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"O Brasil não é para principiantes" (Tom Jobim)

Prof. Dr. Eduardo Marques da Silva

A Revolução Industrial de 1760 surgira com o advento do capitalismo industrial, expandindo o desenvolvimento material e a destruição maior, mais acelerada da natureza. O colapso das economias asiáticas, o fenômeno da globalização do comércio, a redução dos comerciantes de bens e dos intermediários, o sucesso da nova tecnologia extrativa têm se multiplicado de maneira assustadora. O novidadeiro capital natural, fruto de uma melhor ambiencia do homem com a mãe natureza, permitiu que se mudassem os conceitos sobre a vida humana. Tudo agora passou a depender da economia da civilização. Descobriu-se então, o alerta: o meio ambiente estava ficando adoentado.

O mundo no futuro enfrentará, como já se configura, uma assustadora escassez de bens. Basta olharmos para os sinais da moderna ‘física atômica’, que vem lançando novas luzes sobre problemas filosóficos, éticos e políticos recentemente sobre a trajetória do nosso planeta. Certamente para que se possa contribuir mais para que os fundamentos dessa acalorada discussão seja compreendida pelo maior número possível de pessoas. É o que diz Werner Heisenberg (1901-1976), com base em recordações de diálogos que teve com Einstein, Bohr, Planck, Dirac, Fermi, Pauli, Sommerfeld, Rutherford e outros colegas (Heisenberg, 2009).

Em um mundo em que as conceituações alternativas de sociedade têm nos oferecido novos caminhos no pensamento científico, como a paralogia (Lyotard, 1988), o capitalismo natural, que compreende os recursos usados pela humanidade, como a água, os minérios, o petróleo, os peixes, as árvores, o solo e o ar, dentre outros, compondo esse quadro, constatamos que o nosso planeta está adoecido físicamente, tanto em recursos naturais como em capacidade de abrigar este predador: o ser humano. Já sabiamos que o estoque de capitalismo natural vinha diminuindo e que os serviços fundamentais de geração de vida que dele fluem estavam se apresentando eivados de contornos criticos, principalmente quanto à nossa prosperidade. Mais uma preocupação vem da recente crise de derivativos dos EUA, que hoje se espalha pelo mundo inteiro e compromete o conceito de propriedade privada. A sinalização econômica de que o capitalismo está novamente se reinventando deve ser lida.

Mudou a metodologia de abordagem? Sabemos que se apresentava como um grande empreendimento gerador de muitos empregos e de prosperidade. Em compensação, ficará consigo uma série de desastrosas consequências e, marcantes como a morte ou o desaparecimento de muitas pessoas, a poluição, a destruição do planeta. Após a recente revolução tecnológica, as empresas passaram a buscar uma opção para a substituição de tantos gastos. Começava-se a viver o tempo do cérebro de obra, despejando uma pá de cal no que seria a tumba da redenção do jogo/dança/luta do capital nos velhos modelos e tecnologias. Davam-se espaços cada vez maiores a uma razão sensível, oriunda da visão holistica, a qual somente se poderia ver através da velocidade do que Kovarik denominou “traquitana diabólica”, o computador, a internet (Kowarik, 1975) e sua ubiquidade. Voltando ao ponto anterior, diriamos que estamos na fase de busca pelo já presente carro elétrico hidráulico, como já o vemos em propagandas pela TV. Quando nos aproximávamos, talvez, do teletransporte: ele seria menos poluente!? Não sabemos que tipo de poluição traria. Contudo, seria mais eficiente no que se refere à facilidade de deslocamento, e certamente mais econômico, pois tudo derivava de movimentos do velho capital de necessidade. É a ideia do carro ultraleve, apresentando composição de materiais que, apesar de super leves, dariam mais segurança, o que seria um contrasenso do pensamento humano. Dizia-se que seriam mais resistentes que os carros de aço comum, quando foi pensado. A preocupação com o “não desperdice”, trazida pela empresa Toyota dos nipônicos no século XX, era bastante significativa da história do tempo presente. Diferentemente, o processo industrial conhecido e feito de maneira altamente poluente seria notado mais agora que a dança do “tudo no todo” começaria a sofrer significativas e sérias transformações. No processo biológico já existia uma preocupação com a reciclagem continuada, apresentando sinais de que novas abordagens da vida entre o homem e a mãe natureza prosseguia sob diversos acidentes. Sempre em um misto de freios e acelerações repentinas.

Daremos especial atenção às estranhas transformações/reformulações sociais que começariam a aparecer ou que se revelariam no urbano da cidade do Rio de Janeiro, como as denominadas formações sociais defendidas pelos professores da escola francesa, Jean-Francois Lyotard, Jean-Claude Schmitt e alguns outros. Eles fazem, na segunda metade do século XX, surpreendentes afirmações, como a de haver surgido e/ou se revelado, uma certa “paralogia social”, umas “sociedades paralelas” (Schmitt, 1990, p. 263) ao lado do todo social formal (ordem) que se conhecia. Segundo eles, era um desenho revelador, que precisava ser estudado com mais acuidade, pois desafiava muitos dos conceitos históricos sociais e sociológicos conhecidos. Na natureza observa-se que elementos como o carbono, o enxofre e o nitrogênio seriam reciclados continuadamente. Já os sistemas industriais tinham, com certas reservas, mostrado que estavam um pouco alheios a tudo. O lixo gerado por eles estava se acumulando na natureza e não havia qualquer solução para o quadro. O alerta que fazemos aqui tamvém vai para o fato de já estarmos em pleno século XXI e ainda constatarmos que a maioria das empresas poderia ganhar bem mais reduzindo o desperdício gerado pelos meios de produção.

