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A MODERNIDADE E A QUESTÃO SOBRE O SENTIDO DE CULTURA

Marlon Baptista

Doutorando em Filosofia

O que significa ser moderno?

A modernidade, numa tentativa de definir a sua própria identidade, teve como procedimento a tentativa de retorno às origens. O que é afinal a modernidade? A necessidade de responder a essa pergunta fez com que o retorno aos antigos assumisse tendências valorativas que não podem ser afastadas de características que os próprios modernos já evidenciavam, pois, ao considerar os antigos como um brilhante momento perdido da humanidade, buscava-se alguma característica essencial do homem que, de certa forma, não estava mais presente. A nostalgia desse retorno aponta para a modernidade teimosa do procedimento: resgatar o homem então perdido, trazê-lo de volta a si mesmo, pressupondo-se que seria de fato possível todo esse poder deliberativo, pois o homem já estava então sendo visto a partir de outros fundamentos e poderes: ele pode educar-se e, assim, transformar-se no que ele deve ser.

Nesse horizonte de pensamento estão em jogo três conceitos essenciais da língua alemã, contexto em que se circunscreve minha reflexão: Kultur (Cultura), Bildung (Formação) e Aufklãrung (Esclarecimento). A íntima ligação entre eles se dá porque, além de seus campos de significações serem exclusividades modernas, passaram a ser de fato incorporados à língua alemã de forma recorrente num mesmo século – no decorrer do século XVIII. Pensemos um pouco sobre esses termos.

O que é cultura?

A questão em torno de uma crise, no sentido de haver a necessidade de esforços perante um problema primordial cuja clarificação se faz necessária por estar ocorrendo um rompimento, uma quebra de paradigma, nos remete ao interior da querela entre os antigos e os modernos, a qual só se tornou possível devido a uma maior preocupação com a história. Já desde o século XVII, por conta das mudanças políticas, científicas e sociais europeias, passou a haver a necessidade de pensar o então atual estágio da humanidade em relação aos que o precederam. Para ser possível pensar numa perspectiva histórica de progresso por meio do uso adequado da razão – o que acabará por se figurar na Aufklärung –, foi necessário combater outras compreensões históricas, como a de que ela se dá num movimento de degeneração, de decadência, exposta pela perspectiva cristã do mundo terreno como perda do paraíso originário. Passa-se então a levar em conta fatores históricos de determinação tanto de teorias filosóficas e da criação das artes como até mesmo de doutrinas religiosas, como a interpretação histórica de acontecimentos da Bíblia feita por Baruch de Spinoza. Por meio desse empenho de compreensão a partir de certa humanização da história, vendo-a como resultado de deliberações e ações humanas ao invés da pura sujeição à vontade divina, é que surge a discussão sobre o significado de “cultura”, sobre a necessidade de definição do que seja cultura, pois, enquanto pertencentes a um mundo essencialmente impregnado pela cristandade, os homens não tinham necessidade de colocar essa questão justamente pelo fato de que o estatuto de sua humanidade já estava assegurado pelo seu caráter privilegiado de criatura portadora de espírito, do sopro divino, que os fazia habitar um mundo cuja ordem e posição ontológica dos entes já estava determinada de antemão por um Deus criador. Assim, a partir da consideração de que o homem constrói o modo de efetivação de sua humanidade, passa a ser preciso pensar sobre a cultura para determinar inclusive o que afinal é humano ou não; num tempo de descobertas marítimas de outros povos e continentes e, consequentemente, de outros costumes, modos de organização e visões de mundo, tornou-se premente colocar a questão acerca do que é cultura – ou seja, legitimamente humano – e o que não é. Não se trata mais somente de uma diferenciação pressuposta; o homem europeu passa, no final da Idade Média e nos inícios da modernidade, ao se deparar com outros povos de cuja existência ele não sabia, a perceber que o horizonte de determinação do que seja humanidade extrapola os limites da Europa e do oeste da Ásia, assim como vai além da obediência e compreensão dos mandamentos cristãos.

