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Gianni Rodari e a fantasia da gramática

Alexandre Amorim

Se tivéssemos uma Fantasia, assim como temos uma Lógica, estaria descoberta a arte de inventar

Novalis, Fragmentos

Essa frase foi a pedra de toque para que Gianni Rodari desenvolvesse um trabalho raro no ensino de línguas e de literatura. Esse jornalista e escritor italiano nascido em 1920 e morto em 1980 experimentava uma inquietação criativa que o levou a buscar nas palavras um meio de expressar sua visão de mundo, e sua expressão artística através da escrita sempre esteve ligada ao conceito de fantasia, de saber lidar com o irreal – até mesmo com o insólito – de forma que essa relação provocasse uma reação ao senso comum. Ao conhecer o surrealismo, entendeu que aquela técnica artística era o espaço ideal para praticar a proposta de Novalis: a fantasia como ferramenta de criação. Amalgamar o romântico alemão com o surrealismo francês é apenas um exemplo da liberdade produtora que Rodari propõe. Desde sempre preocupado com a formação cultural e linguística de crianças e adolescentes, o italiano publicou, em 1974, um pequeno livro chamado Gramática da fantasia. Mais do que um livro teórico, é um apanhado de experiências, exemplos e exercícios propostos com a finalidade de inserir a imaginação na educação, especialmente no ensino de línguas e literaturas.

A valorização artística do inconsciente e do irracional proposta por André Breton em seu manifesto surrealista de 1924 acarretaria inevitavelmente a desconstrução do que estava estabelecido socialmente. Obviamente influenciados pelas obras de Freud, os surrealistas (e posteriormente os dadaístas, que também tiveram importância fundamental na formação de Rodari) propunham a derrubada de totens e a releitura de tabus. “O espírito de desmoralização ergueu domicílio no castelo”, dizia Breton. E a fantasia era a porta pela qual esses artistas propunham que entrássemos para que a vida tivesse novo sentido que não aquele já enrijecido pela burguesia dominante. Para um marxista como Rodari, era fácil aceitar a proposta de enfrentar, através da fantasia, uma sociedade baseada em valores morais decadentes. Era justamente essa a chave dialética de que ele precisava e que iria aplicar em seu conceito de “binômio fantástico”, de que falaremos mais tarde.

Ainda no manifesto de André Breton, pode-se ler que “vivemos de fato a nossa fantasia quando estamos lá”. Essa frase parece ter sido decisiva para que o poeta italiano, inclinado à educação infantil, afirmasse que a imaginação deve ser considerada tão importante quanto a atenção e a memória. No ensino tradicional, é exigido da criança que ela se concentre nas aulas e saiba guardar as informações dadas pelos seus professores. Sem questionar a importância do aprendizado em sala de aula, e levando em consideração o princípio básico de que aprender requer mesmo interesse, Rodari propõe adicionar ao interesse do aluno pela matéria o uso de sua imaginação para que possa se tornar mais interessado e para que a experiência com aquela matéria seja mais profícua. Assim, tão importante quanto estar atento à narrativa da descoberta do Brasil e apreender as opiniões históricas acerca do evento, é preciso que o aluno esteja embarcado com Cabral, esteja ao lado de Caminha soprando em seu ouvido uma bonita frase para a carta ao Rei D. Manuel ou esteja na praia escondido com os índios, pronto para defender Pindorama.

Nasce daí a necessidade de ver o professor como um animador, um promotor da criatividade. Essa figura central em sala de aula não pode mais ter o papel de transmitir um saber pronto, mas estar aberto aos erros criativos e às observações dos alunos, mesmo que à primeira vista essas observações possam parecer equivocadas. Errar uma conta de matemática, por exemplo, não pode significar uma mera repreensão, mas um caminho aberto a novas explicações e a um universo em que o aluno sinta prazer em errar, jogar com esse erro e aprender. Como diz Gianni Rodari, o professor “não é um adestrador de potros”.

Educar é também um jogo, uma brincadeira a ser determinada pelos alunos e professores. Brincar com a criança também nos faz conhecê-la melhor. A relação com a criança não pode ser somente adulta.

