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Schopenhauer visto por Nietzsche
Janaina Pires Garcia
Friedrich Nietzsche nasceu em 1844, oriundo de uma família de classe média, cujo pai era muito culto e apaixonado pelas artes. Em 1869, foi convidado para ser professor de Filologia na Faculdade de Basileia, Suíça, onde fez estudos sobre a tragédia grega e teve sua aproximação com a filosofia através da leitura de O mundo como vontade e representação, obra principal de Schopenhauer, publicada em 1819. Em 1871 escreveu seu primeiro texto, O nascimento da tragédia, que é escrito totalmente em prosa.
Três anos depois, escreve Schopenhauer como educador, motivo da presente resenha. É importante ressaltar o estilo de escrita do autor: escreve em fragmentos, inspirando-se em Heráclito, com parágrafos extensos, não escrevendo sob forma de capítulos, tópicos ou algo parecido. Em 1878, Nietzsche se afasta temporariamente da universidade por problemas de saúde, mas retorna no ano seguinte e acaba pedindo demissão da cátedra por não conseguir ministrar aulas adequadamente, pois sua voz era inaudível, culminando no afastamento dos alunos.
Nos anos seguintes vai para Itália e em 1884 escreve sua obra mais conhecida, Assim falava Zaratustra, em que desenvolve a teoria do eterno retorno, defendendo que o mundo é cíclico, isto é, alterna períodos de criação e períodos de destruição. O eterno retorno é espiral, porque nunca se retorna ao mesmo; esse retorno será sempre alterado. Dessa forma, ele pode apostar no progresso do homem: o projeto nietzscheano de salvação do homem é que o homem mesquinho de antes pode vir a ser um homem bom, ou seja, pode chegar à superação de si mesmo, e esta é a condição de “super-homem” – é aquele que conseguiu fazer a superação de si mesmo; ele está acima do bem e do mal.
Com a saúde já debilitada tanto física quanto psicologicamente, morre de sífilis em 1900.
Apontando as principais ideias expostas no texto, temos que levar em consideração uma breve introdução ao pensamento do autor, pois, nas palavras do filósofo alemão Jurgen Habermas, “Nietzsche é o ponto de viragem, o ponto de inflexão do pensamento ocidental”, pois deixa de lado todo pensamento racionalista e a própria razão para defender que cada homem deve seguir sua própria consciência: “O homem que não quiser fazer parte da massa deve deixar de ser conformado consigo mesmo, que siga então a própria consciência que grita ‘seja você mesmo!’ Você não é certamente aquilo que faz, pensa e deseja nesse momento. (Nietzsche, 1999, p. 1).
Nesse sentido, Nietzsche demonstra que a natureza dos homens é formada por dois poderes da natureza: apolíneo e dionisíaco. Esses poderes são opostos. Apolíneo significa a razão e os pensamentos moderados, enquanto o dionisíaco estaria ligado ao êxtase, à embriaguez e à emoção. Para ele, a tragédia grega reunia essas duas instâncias sem conceder privilégio nem a uma nem a outra.
O homem, vivendo na dimensão do apolíneo, logo, na dimensão da razão, elimina a emoção. E daí advém a crítica a Sócrates, de ser o grande carcereiro da espécie humana,porque toda a filosofia socrática impunha a supremacia do apolíneo, e dessa forma não se dá a compreensão do mundo, pois esta só é possível quando o homem dá vazão ao êxtase dionisíaco.
A primazia pelo pensamento dionisíaco presente no autor origina-se na sua própria personalidade: anticristão, antiburguês e antissocialista. Anticristão porque vê nos valores da doutrina cristã (piedade, amor ao próximo etc.) um sintoma de fraqueza, uma moral do homem fraco e conformado. Antiburguês porque era defensor e admirador de uma elite aristocrática de méritos. E antissocialista porque execrava o comportamento de “rebanho”, pois todo aquele que se deixa conduzir por outro é um fraco, e a massa é conduzida por um líder.