Ao invés de repetir incessantemente a velha ladainha de demitir os trabalhadores por várias razões, acabaria por mantê-los com a segurança dos empregos. As empresas poderiam então atinar para o adoecimento da natureza preservando-a mais, garantindo a vida humana em um planeta saudável. Mas, eram as velhas receitas do jogo do capital, que ao nosso entender estavam presos ao uso da mão de obra, exigiam a presença efetiva e transformadora da escola. Assim, tudo acabaria fazendo com que os proprietários do capital aquecessem sua capacidade de mobilidade e esquecessem que vivenciávamos o desafio da troca em alguns países. Era então a mão de obra que estava sendo substituida pelo mais compreensivel modelo de trabalhador: o cérebro de obra.

O mundo enfrentou, em tempos recentes, três crises que o ameaçaram com significativos sinais de dizimar a civilização do século do não e de se reverberar pelo século da esperança, o século XXI. Havia total deterioração do meio ambiente, o que gerava temor e fez inclusive surgir o estudo da Ecologia, com novidades surpreendentes para a humanidade. A dissolução contínua das sociedades e a falta de volitividade das autoridades direcionadas a se preocupar mais parecia não estar na pauta das responsabilidades urgentes. E os estudos apontavam que a promoção do bem de todos era preciso. Ficamos gerando e assistindo, de forma autista, a todos esses problemas relacionados progredirem. Mas como convocar forças para mudar radicalmente tal quadro? Talvez a amparadora escola, com sua envelhecida pedagogia de fazer e formar, fosse o caminho, mas a questão estava em formatar o tudo. Sabemos hoje, muito mais que antes, que “cidadania também se ensina” (Oliveira, 2002, p. 200). Estavamos diante de um gigantesco desafio, que consistia em como fazer ou refazer o mundo das relações sociais.

O problema é que o desenvolvimento de novas tecnologias e a descoberta de melhores maneiras de aplicá-las seriam uma das faces do que chamamos de desafio. Existia, sim, a possibilidade de desperdiçar menos, preservando mais a natureza e produzir inclusive melhores produtos. Porém a tecnologia sempre avança rapidamente. As velhas fábricas muitas vezes não acompanhavam essas mudanças na mesma velocidade com que se produziam as novidades. O pós-nanomecanicismo acompanhado da infotecnologia com base na presença do computador, seguido de perto da infomotricidade, que também modificaria as tipologias de relacionamentos sociais no mundo, estava sendo uma grande tormenta para todos. Tal presença de transformação trouxe novos movimentos para os “jogos de poder” (Morris, 2004) no mundo da política.

O mundo da ciência histórica sofria também as transformações: como a do historiador Arthur Herman, que escreveu trabalhos como A ideia de decadencia na história ocidental (1999), com releituras de Arthur de Gabineau e intelectuais como Jacob Burckhardt e Friedrich Nietzsche, Henry e Brooks Adams, W. E. B. Du Bois, Oswald Spengler, Arnold Toynbee, fez referência à Escola de Frankfurt e a Herbert Marcuse e Sartre, o qual chegaria a afirmar que “os homens de hoje são criminosos natos”, Foucault, Frantz Fenon (1967) e outros. O prazer de lidar com o computador hoje configura-nos uma perigosa, porque traiçoeira, maneira de geração de documentos jurídicos sérios e plenamente utilizaveis, porque adquiriram credibilidade. Veja que o prazer pode se transformar em envolvimento sério e perigoso no campo jurídico, quando mal usado.

O computador e a internet, portadora da capacidade de fazer-nos deslocar sem sair do lugar, denominada infomotricidade, representam grande mudança e tornaram-se ferinos opositores à ação humana e ao relacionamento social. Era um “avesso da liberdade”, como disse Luíz Alberto de Oliveira, citado por Adauto Novaes (2003, p. 197). Talvez precisasse de um novo começo, como disse Michel Serres (2003). Mas não podiamos nos comportar como “O pessimista, que reclama do vento, nem como o otimista, que espera o vento passar”, pois, por mais cômodo que parecesse tal comportamento da academia, certamente seria estranho, ficar descansado a tudo e inclusive com tudo.

É muito dificil descrever o potencial da economia de energia e de recursos quando se evita a poluição, quanto é o desperdicio com o dinheiro, numa indústria hoje sem planejamento e gerenciamento. Isso devido à necessidade e à extensão de seus aumentos consecutivos, principalmente os da produtividade, da capacidade acumulada de produzir ou reproduzir. Sabemos que a produtividade agora é possuidora de energia própria, capaz de ser avaliada com certa previsibilidade cartesiana de prever resultados concretos. A indústría hoje pode ser classificada em pelo menos em cinco categorias principais: design, controles, cultura empresarial, novos processos e economia de material. Também é imprescindível a presença do cérebro de obra. Mas, se o capitalismo tem roupagem nova, ele se estende a toda a sociedade, que Jean-Francois Lyotard considerou uma paralogia e Jean-Claud Schmitt considerou paralela, tanto que defendemos sua existência na pós-escravidão brasileira como uma possível via de escape da exclusão sociocultural presente e sendo a prova de sua fragmentariedade para um todo holístico cujas franjas são urdidas tanto a partir da exclusão sociocultural como desse processo.

As ferramentas mágicas mostram que a semelhança entre as economias pode ser percebida tanto na construção quanto na sua utilização. Nas construções dos prédios verdes, novos e antigos materiais que se mesclam com o intuito de obter maior eficiência de custseio, além de possibilitar nova visão de design, em que se imita a força arejada das teias, o que permite cercar o máximo de espaço com o mínimo de material estrutural. É esta a melhor demonstração da grande entrada de luz natural. Afinal, estamos vivendo o momento do capitalismo natural, não é? Assim, gasta-se menos energia elétrica, chegando muitas vezes a valores altíssimos de economia e, para orgulho nosso, temos um brasileiro, Jayme Lerner, como protagonista da ideia. Há grande opção de técnicas para maximização nas construções hoje em dia. Com a Toyota e a sua revolução, tivemos o que Ohmo, pai da Toyota denominou O muda, quando se tratou do serviço e do fluxo.