Nota

O termo Bildung (formação) e o verbo bilden (formar) tiveram sua origem de utilização na Bíblia a partir do termo Bild (imagem), e só no decorrer do século XVIII tiveram seu sentido secularizado. Conforme a tradução de Lutero, aparece em Gênesis 1, 26-27: “E Deus disse: deixe-nos fazer homens, uma imagem (ein Bild), que seja igual a nós, que reine sobre os peixes do mar e sobre os pássaros que estão sob o céu, sobre os animais do campo e sobre todos os vermes que rastejam sobre a terra / E Deus criou o homem à sua imagem (Bild), à imagem de Deus ele o criou; e os criou como homem e mulher”. Na 2ª Carta aos Coríntios: “Mas agora contemplemos todos a glória do Senhor com o rosto desvendado, como num espelho, e nos transfiguremos em sua imagem (Bild) de uma glória à outra do Senhor, que é o espírito”.

Até hoje o termo cultura tem a ambivalência de sentido entre cultivo da terra e do homem em todas as línguas latinas, no alemão e em russo.

A palavra “cultura” vinculada ao ser humano tem sua origem com a agricultura: para que um solo se torne adequado para a produção fértil de alimentos, é necessário que seja devidamente cultivado por uma técnica determinada. A alusão a esse sentido aparece já no texto de Cícero (103-43 a.C.) intitulado Tusculanae Disputationes (Debates em Túsculo), em que ele diz que, assim como o solo precisa ser cultivado para dar frutos, o espírito também o precisa. Assim como o tratamento daquele se dá pela agricultura, o deste se dá pela instrução, a qual tem como fio condutor a filosofia. Cícero se utiliza do termo cultura animi, ou seja, cultura da alma ou do espírito, o que, por si só, realiza um movimento contra qualquer ideia de naturalidade da natureza do homem; pelo contrário, entende que o homem em estado de natureza, quer dizer, sem cultivo, encontra-se simplesmente na barbárie.

Nota

Até hoje o termo cultura tem a ambivalência de sentido entre cultivo da terra e do homem em todas as línguas latinas, no alemão e em russo.

Segundo Franz Rauhaut, em seu artigo Die Herkunft der Worte und Begriffe “Kultur”, “civilization” und “Bildung” (A origem das palavras e conceitos “Kultur”, “civilization” e “Bildung”), com o jurista Samuel Baron von Pufendorf (1632-1694), “estamos no início da Aufklärung” (Rauhaut, 1965, p. 12). Esse jurista se apropriou da expressão cultura animi de Cícero de modo a entendê-la como formação (Bildung) do espírito e do coração. Com isso, houve expansão de sentido quanto ao cultivo do homem, que não deve se dirigir somente ao espírito, mas à sua vida como um todo, configurando-se como uma cultura da vida, que tem como tarefa torná-la mais bela. Ao relacionar a vida com o coração, Pufendorf envolve no interior da abrangência do cultivo o cuidado com aquilo que no homem não é deliberado, o respeito pela adequada manifestação dessa parte do homem que está em relação direta tanto com os segredos de seus desejos interiores quanto com a sua relação passional com o mundo que o cerca.

