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Quando o "Ensaio sobre a cegueira" torna-se factual

Luis Estrela de Matos

ou
A vida no banco de um carro

Ilustração: Dansa

Escrever muitas vezes é uma urgência. Senti-me com a urgência de escrever sobre um assunto recente. Não sei o quanto o assunto poderá não ser dos mais agradáveis. Mas, diga-se de passagem, de coisas fáceis e agradáveis a mídia brasileira e a mundial andam atoladas até o pescoço. Mas existem coisas de uma urgência tão repentina que aproveitar um espaço para publicação torna-se quase uma obrigação, se por obrigação entendermos um velho exercício de cidadania. Então sigamos. Sigamos sem nos perder, sigamos sem nos esquecer. Principalmente do verbo esquecer e do seu vário campo semântico. Esquecíamos uma caneta, esquecíamos a bicicleta, também esquecíamos uma ou outra data de prova de uma matéria não muito amada. Esquece-se o guarda-chuva, esquece-se o celular. Mas não esquecíamos um filho recém-nascido em nosso carro. Até porque o ar-condicionado era coisa de carro luxuoso demais e porque os vidros não recebiam essa película que mais esconde do que revela (incluam-se, também, ladrões, marginais, políticos corruptos etc. etc.). Mas esquecer pequenos seres humanos, minúsculos serezinhos, isso não era comum. E aí a inevitável pergunta de quem ainda acredita no poder, a esta altura quase mítico, da massa cinzenta: o que está acontecendo com as pessoas? Por que, lembrando o atualíssimo Ensaio sobre a cegueira, uma mãe cegou e não conseguiu ver que seu filho, tão recente neste cada vez mais estranho planeta, estava no mesmo objeto (automóvel, no caso), partilhando da mesma existência daqueles trágicos instantes? Há algo de estranho demais no homem contemporâneo. Parece-me, quero acreditar nisso, que estamos derramando pelas paredes de nossos HDs mentais uma quantidade infinita de informações (vitais, aqui no caso) que não pode ser compactada nos mesmos programas e arquivos de outras informações (trabalhar, apagar a luz, girar a chave do carro, escovar os dentes, pagar o porteiro e tudo que o leitor quiser acrescentar). A vida contemporânea não está cabendo na forma contemporânea de viver. Tragédia para uma mãe, sem dúvida alguma. E que tragédia! E tragédia para todos nós, pois quem será a próxima vítima de um modelo de vida que nos vitima de uma maneira ou de outra? Parece que essa vida está com os dias contados. Só gostaria que essa vida falida não se vingasse contando os nossos dias até uma próxima tragédia. Sejamos contemporâneos... mas sem nos esquecer da cegueira. Ou os ensaios tornar-se-ão mais do que livros e filmes.

15/12/2009

Publicado em 15 de dezembro de 2009

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