Ohmo criava a cultura da eliminação e do não-desperdício, que, com a nova preocupação sobre ecologia, acabou por se alastrar pelo planeta, preocupando as autoridades responsáveis. Com ele, dois pensamentos foram lapidares: a simplificação e a escala. Era a lógica do pensamento enxuto, ou seja, não somente e própriamente exato, mas com ênfase na eliminação de todas as formas de desperdício. Combinava com o trabalho de analistas como Walter States, pai do que foi denominado produção berço a berço, para gerar um terceiro princípio, o capitalismo natural.

Como vemos, consubstanciava-se uma nova escola de pensamento na humanização da produção. Muito mais do que uma nova empresa, era uma grande revolução na dança/jogo/luta do capital. No passado, o capital natural era desprezado diante dos valores econômicos, porque era encontrado em grande quantidade. Uma pesquisa já apontava, a partir de 1972, que nos anos seguintes a humanidade iria se deparar com uma escassez de alimentos gigantesca, e que isso poderia ser evitado se utilizássemos melhor nossos bens materiais. Assim, um ano depois, com a primeira crise do petróleo, produzida pelos paises árabes, comprovou-se a força de tal pensamento. Ao longo da história socioeconômica recente da humanidade, pudemos observar a destruição da natureza sem projetar o futuro, sem preocupação com sua autorreprodução, talvez até por irresponsabilidade. O fato é que essa destruição também chegava aos oceanos e ao ar que respirávamos. O ser humano começava a pensar em como ganhar sem destruir? Novos vieses do saber humano surgiram, como a ciência da Ecologia. Eram novos tempos de preocupações com a vida e o planeta, que deveria ser sustentavel. Todos os exemplos, assim como o potencial ainda não explorado da Terra, nos faziam acreditar na eficiência e na substituição que, em todas as cadeias de valores dos produtos florestais, teriam condições de dispensar a irresponsável derrubada de florestas, dando a ela papéis importantes, como o de habitat e de fonte de renovação. Mas a preocupação só poderia ser com a nova roupagem do capitalismo e suas adaptações, que sempre travestiam-no em seu jogo, agora denominado natural. Por isso hoje vemos áreas das ciências humanas, como a Geografia, e sua vertente recente a Ecologia, se manifestarem veementemente favoráveis a isso.

Sabemos que podemos, hoje, comentar o uso de comunicações eletrônicas, que economiza tempo e dinheiro, sem gastar papel, nas transações comerciais. A utilização do bambu vem sendo empregada para estruturas, que é mais resistente que o aço por unidade de massa e constitui grande percentual da produção global de fibras. Será que estamos vivenciando tempos de desejos frios, como afirmou Michel Tort (2002)? Quanto ao alimento, sabemos que os profissionais da agricultura tenderam a estimular os produtores a se concentrar em certas colheitas, em vez de partir para a exploração de outras. Devido à falta de segurança para a experimentação, os agricultores evitavam novos produtos ou até mesmo técnicas, não queriam arriscar. A mentalidade da monocultura tanto desprezava a tendência da natureza em promover a diversidade quanto dificultava a luta contra as pragas. A dependência química das monoculturas requeria enorme quantidades de fertilizantes. Os mercados dividem suas vendas de produtos agrícolas, hoje, em produtos com agrotóxicos e produtos naturais. Tudo mudava para a produção da agricultura em um mundo absolutamente tomado pela quantidade de produzir para uma humanidade que não cessava de crescer!

A agricultura industrializada também foi uma novidade dos tempos recentes. Por razões econômicas, de saúde e ambientais, era necessária grande mudança nos métodos de produção agricola. Essa mudança não consistia apenas em fazer a mesma coisa de modo diferente, mas em promover mudanças efetivas em tudo, principalmente, no seu todo. As novas soluções resultariam inexoravelmente da mentalidade de todo o sistema e da ciência da Ecologia, incorparariam os princípios do capitalismo natural. Países eminentemente agricolas teriam maior importância para a economia mundial daí por diante.

O mundo vivia uma nova síndrome de medo: o da falta de saídas para o problema que se avolumava à sua frente e, ainda por cima, sem soluções aparentes. Por exemplo, as soluções hídricas implantadas mesmo em água doce e limpa. E ainda se descobriu que a cada dia a água se tornava mais escassa. E, com sua raridade, crescia a preocupação da humanidade em obter água potável. Essa questão está hoje desenvolvendo conflitos até de caráter internacional e, para piorar, o clima tendia (e tende cada vez mais) a intensificar febrilmente as secas.

Atualmente a melhor solução é usar o que temos com mais eficiência, usar com bastante acuidade. Lavar calçadas de prédios, por exemplo, durante horas, com água potável, parece insano e representa enorme perda de riqueza, que pode refletir em grande falta para a população do planeta. Seria interessante então, o investimento nas redes de abastecimento e nas instalações prediais para evitar coisas como vazamentos. E a educação da população – inclusive dos componentes dos corpos sociais e sociocultirais autônomos – para saber como economizar água no dia a dia. A escola é fundamental para isso, pois cidadania se ensina.

O planeta vive com problemas teríveis quanto ao clima. O aquecimento global, nos oceanos, pode fazer com que as correntes se alterem radicalmente, provocando furacões tropicais mais frequentes e violentos. Ou seja, todas as alterações no clima do planeta podem resultar em dificuldades do processo industrial, diminuição da qualidade de vida ou a morte de muitas pessoas.