Sempre trabalhando com a dialética, Rodari parece também conversar com o filósofo Nietzsche e sua vontade de poder quando afirma que “a vida nasce na luta, e a mente se desenvolve na luta”. A partir desse ponto de vista, o poeta italiano criou o conceito do “binômio fantástico”. Se temos dois termos que se ajustam gramática e ideologicamente, como “cachorro” e “osso”, por exemplo, a possibilidade de esses termos gerarem uma nova ideia ou uma história interessante é mais remota do que se escolhermos os termos “cachorro” e “armário”. Um cachorro que mora em um armário é mais interessante do que um cachorro que gosta de roer ossos. A “luta” entre dois termos aparentemente inconjugáveis forma o binômio fantástico, porque essa conjugação dialética vai trazer novos sentidos às palavras e novas fantasias à imaginação do narrador que tenta conjugá-las. Como diz o próprio Rodari, “no binômio fantástico, as palavras não estão presas a seu significado cotidiano, mas libertas da cadeia verbal da qual fazem parte cotidianamente”. Libertar os termos para que a imaginação os use como ferramentas, e não se prenda a eles como correntes. O uso de binômios, isto é, de dois termos estranhos entre si conjugados, ajuda a criar o atrito necessário para o desenvolvimento da fantasia e, por consequência, da história.

A ideia do binômio fantástico pode evoluir para frases e dar origem à “hipótese fantástica”. É como uma predeterminação da história fantástica. Se temos um binômio fantástico – digamos, “pérolas” e “jabutis” –, podemos sugerir uma determinada história. O que aconteceria se jabutis de um zoológico achassem pérolas espalhadas pela lama do fundo do lago de sua jaula? Provavelmente se reuniriam em assembleia e fariam uma cooperativa para trocar as pérolas por sua liberdade, em negociação com o dono do zoológico. E, livres, teriam um bem-sucedido escritório de advocacia criminal. Rodari usa um exemplo muito conhecido do que pode ser considerada uma hipótese fantástica: o que aconteceria se um homem acordasse transformado em barata? Como todos sabemos, Kafka já se utilizou dessa hipótese, com sucesso.

Um dos maiores ensinamentos do livro Gramática da fantasia é aceitar o erro como parte do aprendizado. “Muitos dos erros das crianças não são erros, são criações autônomas das quais se servem para assimilar uma realidade desconhecida”. Mais uma vez, a fantasia passa a residir no dia a dia do professor e do aluno. Nas aulas de redação, o erro é como uma chave para uma nova narrativa. Se o aluno escreve que sofre de uma “obseção”, ao invés de uma obsessão, o professor pode, a partir daí, criar uma repartição pública cheia de seções estranhas, como a obseção (uma seção obstruída), a deseção (uma seção destruída) e a antisseção (uma seção contra seções). Em cada erro existe a possibilidade de uma história.

E mesmo os erros de física, geografia ou matemática podem ser aproveitados para imaginar novas leis, lugares ou fórmulas que levem os alunos a entender melhor as respectivas matérias. Como escreve Rodari, “errando é que se aprende, diz o velho ditado. O novo ditado poderia dizer que errando é que se inventa”.

Através do conceito de erro criativo, podem-se subverter as histórias conhecidas. Adicionar às fábulas, por exemplo, modernidade, ou inverter papéis de seus personagens. Para crianças mais novas, isso representa uma maneira de lidar com os medos e desafios apresentados nas fábulas. Um Lobo Mau que use o Google Maps para localizar a casa da Vovozinha ou uma Branca de Neve que se negue a fazer o trabalho doméstico porque prefere trabalhar nas minas com os anões são mudanças que aproximam as crianças da história e geram um espaço lúdico em que novas questões vão ser trabalhadas.

As fábulas são material permanente na teoria de Gianni Rodari. Sabendo que o núcleo mais antigo das fábulas deriva quase sempre de rituais de iniciação usados nas sociedades primitivas, o escritor italiano se utiliza mais uma vez da desconstrução. “Na estrutura da fábula se repete a estrutura do rito”, afirma ele, e segue: “a fábula passa a existir como tal quando o rito antigo desaparece, deixando de si apenas sua narrativa”. As fábulas são a dessacralização do rito, o fim do caminho do mundo sacro para o laico. Desconstruir o sagrado para que o ser humano possa fazer parte dessa experiência é a premissa para que se permita a interpretação e manipulação da fábula.