Para que essa cultura da vida seja possível, é necessária a vivência em sociedade. É em contato constante com outros indivíduos com predisposições análogas que se pode primeiramente criar um ambiente propício ao estabelecimento de modos de vida que viabilizem a conquista da satisfação das necessidades puramente vitais para que, a partir disso, possa haver oportunidade para o cultivo e a elevação do espírito, para a preocupação com a beleza em seus variados aspectos criativos e para a intensificação do valor da moralidade. Assim, Pufendorf estabelece uma definição do conceito de cultura enquanto vida social, cultivo da vida e do espírito. Na época dessa elaboração houve grande choque com outros eruditos por conta das consequências antiteológicas dessa afirmação, pois, com esse conceito de cultura, Pufendorf se voltava contra o direito natural da teologia escolástica. Se o estado de natureza se referia somente à brutalidade animal e miséria decorrente da escravidão dos desejos, Adão poderia ser visto então como um bárbaro, devido ao caráter inconcebível de um modo de vida especificamente humano se constituir sem sociedade e cultivo. É neste sentido que é possível compreender Pufendorf como um dos primeiros esclarecidos, pois na verdade a sua compreensão de estado de natureza não mais se referia ao paraíso originário, mas sim ao momento precedente à constituição da organização social, o que faz com que a ideia de degeneração e expiação da humanidade decorrente do pecado original não seja mais o foco da questão, pois é justamente a saída do estado de natureza que possibilita a humanização que se torna capaz, por exemplo, de estabelecer códigos morais que possibilitem a não prática de certa ações entendidas – mesmo pelo cristianismo – como erradas ou inadequadas ao homem. Kultur passa a significar o contrário de barbárie, que é sinônimo da vigência do estado de natureza, ou seja, cultura passa a significar o âmbito das realizações exclusivamente humanas em oposição à natureza. Isso, ainda que de outra perspectiva, conserva certa familiaridade com a visão de mundo cristã, a qual vê o mundo natural, terreno, o corpo como instâncias de inferioridade existencial que devem ser, quando não quase completamente suprimidas e esquecidas, ao menos controladas e subsumidas pelas forças espirituais. Nesse sentido, é possível então pensar, segundo Rauhaut, no movimento da reflexão esclarecida enquanto certo cristianismo às avessas. Do mesmo modo que a fraternité, um dos slogans da Revolução Francesa, poderia ser entendida como uma secularização da caritas (caridade) cristã, o termo “cultura” surge ao se ligar ao ideal humano que se esforça por concretizar a sua meta do lado de cá, na vida, ao invés da vida cristã, que visa o além por meio da salvação. Pois, se o cristianismo se esforçava por superar o pecado para garantir a salvação após a morte, a cultura visa livrar o homem do estado natural e conquistar a felicidade nesta mesma vida. Com isso, a cultura passa a ser entendida como um ideal a ser buscado a partir do trabalho e do exercício de determinadas habilidades, que devem ser definidas e implementadas pelo próprio homem. Para melhor compreendermos o sentido disso, lembremos de uma peculiaridade da língua alemã que se refere à diferença de sentido entre Kultur e Bildung.

Cultura e formação, ecos de Platão

Segundo Manfred Fuhrmann, em seu livro Bildung: Europas kulturelle Identität (Formação: identidade cultural da Europa), a Bildung é a forma pela qual “o indivíduo toma parte na cultura” (Fuhrmann, 2002, p. 36). Ele se refere ao termo Bildung como um cânon; e entende o sentido de cânon como um tipo de escolha a partir de determinadas valorações de um campo específico em meio a um todo maior, que encontra certa estabilização e autoridade no decorrer do tempo. Esse todo maior seria justamente a cultura como “dupla potência”: por um lado, como um movimento de constante produção no interior de um determinado horizonte de possibilidade do novo; por outro, como resultado da tradição conservada nos museus, arquivos, bibliotecas etc. Segundo Fuhrmann, a existência desse par conceitual na língua alemã seria decorrente da herança do modo de pensar platônico acerca da relação entre as Ideias e os objetos empíricos que a elas se referem. Platão cunhou o termo Methexis para designar a relação dos objetos fenomenais – ou seja, materiais, empíricos, presentes diante de nós, sujeitos à mudança, no espaço e no tempo – com as Idéias puras – ou seja, a essência imutável de tudo que existe, onde seria encontrada, por meio do desenvolvimento do puro pensamento, a essência, a verdade que, em nossa realidade imediata, só aparece distorcida e embaçada por nossos sentidos e nossas opiniões destituídas de verdadeiro conhecimento. Esse termo teria o significado de participar, tomar parte (teilhaben). Ou seja, a coisa, como fenômeno empírico, toma parte da Ideia a partir da qual ela recebe o seu modo de ser, sua forma – por exemplo, um leão, enquanto animal empírico, tomaria parte de certa forma da Ideia imutável de leão que poderíamos alcançar por meio do pensamento, a qual teria maior realidade e perfeição que o próprio leão que vemos diante de nós (sobre a teoria do conhecimento de Platão, conferir o Livro VII de A República, onde o filósofo, por meio do mito da caverna, explica a diferença entre o mundo empírico e o mundo das Ideias). Assim ela se encontra num grau ontologicamente inferior em relação ao caráter prototípico da Ideia, do conceito, reapresentando-o de forma imperfeita. Mas mesmo assim o fenômeno viabiliza a participação na perfeição da Ideia da qual ele participa, oferecendo a quem o observa a possibilidade de tomar consciência do conceito por meio mesmo da coisa apreendida empiricamente. A partir dessa relação no interior da teoria do conhecimento de Platão é possível compreender a Bildung (formação) – o “processo de formar-se a si mesmo” (ibidem, p. 37) – na forma de pluralidade de indivíduos, ou seja, figurada nos Gebildeten (bem educados) – naqueles indivíduos com capacidade de discernimento e autonomia de pensamento – como equivalentes aos fenômenos percebidos sensivelmente, enquanto, por outro lado, a Kultur seria uma abstração, uma ideia passível de ser apreendida somente na representação, na inteligência. Assim, se, por um lado, esforçar-se pela formação é um trabalho que se encontra em desvantagem em relação à cultura, por outro, é por meio dessa formação que é possível que o indivíduo, em sua inevitável parcialidade perante o todo da cultura, aproxime-se dela por meio de sua fonte fundamental: o cultivo pessoal de sua personalidade.