Nos próximos cinquenta anos, as fontes renováveis se tornarão um produto de tal modo competitivo que certamente crescerão a ponto de suprir, pelo menos, a metade da energia do mundo.

Não podemos ficar autistas para realidades que nos preocupam sobremaneira no aspecto da política, uma realidade que nos apresenta passividade perigosa. Ela oferece envelhecidas ferramentas político-religiosas. Revelam não ter sido superada tal etapa da história sociocultural do planeta. Nas palavras de Evgen Bavcar:

As guerras, as ideologias, e tudo que, na minha pátria eslovena, constituia material de destruição dos corpos (...) com essas jovens vítimas, imprimiram em mim imagens que me fizeram compreender o que significa o olhar de medusa, encarnado hoje nas invenções tecnológicas (...), às vezes o próprio corpo não é mais do que a prótese de uma falsa moral que se recusa a arremessar contra os rochedos os filhos inaptos para a vida, com a radicalidade espartana. (...) O olhar, considerado um dos emblemas mais bem reconhecidos da civilização ocidental, suscita problemas que me surgiram no curso de minhas pesquisas de estatisticas de estética e fotografia. (...) A arqeologia do olhar nos permite também compreender a ideia do corpo como espelho partido da história, mesmo fazendo abstrações da visão física. O corpo não arranca os olhos apenas para dizer sua alma, mas também para olhar para trás, para as trevas do olvido, lá onde as figuras míticas sacrificadas começavam a aprendizagem do olhar humano. (...) O corpo torna-se assim, ao mesmo tempo, o espelho e aquele que observa, a visão e seu reflexo, isto é, o eu sabendo-se visto tanto como o eu não se sabendo visto, que procedem da mesma experiencia do olhar corporal (Bavcar, 2003, p. 179-180).

Poucas foram as pessoas que conseguiram ter essa percepção. Walter Wriston, presidente do Citicorp, declarava que o padrão de informação substituía o então padrão-ouro como base das finanças mundiais daquele tempo. Para essa mudança, seria necessária uma nova revolução financeira, que foi facilitada pelos avanços na tecnologia de informação. O problema maior foi que não se acreditava que chegaríamos a tanto. A partir de 1969, as transações bancárias, ou seja, o capital financeiro, passou a ser operado eletronicamente, tornando o mercado global muito mais veloz e dando outro perfil à vida econômica. Entre os importantes avanços nas comunicações financeiras incluíam-se a introdução das negociações na famosa Nasdaq. A internet possibilitaria o acesso dos lares ao mercado acionário; os aparelhos projetáveis fizeram com que os investidores pudessem negociar em qualquer parte do mundo em tempo real. Isso gerava o surgimento dos day traders, especuladores amadores que operavam principalmente de suas casas e fechavam suas posições no final de cada dia de negociações. Não se percebiam ocorrências maiores, como os problemas climáticos que tratamos aqui, ao verificar a vida do homem no planeta.

Em 1988, nos EUA, já havia cinco milhões de americanos interligados com conta em corretoras on-line. Com esse novo perfil do capital e do capitalismo renovando-se novamente de maneira virulenta por todo o planeta, tudo se tornava aparentemente incontrolável para países como o Brasil, que cada vez mais se revelava pouco autêntico, mimético, mesmo que malfeito em seu mimetismo.

Não se poderia sequer pensar uma poiese mais reveladora que fosse de saída, pois se vivia mais uma fase de difícil acomodação e rearrumação sociocultural, com a complexificação de ser em meio a uma pós-escravidão muito mal definida, a qual urgia uma solução imediata, uma vez que agora contaminava efetivamente as forças policiais e de segurança (o filme Tropa de Elite ilustra bem o problema). Como promover o resgate dos excluídos sem sequer perguntar se desejam? Para ser eficiente, a escola pensada pela academia não poderia ter essa incumbência sem antes animar o sujeito cidadão (Garapon, 2000), que é sempre revelado de maneira irrefletida e com resultados inesperados porque pensado como uma “maquiagem da cidadania” (Bavcar, 2003). Talvez se devesse promover esse tipo de corolário a partir de ações educativas mais eficientes. Cidadania se constrói e se ensina – principalmente a cidadania competitiva.

Suspeitamos que tal construção, para ser tarefa da escola, deva ser concebida de maneira transdisciplinar, com o comprometimento de todos os convocados e envolvidos. Do possuído ao despossuído e daí para o que consideramos excluído social, existem imensas distâncias que são plenamente recuperáveis. Além disso há a ausência de uma relação positiva entre o avanço tecnológico e a vida do cidadão comum, acuado por problemas variados na área econômica, social e política, que passava a se ocupar de um “subcapitalismo” (Sotto, 2001) extremamente perigoso.

Urge questionar a disseminação, nas pessoas, de um consumismo incessante. O mercado devia ser empregado rigorosamente como um meio pelo qual poderíamos satisfazer nossas necessidades; quando seu funcionamento era bom, o êxito recompensava o esforço e havia abundância de instrumentos baseados nele; seus resultados tinham tudo para ser econômica e eticamente superiores. Mesmo tendo o objetivo de satisfazer as necessidades humanas, ele na prática acabava não satisfazendo todas essas necessidades, principalmente quando suas atitudes ameaçam coisas como a ética e a política, o que também se pode atribuir a um jogo/dança/luta que se ocultava e se reduzia nas leis de oferta e procura para que lhe desse movimento, dinâmica.