Voltando ao texto, tomemos a seguinte passagem:
a sua verdadeira existência, de fato, não está escondida dentro de você, mas muito acima de você ou daquilo que considera o seu eu. Os seus verdadeiros educadores e mestres revelam o sentido originário e a matéria fundamental do seu ser, algo que não se pode absolutamente educar nem formar, mas em todo caso é de difícil acesso por estar amarrado, paralisado: os seus educadores não podem ser nada mais que seus libertadores (Nietzsche, 1999, p. 3).
Este é o argumento central de Schopenhauer como educador: que cada indivíduo deveria eleger um filósofo como educador, assim como o próprio Nietzsche o fez elegendo Schopenhauer, em quem ele confiava mais do que em si mesmo. Nesse sentido, o autor defende uma educação não escolar, uma “autoeducação”, que seria um processo de libertação existencial e que tinha por objetivo a maturidade, a fecundidade e a harmonia do ser humano.
Mas por que Nietzsche escolheu Schopenhauer como seu grande guia? Ele justifica sua escolha dizendo que Schopenhauer possui três qualidades fundamentais: a sinceridade, a serenidade e a firmeza, qualidades essas que afastam Schopenhauer da imagem do “erudito”. Logo, isso fascina o jovem Nietzsche, pois seu mestre eleito não se enquadra nos moldes clássicos da academia, já que ele nunca se preocupou em ficar bem aos olhos dos outros. Ele não quis seguir o sistema; rompeu e isso cria profunda admiração em Nietzsche.
A partir da eleição de Schopenhauer como seu grande educador, Nietzsche começa sua crítica à filosofia dizendo que toda filosofia deveria se pautar no modelo schopenhaueriano, pois somente a filosofia oferece ao homem um asilo que tirania alguma é capaz de alcançar (Nietzsche, 1999, p. 8).
Nietzsche exalta a grandeza de seu mestre na seguinte passagem:
Esta é a sua grandeza. Ter-se colocado de frente ao quadro da vida como de frente a um todo, para interpretá-lo como um todo; enquanto as cabeças mais perspicazes não conseguem libertar-se dos erros a que esta interpretação se possa alcançar só analisando minuciosamente as cores e a matéria sobre as quais este quadro foi pintado (Nietzsche, 1999, p. 9).
A metáfora do quadro é a metáfora do mundo. Você só pode compreendê-lo pela arte, não pelo apolíneo, mas pelo dionisíaco, porque as ciências só captam o particular e não captam o todo. Logo, o verdadeiro conhecimento para Nietzsche é o artístico, que é o da matriz geral, e não das especificidades, que é o da ciência. Trata-se aqui da justificação da existência pelo estético, onde impulso da forma e sentimento do caos se enfrentam e se aliam para tornar possível que a arte chegue à verdade.
Entretanto, assim como qualquer mortal, Schopenhauer, o mestre absoluto para Nietzsche, corria riscos, pois viver geralmente significa estar em perigo (Nietzsche, 1999, p. 11). E Schopenhauer conseguiu vencer três perigos na visão de Nietzsche: o perigo do isolamento; o perigo do desesperar da verdade (pois se fica tão deslumbrado com a verdade que se sucumbe a ela, e daí o desespero); e o perigo que todo homem encontra em si mesmo, que são suas próprias limitações (o gênio, por exemplo, se destrói; logo, não deve sentir-se vaidoso por ser gênio e sucumbir à vaidade).
Pela força com que Schopenhauer se defendeu desses três perigos e saiu íntegro, mesmo que com muitas cicatrizes e feridas abertas, ele encarna o ideal do super-homem, pois ele conseguiu vencer as suas fraquezas superando-se a si próprio.
