!
Hora de dormir - dormir!
Hora de vadiar - vadiar!

Hora de trabalhar?
- Pernas pro ar que ninguém é de ferro.

Fortaleci essa fascinação nas viagens que fiz a Pernambuco, na juventude e já maduro, mas aí pude apreciar e me aprofundar no significado dessa poesia, a ponto de usar trechos de Catimbóe Minha Escola como epígrafes de meu memorial e de minha tese (depois, livro) de titular.

Grande parte das razões para isso está nas palavras entusiasmadas (talvez um pouco pernambucanas demais) do poeta e comunista histórico Paulo Cavalcanti nas orelhas da edição de 1988 de Catimbó

A reedição do grande livro de Ascenso, Catimbó, é da maior oportunidade. Uma das maiores e mais autênticas con­tribuições do Nordeste ao cha­mado Movimento Modernista Brasileiro, o livro merece registro especial, já passados 60 anos de sua edição original.

Grande poeta do povo, can­tador das alegrias e das tragé­dias sociais da zona do açúcar, Ascenso, o menestrel do movi­mento antropofágico, tem sido subestimado pelos historiadores da literatura nacional e pelos críti­cos de arte, além de, atualmen­te, pouco conhecido das novas gerações de leitores.

Publicado pela primeira vez em 1927, pela Revista do Norte, Catimbó se incorpora, hoje, ao patrimônio cultural do movimento modernista dos anos 20, sendo Ascenso, do ponto de vista da autenticidade de sua obra, das raízes autóctones de suas inspirações e criação, o maior poeta do seu tempo. Não buscou ele, como os demais in­tegrantes do Movimento Moder­nista, os modelos europeus do futurismo – seiva da qual se alimentou a poesia dita progres­sista de então. Pelo contrário, a obra de Ascenso, como disse Andrade Muricy, “não andou se informando, não fez reportagens de fatos étnicos nem lambiscou o exotismo dos costumes bárba­ros do Brasil de ontem com a gula apressada e a ânsia de te­mas que tanta gente nem sabe esconder”.

Nestes tempos de progresso e igualmente de angústias, de dúvidas, de “homens partidos”, Ascenso – como assinalou Sér­gio Milliet, “é a presença saudo­sa de um Brasil que desejaría­mos intocável, permanente e crescendo sem aculturações”.

Como contribuição à luta contra os fatores desnacionali­zantes da cultura brasileira, a iniciativa de reeditar-se Catimbó insere-se no painel das batalhas de todos os dias pela afirmação das raízes populares e genuínas da inteligência de um povo que procura seus próprios caminhos de afirmação e independência.

Paulo Cavalcanti

Minha Escola

A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
complicado como as Matemáticas;
inacessível como Os Lusíadas de Camões!
À sua porta eu estava sempre hesitante...
De um lado a vida... – A minha adorável vida de criança:
Pinhões... Papagaios... Carreiras ao sol...
Voos de trapézio à sombra da mangueira!
Saltos da ingazeira pra dentro do rio...
Jogos de castanhas...
– O meu engenho de barro de fazer mel!
Do outro lado, aquela tortura:
"As armas e os barões assinalados!"
– Quantas orações?
– Qual é o maior rio da China?
– A 2 + 2 A B = quanto?
– Que é curvilíneo, convexo?
– Menino, venha dar sua lição de retórica!
– "Eu começo, atenienses, invocando
a proteção dos deuses do Olimpo
para os destinos da Grécia!"
– Muito bem! Isto é do grande Demóstenes!
– Agora, a de francês:
– "Quand le christianisme avait apparu la terre..."
– Basta.
– Hoje temos sabatina...
– O argumento é a bolo!
– Qual é a distância da Terra ao Sol?
– ?!!
– Não sabe? Passe a mão à palmatória!
– Bem, amanhã quero isso de cor...
Felizmente, à boca da noite,
eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a bênção à lua nova.

(Catimbó, p. 33-34)

Bumba–meu–boi

"Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu?
Se o copo era grande, pra que encheu?"
"Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu?
Se o copo era grande, pra que encheu?"
Na arena a gás iluminada,
aos tombos entra o beberrão...
Mateu castiga na bexigada
e Catirina no sopapão!
– "Ai, que moleza desgraçada!
Acuda... acuda... Capitão!"
– "O freguês que bebe não é bom cristão!
Peia nele, mestre Mateu!”
E o coro canta, em profusão:
"Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu?
Se o copo era grande, pra que encheu?"
“Se a aguardente era o diabo, pra que bebeu!
Se o copo era grande, pra que encheu?"
Ai! Lá vêm os bêbados de amor aos tombos
pela arena do Bumba–Meu–Boi da vida!
Que bêbados impertinentes!
Se a mulher era o diabo, pra que bebeu
essa jurema que é o beijo seu?
Se a mulher era o diabo, pra que bebeu
essa jurema que é o beijo seu?

(Catimbó, p. 31)

Catimbó

Mestre Carlos, rei dos mestres, aprendeu sem se ensinar...
– Ele reina no fogo!
– Ele reina na água!
– Ele reina no ar!
Por isto, em minha amada acenderá a paixão que consome!
Umedecerá sempre, em sua lembrança, o meu nome!
Levar-lhe-á os perfumes do incenso que lhe vivo a queimar.
E ela há de me amar...
Há de me amar...
Há de me amar...
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!
À luz do sete-estrelo nós havemos de casar!
E há de ser bem perto.
Há de ser tão certo
como que este mundo tem de se acabar...
Foi a jurema de sua beleza que embriagou os meus sentidos!
Eu vivo tão triste como os ventos perdidos
que passam gritando na noite enorme...
Porque quero gozar o viço que no seu lábio estua!
Quero sentir sua carícia branda como um raio da lua!
Quero acordar a volúpia que no seu seio dorme...
E hei de tê-la,
hei de vencê-la,
ainda mesmo contra seu querer...
– Porque de Mestre Carlos é grande o poder!
Pelas três-marias... Pelos três reis magos... Pelo sete-estrelo
Eu firmo esta intenção,
bem no fundo do coração,
e o signo-de-salomão
ponho como selo...
E ela há de me amar...
Há de me amar...
Há de me amar...
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!
Porque Mestre Carlos, rei dos mestres,
reina no fogo... Reina na água... Reina no ar...
– Ele aprendeu sem se ensinar...

(Catimbó, p. 13-14)

Referência

FERREIRA, Ascenso. Catimbó. Recife: CEPE, 1988.

Publicado em 8 de dezembro de 2009.

Publicado em 08 de dezembro de 2009

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