Os mercados são e serão sempre algo vivo, possuem dinâmica própria, pois se movimentam ao sabor do volitivo de seu público, da sociedade e seus múltiplos relacionamentos. Sociedades ávidas em manusear sua mais-valia e obter ganhos. É assim a luta do capital, de que se ocuparam vários pensadores como Smith, Marx e Engels, sempre com brilhantes abordagens em seu tempo, mas apenas pelo lado econômico. Foram bastante reducionistas na forma de analisar a grandiosidade que representava o todo. O mercado devia ser eficiente, mas não suficiente. Devia ser agressivamente competitivo, como entendemos o seu jogo/dança/luta, nem sempre justo em sua totalidade. Fazer parte do jogo conhecido como de oferta e procura é estar presente nele. Porém agora se está brincando com a mãe natureza, onde a vida encontra seu mais concreto e verdadeiro caminho.

Existe um grande vínculo entre o mercado e a política, apesar de alguns teólogos do mercado promoverem um conceito divergente, de que os governos não devem estabelecer as regras básicas de acordo com as quais os agentes vão atuar. É inexorável que, na era do conflito inclusão social versus exclusão social ou mímese versus poiese, se fique atropelado pelo crescente fenômeno da velocidade da informação globalizada e não se perceba que quem está sofrendo com o abandono é o nosso planeta e suas formações societárias.

Porém, nossa macrocefalia urbana multifacetada e a nossa complexidade social dificultam tarefas que seriam mais eficazes. Os desníveis de escolaridade, as dificuldades de acesso ao emprego pela qualificação profissional, a estruturação e padronização familiar demonstram a impossibilidade (ou dificuldade) da realização das tarefas. Centrar o olhar nas diferenças entre os relacionamentos dos corpos sociais e socioculturais autonômos que comportamos, privilegiando-os no espaço urbano, certamente é bastante complexo. Saír da condição de que falava Conrad (1985) em Tumbeiros para atingir a respeitada cidadania plena é exigir muito em tão pouco tempo de vida. Somente coisas como a educação teria a batuta mágica para provocar mudanças significativas exatamente onde foram desenhadas suas colisões, estratégias de subornos, choques entre eles mesmos pelo fenômeno da territorialidade etc.

Assim, o homem poderá cuidar, com mais capacidade de observação, do verdadeiro estrago que paulatina e insensivelmente provoca na natureza e contribuir para o mundo como um todo. Isso em pleno assentamento do que denominamos de emergente capitalismo natural no tempo presente.

O capitalismo humano no pensamento industrial do final do século XX para o XXI é novidadeiro, pois o que consideramos capitalismo industrial está liquidando tanto com o capital natural, quanto com o humano, obtendo lucros a curto prazo, destruindo as perspectivas a longo prazo. As comunidades e sociedades devem ser administradas para proteger tanto o capital natural como o humano. Temos os ecossistemas que produzem os recursos naturais e os recursos mais valiosos (o sistema social, o homem): a cultura, o saber, a honra, o amor e a ecologia.

A exploração dos recursos humanos está destruindo o próprio homem. Como exemplo, podemos citar a cidade de Curitiba, onde os princípios básicos do capitalismo natural funcionam de maneira inspiradora, integrada, onde o design trabalha com a natureza e não contra ela. O debate ambiental sempre ocorre em um mesmo ciclo, a ciência detecta um novo impacto humano negativo sobre o meio ambiente, os grupos comerciais e as empresas apresentam seus contra-argumentos e a imprensa mostra os dois lados; o tema acaba indo para um lista de problemas insolúveis.

Na nova era do capitalismo natural, uma empresa, para ser bem-sucedida, deverá respeitar e compreender as quatro visões, tendo em mente que as soluções consistem em compreender as interligações dos problemas, e não tratar cada um isoladamente. Em nosso planeta existe manual de instruções para quase tudo. Mas não existe manual de instruções que ensine a viver e a atuar na Terra, o sistema mais importante e complexo que conhecemos. Os princípios do capitalismo natural tornarão mais firmes os fundamentos da sociedade. As empresas terão que abandonar as técnologias existentes, em vez de aperfeiçoá-las aos poucos. Isso pode significar o abandono da pesquisa dos produtos mais importantes enquanto eles ainda são os vencedores simplesmente porque produtos e/ou sistemas novos são capazes de desempenho muito melhor.

Hoje as empresas estão começando a encarar a perda do capitalismo natural ou das funções do ecossistema como algo prejudicial aos seus interesses. O próximo passo talvez seja perceber que as desigualdades sociais são igualmente prejudiciais. As questões decisivas para as indústrias sensatas e bem-sucedidas, incluindo seus proprietários, referem-se não a como produzir melhor os bens e os serviços necessários à satisfação da vida mas ao que vale a pena produzir e o quanto é suficiente. O capitalismo natural está nas escolhas que podemos fazer para começar a dar sentido mais positivo aos resultados econômicos e sociais que desejamos. Capitalismo natural é aquele que se configura quase sempre em capitalismo humano. Como afirma Jayme Lerner: “pensando o homem por inteiro é possível encontrar soluções que garantam, na cidade e no campo, na diversidade de cada região do Paraná, um padrão mínimo de bem-viver (Hawken, Lovins e Lovins, 1999).

As cidades sempre terão seus problemas; nas brasileiras, os problemas se agravam com a mimese muito malfeita que praticamos e que é uma das nossas características socioculturais mais gritantes. Entremeando nossas mimeses, encontramos saídas surpreendentes para quase tudo, compondo um perfil peculiar no nosso estado sociocultural. Quem sabe encontramos as saídas? Como em todo o mundo, o mais importante é que as vejamos todas, dentro do absoluto respeito ao seu mais verdadeiro tudo. Por isso mesmo, os problemas geralmente são solucionados isolada e/ou coletivamente até ver as configurações finais que apresentam. Muitas das questões sociais e plenamente humanas, são causadas pelas soluções dadas a outras. A humanidade, no sentido prático de viver o dia a dia, de sempre se relacionar com diferentes e inesperados, é variável no que entende por ambiência. Os seus choques, no que tange aos seus variados corpos sociais e socioculturais, são notórios na urbanidade fluminense e merecem registro, principalmente quando a cidade se apresenta como polo de irradiação de sua capilaridade contaminadora e de capitalização e começa a viver o modelo da globalização, beneficiamdo-se de suas gigantescas vantagens tecnológicas. O medo que une uma causa à outra acaba sendo absolutamente paralisante, como afirmou o português Paulo Guinote (2006).