Desse modo, podemos entender a Bildung como a atenção destinada ao processo individual por meio do qual o indivíduo entra na cultura. Esse processo deveria ocorrer de forma não utilitária, ou seja, não visando outros fins para além do desenvolvimento máximo da pluralidade de habilidades e inclinações do sujeito, de modo a lhe viabilizar o contato com a verdade, com a moral e com a beleza. Por isso a sua importância como modo de educar que preza o espírito, ao invés de toda vantagem ou sedução material expressa, por exemplo, no sucesso econômico e profissional. Trata-se do desenvolvimento máximo das forças e disposições de si mesmo pelo próprio valor da exteriorização e efetivação das potencialidades idealizadas como pertencentes ao ser humano.

Cabe lembrar que, quando se fala de Bildung, da formação, isso aparenta sempre ter um cunho especificamente histórico, devido à impossibilidade de pensá-lo em nossas atuais instituições de ensino. Mas cabe lembrar também que, mesmo na época em que se acreditou ser possível e se buscou efetivar sua implementação institucional, ele nunca ocorreu de fato. Sua origem aristocrática prezava o valor pelo conhecimento e o cultivo de si não pela sua utilidade, mas pelo seu valor e nobreza em si mesmo, e, quando o Estado assume as rédeas da Bildung, acontece algo como uma contradição, pois os Estados em geral nunca tiveram interesse pela formação da personalidade de ninguém, mas sim pela educação que proporcione habilidades utilizáveis, ainda que estas se mostrem pelo bom comportamento talvez conseguido pelas ciências humanas – as quais, em última instância, no contexto do ensino básico ao menos, não têm aplicação alguma.

Mas, de qualquer forma, houve um rompimento da modernidade com o passado que é irreversível, pois, ao se pensar na cultura e na formação, já se pensa numa outra compreensão de ser humano, o qual assume o poder sobre a determinação do seu destino, cabendo somente a ele, a partir de então, a responsabilidade sobre sua história e sobre o seu modo de ser, os quais passam a ser entendidos como resultados de um processo educativo e não mais como manifestação das características naturais de uma espécie previamente dada.

Referências bibliográficas

FUHRMANN, Manfred. Europas Kulturelle Identität. Stuttgart: Phillip Reclam, 2002.

HUMBOLDT, Wilhelm von. Os limites da ação do Estado. Trad. Fernando Couto. Porto: Rés, s/d.

PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1949.

RAUHAUT, Franz. Die Herkunft der Worte und Begriffe “Kultur”, “civilizacion” und “Bildung”. Kleine Pädagogische Texte, nº 33, 1965, p. 11-24.

Publicado em 15 de dezembro de 2009

Publicado em 15 de dezembro de 2009

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