Essa imagem de homem foi uma das construções que a época moderna ergueu, e Nietzsche faz essa distinção em três categorias: o homem de Rousseau,que encarna o comportamento de “rebanho”, pois se reconhece explorado e oprimido. Um bom exemplo disso está no seu projeto do Emílio, de tirar a criança do ambiente de perversão, que é a cidade, e levá-la para o campo, pois a civilização corrompe o homem. Depois temos o homem de Goethe, que seria o revolucionário contemplativo, mas esse ideal revolucionário fica comprometido quando Fausto (um dos personagens principais da obra de Goethe) vende sua alma e vira um mero serviçal, um escravo, não sendo mais um homem livre. E finalmente o homem de Schopenhauer, que seria o verdadeiro homem, o ideal a ser alcançado, porque o homem schopenhaueriano assume sobre si o voluntário sofrer da veracidade (...), cujo alcance é o verdadeiro sentido da vida, (...) porque uma vida feliz é impossível, o máximo que o homem pode alcançar é uma vida heroica (Nietzsche, 1999, p. 16). Com isso, Nietzsche quer dizer que o próprio Schopenhauer encarna o herói homérico que ele tanto admirava, porque não tinha por finalidade a felicidade, mas o feito heroico.
E esse herói que é capaz de tirar o homem comum da miserabilidade de sua existência está encarnado nos verdadeiros homens, aqueles não mais bestas, os filósofos, os artistas e os santos (Nietzsche, 1999, p. 19).
O filósofo não tem medo de ser ele mesmo, ele é autêntico e sincero como Schopenhauer. O artista é a causa final do agir, é a poesia dramática. E o santo é quando o homem se torna filósofo e artista; logo, ele se torna também um santo, porque não libera somente a si mesmo, mas toda a humanidade. Logo o super-homemé a condensação desses três homens, e Schopenhauer é o próprio super-homem,pois vence os perigos, supera a si mesmo, liberta e educa.
Schopenhauer libertou Nietzsche, e Nietzsche quer seguir os passos do mestre e libertar outros.
Análise crítica
Nietzsche demonstrou de que maneira a educação, tanto aquela ministrada desde a mais tenra idade, que se traduz nos valores passados de geração a geração, quanto aquela ministrada nos estabelecimentos de ensino foram importantes meios para que o homem perdesse aos poucos sua visão crítica do mundo, da ação, da criação e, consequentemente, da vida. A educação era uma ferramenta eficaz para consolidar e manter a estrutura da sociedade e possuía uma finalidade que estava vinculada não à promoção da cultura e da vida (características fundamentais para a formação do homem, na sua visão), mas à manutenção da sociedade, além de visar ao cumprimento do interesse de minorias.
O objetivo dessa educação seria formar homens técnicos para servir à própria ciência, ao Estado e ao mercado, de maneira mais rápida e rentável. A partir dessa constatação, Nietzsche realiza uma crítica radical ao sistema de ensino alemão, denunciando os três egoísmos que impedem a formação humanista: o egoísmo das classes comerciantes, o egoísmo do Estado e o egoísmo da ciência.
O egoísmo dos comerciantes se manifesta na rapidez com que os jovens são educados, e a educação assim recebida é vista como um instrumento para satisfazer as necessidades do mercado. A educação se converte num meio para formar homens aptos a ganhar dinheiro e viver em função do mercado.
O egoísmo do Estado tem interesse numa educação que forme excelentes técnicos para servi-lo como funcionários e burocratas. Mas a grande preocupação de Nietzsche é com o excesso de formação científica, em detrimento da formação humanista. Para o filósofo, o cientista é descrito como um indivíduo cuja única meta é descrever, decompor e analisar seu objeto. O cientista possui uma prática que destrói as visões míticas e saudáveis para a sobrevivência dos homens. O cientista é visto como escravo do hábito e servo da rotina; uma rotina profissional gerada pela especialização de sua formação, pois ele acredita conhecer e dominar o caminho.
Nietzsche criticava a educação de sua época, da Alemanha do século XIX, que não visava à formação do jovem livre e culto, mas à formação do “erudito”, do “homem de ciência”, que poderia ser utilizado o mais rápido possível para atender a esses ideais do Estado. Criticava a juventude da sua época, que, na sua opinião, era envelhecida, pois todo seu saber é histórico e acumulativo. Os jovens possuem saber sobre a cultura, não uma cultura propriamente dita. Para acabar com tal educação formadora de rebanho, dever-se-ia fazer ouvir os jovens, de modo que eles pudessem se expressar, pudessem ter consciência de si mesmos, pois tal educação vai contra a natureza.