Assim, como dizem a metodologia do ensino de História e o pesquisador Isaiah Berlin em A inevitabilidade da conceituação em História, tratando sobre questões adstritas ao conhecimento e à liberdade, estas são inseparáveis, porque a segunda não é algo que nos é dado, mas uma aquisição feita pelo homem ao longo de seu amadurecimento temporal. Além disso, a educação autêntica só pode ser educação pela e para a liberdade para que não se torne doutrinação. Existe, portanto, um longo caminho a ser percorrido na construção da autonomia pessoal, do fortalecimento da cidadania, da expressão do conhecimento como manifestação plena da liberdade no mundo moderno. Podemos ver que é inexorável a existência do conhecimento e da liberdade, pois se complementam, tornam-se um só corpo e como tal seguem seu trajeto no interior do coletivo organizado. Configura igualmente uma alma de como em tudo o que se pode ser exprimido pela sociedade em seu composto é verdadeiro.

A liberdade é, portanto, uma construção sobre as condições concretas e históricas, pois o homem é sujeito social em qualquer ambiência em que esteja inserido. Por isso, age de forma pessoal, individual e autônoma quase todo o tempo. Por ser social é que ele pertence de forma quase homogênea ao grupo ou corpo da sociedade da ordem e aos corpos sociais e socioculturais autônomos. Os que olham para nossa sociedade não acham com acuidade os espaços da pobreza, da pauperização social dos que perdem e/ou perderam no jogo do capital. Tudo porque o social não é composto por um somatório de indivíduos, mas de uns sincronismos que as vezes lhes desenham uma silhueta de desincronização, inclusive para que possamos chamá-los de corpos sociais e socioculturais autônomos.

Como proceder diante de tamanha complexidade na condição em que nos encontramos? Constatando que estamos absolutamente sem ferramentas adequadas para o enfrentamento que nos apresenta a realidade fluminense, envolvida em seu urbano cada vez mais perigoso, coabitado hoje por pessoas oriundas das favelas, tanto as cidadãs como as que foram excluídas!

Atualmente não se trata mais de um problema que deva ser pensado somente com olhares voltados à velha prática da escravidão. O problema pertence à nossa complexa convivência moderna, porque somos mesmo um povo de um país que não é para principiantes, como disse Tom Jobim; um país que quase sempre surge pontuado das mesmas mimeses e de variadas tipologias de influências e matizes variados. O nosso social e sociocultural é geralmente apresentado como contemplativo, porque tem um desenvolvimento voltado para fora, como disseram Sunkel, Pedro Paz e Servicenko (2001). E ainda vivemos hoje um momento sui generis, revelador de calamidades sociais que podem ser evitadas.

Como dizia Isaiah Berlin, somos indivíduos, mas a construção do individualismo tem sido realizada no e pelo grupo de pertencimento. Evgen Bavkar e Jean Claude Schmitt a classificaram respectivamente como: paralogias sociais e sociedades paralelas.

Talvez ai resida a importância de buscar o conhecimento. A liberdade é uma tarefa complexa e difícilima de exercer sem estar exposto a golpes próprios do relacionamento interpessoal e transpessoal. Conquistá-la requer o ato de superar a difícil construção do ser social em sua individualidade. Requer sempre algo mais e, se depende de nós, temos de evitar a complexidade coletiva. Requererá também o conhecimento efetivo, que liberta ou aprisiona no mundo social particularizado. Temos que ficar alerta para obter compreensão maior da realidade vivencianda que nos cerca. Como diz o samba, “Sou biscateiro, doutor, Eu sou honesto!/Vai lá no morro, doutor, saber se eu presto ou não presto”.

A vida é repleta de realidades surpreendentes, que requerem sempre novo aprendizado. A palavra “presto”, observada com acuidade, nos leva a inferições audaciosas: perguntando para quê? para quem? Teríamos respostas que ficariam engasgadas em qualquer pessoa preocupada com o ato de respondê-las. A escolha é fundamentalmente atrelada ao mundo das condições históricas da sociedade em que o individuo nasceu e se educou. As oportunidades e as formas e possibilidades do seu conhecimento daquele grupo o identificariam, em um primeiro momento. Nele se encontram todas os sinais que os identificam, inseridos ou não no mundo globalizado.

O novo embate apresenta os tempos recentes da humanidade, agora envolta na questão do adoecimento ecológico do planeta, imbricado e envolvido por uma razão concreta e pela razão sensível, a holística. Jean-François Lyotard diz que:

Um jogo de linguagem significa que nenhum conceito ou teoria poderia capturar adequadamente a linguagem em sua totalidade, no mínimo porque a tentativa de fazê-lo constitui seu próprio jogo particular de linguagem. Assim, as grandes narrativas não têm mais credibilidade, pois fazem parte de um jogo de linguagem que é, ele próprio, parte de uma multiplicidade de jogos de linguagem.

Assim, podemos visualiazar o quanto é para o historiador social a história oral, que pode traduzir experiências de trajetórias de vidas. É preciso ter cuidado, pois, como diz um samba popularíssimo, “quem espera tempo bom é sertanejo, (...) não leve a mal, me dá o meu agora!”, em festa de rato não sobra queijo!