Das fábulas se depreende uma introdução à relação com o mundo – ou seja, com a alteridade – e consigo mesmo. Ler a fábula é como um jogo, em que as apostas são feitas através das forças criativas de quem narra e de quem escuta. Se deixarmos a criança participar na elaboração da fábula que está sendo contada, temos um interessante jogo de construir uma história, em que concorrem as forças criativas-narrativas. Como as fábulas reproduzem a experiência infantil (e humana, por extensão), sendo essa experiência uma eterna sucessão de desafios, de provas e prováveis desilusões, a interpretação de uma fábula é em si um aprendizado.

Rodari sofreu grande influência do teórico russo Vladimir Propp, e vários exercícios propostos em seu livro foram criados a partir das funções que Propp definiu como elaboradoras da fábula. Propp resumiu em 31 funções, divididas por personagens, as diretrizes para a criação de uma fábula. Para Rodari, essas funções serão ferramentas para a construção de histórias, “como com as doze notas podem-se compor infinitas melodias”. Pode-se trabalhar com algumas dessas funções e deixar outras de fora para formular uma fábula. São “um fervilhar de ecos fantásticos, para as crianças familiarizadas com as fábulas, com sua linguagem e seus temas”.

O autor italiano parte das fábulas para estudar a criação e a repercussão de qualquer tipo de narrativa. Oferece exercícios para criação de histórias, mas não se esquece do ouvinte, do receptor dessa história. De acordo com ele, a satisfação do ouvinte depende de formação lógico-formal tanto quanto da formação moral da história. Como escreveu Rodari, sobre uma história, sua “solução final foi sugerida pela mente matemática e pelo coração”. Estética e ética se equilibram na importância de uma narrativa.

O livro, como já foi dito, é também um compêndio de exercícios propostos para incentivar o uso da imaginação e da fantasia – tanto dos alunos como dos professores. Além da recriação de fábulas através de erros propositais e do uso aleatório das funções propostas por Propp, podemos citar “a pedra no pântano”. Rodari cita Wittgenstein: “as palavras são películas superficiais sobre águas profundas” e cria a teoria de que toda palavra deve ser uma pedra que afunda no pântano, criando círculos na superfície e afundando em águas cada vez mais obscuras. As metáforas utilizadas nessa teoria denotam que toda palavra gera influências e vai se relacionar com outras palavras, como os círculos gerados pelas pedras na superfície da água. A palavra gera história. Ao mesmo tempo, a palavra se aprofunda em seu significado, que pode ser analisado até que se torne um novo significado. Por exemplo, a própria palavra “pedra” pode afundar em seu significado e se tornar a menina que iria se chamar “Pedro”, se tivesse nascido menino, e por isso vive triste, por ter um nome emprestado.

Imaginação e fantasia são palavras sinônimas se considerarmos o termo criatividade como significado comum entre elas. Para Rodari, criatividade é o mesmo que “pensamento divergente”, isto é, a capacidade de romper continuamente os esquemas da experiência:

é criativa uma mente que trabalha, que sempre faz perguntas, que descobre problemas onde os outros encontram respostas satisfatórias (na comodidade das situações onde se deve farejar o perigo), que é capaz de juízos autônomos e independentes, que recusa o codificado, que remanuseia objetos e conceitos sem se deixar inibir pelo conformismo.

Estranhar o comum, o banal. Questionar o senso comum e desconstruir os totens e tabus, atribuindo sempre um novo e subjetivo significado. Mesmo que a palavra “criatividade” tenha se tornado um motivo constante em propaganda e marketing, e perdido sua força original, é interessante resgatar seu significado através da leitura de Rodari. Para ele, é fundamental criar como exercício de subversão. E é também fundamental a cultura para se poder criar. Ler, ouvir, procurar, ter curiosidade. Consumir para criar. Consumir com crítica, com capacidade interpretativa e, por isso, mais um fundamento: a educação. Quando se diz que “ler é importante”, a frase parece de efeito, esvaziada de conteúdo. Mas essa trilogia – educação, curiosidade cultural e criatividade – é a base preconizada por Rodari para um desenvolvimento saudável do pensamento.

Publicado em 15 de dezembro de 2009

Publicado em 15 de dezembro de 2009

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