Numa educação que tenha em vista a singularidade não haveria reprodução de uma crítica viciada, em que os jovens são educados para o conformismo e a submissão, mas sim para o engrandecimento pessoal.
Nietzsche via na cultura e nos valores da modernidade o coroamento da mediocridade e da barbárie, cujo efeito na esfera da educação acabava por conservar os estudantes na ignorância das questões filosóficas ligadas ao sentido da existência e por alimentar neles os valores da adequação, da integração e do conformismo. Enfim, ele desaprovou radicalmente a intelectualidade da época encarnada nos “eruditos”, isto é, a dos especialistas, cuja única tarefa era exatamente educar para a conformidade e a submissão, tal como eles próprios se punham, e cujo comportamento nos meios acadêmicos fazia prova de um febril e aviltante oportunismo profissional.
Constata-se claramente que a educação aqui exposta possui uma finalidade clara e limitada, e uma das premissas é a potencialização de características comuns dos sujeitos a fim de que possam movimentar as engrenagens da sociedade em detrimento do desenvolvimento das singularidades e do potencial criativo.
Nietzsche é considerado geralmente o filósofo da vida, pois a coloca como referencial para suas avaliações. Ele afirma que a sociedade pós-platônica estaria baseada em valores antivitais. Tal análise revela que a civilização ocidental, a partir de Platão, fundamentou seus valores a partir de uma visão dualista que cindia o homem e o mundo. Nessa visão, o homem estaria condicionado por uma série de dicotomias, como corpo/alma, essência/aparência, razão/instinto; o mundo, em mundo inteligível/mundo sensível. Nessa perspectiva dicotômica, sempre um dos polos: essência, razão, alma e mundo inteligível, seria priorizado em detrimento do outro: corpo, aparência, instinto e mundo sensível, respectivamente. Ao estruturar-se sobre tais valores, a sociedade ocidental, para Nietzsche, afastou-se paulatinamente da vida ao afirmar suas crenças em parâmetros metafísicos e, principalmente, por negar os critérios considerados pelo filósofo como vitais para o rigor de uma cultura: a afirmação do corpo, da terra, dos instintos e a exaltação da força plástica do homem.
Nietzsche percebeu que essa estrutura dualista influenciou todas as esferas da cultura, assim como todos os seus monumentos e instituições, dentre os quais o Estado, a religião e os estabelecimentos de ensino. Em sua análise genealógica, apresentou não só a origem de tais valores como também desvelou o caráter antivital que impregnou tais esferas da cultura. Por isso, ele pôde perceber como a educação ministrada nos estabelecimentos de ensino era baseada nesses valores antivitais e tornou-se uma das ferramentas mais eficazes não só para promover a separação entre homem e vida como também para o empobrecimento da existência. Constatou como a educação fazia com que a força e a criação – aspectos considerados típicos do homem forte, que possui excedente de potência – fossem submetidas em prol do desenvolvimento de homens massificados, em série, de características que fossem comuns a todos os sujeitos, submetendo suas singularidades. Essa tendência uniformizadora levou a que a memória fosse uma das formas mais utilizadas para educar.
Como alternativa a esse tipo de educação, Nietzsche propõe a educação e o cultivo de si – não como individualismo exacerbado, tão em voga nos tempos atuais, fomentado pelo neoliberalismo, mas um adestramento de si, das forças plásticas, das características próprias de cada sujeito e de seu potencial criativo, por meio de uma educação que promova as capacidades intelectuais, artísticas, emotivas e físicas de cada discente.
A meu ver, essa foi a maior contribuição de Nietzsche para a educação, ao pensar como poderia construir uma educação mais vital, uma educação que não privilegiasse a memória ou que tivesse uma forma mecânica. Uma educação que desenvolvesse no indivíduo outras capacidades de percepção, construindo um conhecimento mais reflexivo e sensível, logo, menos alienado.
Bibliografia
NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer como educador (Considerações extemporâneas III).Campinas: FE/Unicamp, 1999.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
Publicado em 8 de dezembro de 2009
Publicado em 08 de dezembro de 2009
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