Estamos vivendo no capitalismo, onde também se encontra o jogo/dança/luta em representações menores, microscópicas como a percepção de coisas como a mais-valia, apresentada por Karl Marx e Friederich Engels. Para vê-las precisariamos de um “olhar de medusa”, do qual nos falou Evgen Bavcar da e pela movimentação dela, que significa a obtenção do tão desejado lucro, que por isso acaba sendo sistemantista, vivo, dinâmico e se reverbera também na linguagem, hoje ingrediente de identitariedade inconteste. Nela se esconde toda uma trama de diálogos, ainda não decodificados eficientemente pela ordem, mas que certamente são identitários e figuram como características pontuais, que devem ser levadas em consideração ao tentar deslindar a corporificação grupal, autônoma ou não.

Lyotard diz que:

Obrigação não é o resultado da minha lei, mas da lei do outro: só posso ser obrigado se a obrigação vier de fora do meu próprio mundo: do mundo do outro. A lei do outro que obriga, é prova da impossibilidade de jamais se construir uma representação adequada dela.

Assim, quando afirma que a frase ética só pode ser um sinal indicando uma obrigação que nunca possui forma concreta, toca de maneira indelével em questões já faladas aqui: a mimese e a poiese. Em suma, do ludibrio praticado culturalmente pelo nosso povo, fruto de nossa moderna razão sensível. Isso efetivamente mexe com o tratamento que deveríamos dar aos excluidos sociais, habitantes contumazes de nossos corpos sociais e socioculturais autônomos. Conclusões de Lyotard:

  1. Só afirmações narrativas denotativas (descritivas) são científicas;
  2. Afirmações científicas são muito diferentes daquelas (relativas às origens) que constituem o laço social;
  3. A competência só é exigida da parte do emissor da mensagem científica, não da parte do receptor;
  4. Uma afirmação científica só existe dentro de uma série de afirmações que são validadas por argumento e por provas;
  5. À luz de que diz a quarta, o jogo da linguagem científica exige um conhecimento do estado existente do conhecimento científico. A ciência não mais exige uma narrativa para sua legitimação, pois as regras da ciência estão imanentes em seu jogo.

A história oral nem sempre constitui, e às vezes até não é, uma afirmação científica de completa fidedignidade. Ela pode ser mais um falso depoimento, o qual deve antes de ser colhido, abrigado e tornado público, deve-se ter clara a sua abrangência, a acuidade com sua procedência, estrutura narrativa, lateralidades e intencionalidades, até mesmo as que podem ser lidas pela luz de suas heterologias, como ensinou Foucault (1965). Maria Teresa Turíbio Lemos, em Corpos Calados, alerta sobre a leitura do gestual. E todas as leituras também pertencem a uma história social tanto quanto a sociocultural, uma vez que decorrem quase sempre do local que, com o advento do computador, ganhou maiores espaços, no complexo mundo do que a professora portuguesa Luiza Cortezão chamou de “localismo global versus globalismo local”. Cortezão até hoje não teve eficiente combate na área da história social, e muito menos na sociológica.

A mãe natureza apresenta uma possível extinção anunciada. Hoje tem o capitalismo natural, de onde se destaca preocupantemente o que denominamos ambiências envoltas no urgente estudo da ecologia. Os autores (Paul Hawken, Amory Lovins, L. Hunter Lovins) afirmam que nos próprios termos do sistema enquanto performance, o controle pelo conhecimento reduz seu desempenho, já que a incerteza aumenta com o conhecimento, como afirmava Heisenberg, citado por Lyotard. Um paradigma que enfatiza a imprevisibilidade, a incerteza e, até a catástrofe, como na obra de René Thom, o “caos” e, acima de tudo, uma paralogia ou a dissensão, nos fazem acreditar na existência de corpos sociais e socioculturais autônomos e nas sociedades paralelas.

A paralogia, principalmente a social, torna-se impossível quando o reconhecimento é contido e a legitimação é negada para novos movimentos do capital. A ideia de ser incapaz de apresentar uma clara posição que seja diferente das regras dominantes da argumentação e da validação, diz Lyotard, existe quando não existem procedimentos acordados para o que seja diferente, seja uma ideia, um princípio estético, uma reclamação, a ser apresentada no domínio atual do discurso. Ao invés de jogos de linguagens, Lyotard fala de regimes de frases e gêneros de discursos que podem traduzir formações autônomas verdadeiramente corpóreas sobre a fragmentação já histórica em nossa sociedade. Elas têm suas regras de formação próprias, e cada frase representa um universo de identidades independente, um mundo particular e peculiar. Não existe, portanto, um universo no sentido lato da palavra para designar esse tudo, que hoje estranhamente se relaciona e dialoga com um todo holístico de seu entorno, mas uma pluralidade de universos imbricados, complexos. Obrigação não é o resultado da minha lei, mas da lei do outro, como que heterológicamente lembrasse M. Foucault:

só posso ser obrigado se a obrigação vier de fora do meu próprio mundo: do mundo do outro. A lei do outro que obriga é prova da impossibilidade de jamais construir uma representação adequada dela. A frase ética só pode ser um sinal indicando uma obrigação que nunca possui forma concreta.

Um novo paradigma pós-moderno está surgindo, enfatizando a imprevisibilidade, o caos e, acima de tudo, a paralogia ou a dissensão que comandava tudo do todo e todo do tudo. Inebriou os olhares científicos sobre o que havia de concreto no método de abordagem científica. A dissensão desafia as regras existentes do jogo do capital e a paralogia torna-se impossível quando o reconhecimento é contido. Vide o Rio de todos os Brasis, multicultural e multifacetado em sua composição: as favelas começavam a apresentar desenhos inesperados e bastante preocupantes para as instituições de segurança pública. O agravante foi a presença de um caminho que acabou nos tornando reféns deles em sua totalidade de movimentos, a ponto de não se reconhecer a real cidadania das pessoas que lá vivem e generalizar na busca da definição de sua existência a presença da droga e de seu poder, um crime-negócio que recruta os jovens ou os jovens vivem dela por causa do desemprego. Situação urdida nos tempos coloniais de nossa história.

Lyotard diz que a ideia de ser incapaz de apresentar uma posição que seja diferente das regras dominantes da argumentação e da validação fornece um ponto de transição adequado para sua obra. É o diferente nome que o autor dá ao que chama de silenciamento de um jogador em surpreendente jogo de linguagem. Ele existe, quando não existem procedimentos acordados para o que seja diferente. Seja uma ideia, um princípio estético, ou mesmo uma reclamação.

Ao invés de jogos de linguagem, Lyotard fala da existência de regimes de frases e gêneros de discursos, por exemplo, os do mundo das favelas, que são bastante peculiares. Eles têm suas regras de formação e até formatação. Cada frase dita em seu meio representa um mundo à parte. Não existe, portanto, um universo, mas uma pluralidade de mundos particulares no interior do grande mundo social que conhecemos, ao lado de nosso social formal. Além disso, a educação autêntica só pode sê-la, para e pela liberdade, por meio dela, para que não se tome doutrinação. Existe um longo caminho a ser percorrido na construção da autonomia pessoal e do fortalecimento da cidadania.

A noção de cidadania deveria nos levar a solucionar os problemas, a solucionar diversos problemas de uma vez. Para tanto, o planejamento das urbanidades deveria ser estratégico, funcionando como uma cadeia de ações, com soluções em diversas áreas, inclusive a social. Trabalhando sempre conjuntamente, como o saneamento e a educação. Buscar-se-ia assim priorizar a qualidade de vida para todos os cidadãos, excluidos sociais ou não. Enfim, a humanização das cidades deveria ser prioritária, pois traria um pouco de cidadania, bom-gosto no viver. Já que, por aqui, na pós-escravidão, tal realidade tem se mostrado bastante difícil de pensar pela elite brasileira, que não consegue se conceber como crioula.

Os métodos inadequados de exploração destroem a integridade das culturas aqui reunidas desde o período colonial, das culturas paralelas ou paralóicas. Em Curitiba temos um excelente exemplo de cidadania respeitada e, que parece ser adotada também por outras, como Niterói. Foram tomadas iniciativas com objetivos múltiplos, de baixo custo, rápidas, simples, locais, centradas nas pessoas. O início do processo foi em 1972, com a administração de Jayme Lerner. Foi preservado o centro histórico e em apenas 48 horas surgia a Rua das Flores, para pedestres, um calçadão de lazer, sempre com atividades para crianças. Foram criadas outras ruas com prioridade para pedestres. No setor de transporte, criaram-se os corredores exclusivos para os ônibus expressos, biarticulados e triarticulados, como chamaram na época, mais econômicos que o moderno metrô, e para vinte mil passageiros por hora, o que gerou economia de combustível e diminuição da poluição. Foram criadas também vias expressas para automóveis e fez-se um novo zoneamento misto, deixando as áreas residenciais e as comerciais mais bem dispostas e apresentáveis. O social ficou muito mais importante diante do desafio de enfrentar o rush, comum nas grandes cidades.

Não nos ocupamos da cultura dos ex-escravos no Brasil com o devido cuidado nos vinte primeiros anos de nossa vida de independência, multiplicando as ocorrências de uma virulenta criminalidade. O mais surpreendente é que continuamos como se tudo estivesse plenamente resolvido. Assim, é fácil apontar os resquícios simbólicos da sua presença. Colocamos aqui o compromisso de lê-los na luta até pela resistência sociocultural do grande corpo social fluminense que configuramos, com o fito de desenhar a permanência da obra da escravidão. Hoje, o cibercidadão se impõe como um requisito indispensável para sua inserção no mundo globalizado. Porém a nossa macrocefalia urbana dificulta tarefas profiláticas e eficazes em sua direção. Os desníveis da escolaridade e, como consequência, as dificuldades de acesso ao emprego e à qualificação profissional dificultam bastante a realização desta tarefa.

Centrar o olhar nas diferenças entre os relacionamentos dos corpos sociais e socioculturais autônomos da cidade é bastante difícil. A cidade do Rio de Janeiro é ainda a síntese do desejo e da “identidade de um Brasil multicultural complexo, que somente se vê no espelho quando se reporta ao seu urbano”, como afirma Carlos Lessa. A professora Vera Malaguti (2004) chega a chamar o Rio de Janeiro de “a cidade do medo”, nas várias faces que apresenta.

Michel Certeau embasa e dispara o nosso reexaminar para além dos códigos, gírias e jargões utilizados pelo outro (1982). A austeridade, a inteireza de caráter, a severidade, o rigor, jamais serão abalados se partirmos com mais audácia para fazer uma vida melhor para todos. Sabemos que a complexidade deste tipo de análise residiu nas circunstâncias dos objetos a serem estudados. Segundo Certeau,

nesse contexto é que se situou a complexidade do saber dizer a respeito daquilo que o outro cala. Apesar de o outro consistir no fantasma da historiografia, a produção historiográfica que nos foi legada representará um acervo valioso para recuperar a história das sociedades em conflito no urbano da cidade do Rio de Janeiro para inserção em um mundo complexo da globalização.

A historiografia social e sociocultural, de acordo com os paradigmas quase sempre eurocêntricos, acolheu os espectros do outro, sob a condição de se calarem para sempre – mas não se calaram, como vemos. A dinâmica formal de um volitivo incontido sempre nos impulsionou e nos impulsiona para mais uma tarefa de melhorar a vida vivenciada por aqui.

Referências

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Publicado em 15 de dezembro de 2009

Publicado em 15 de dezembro de 2009

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