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A manha dos marítimos

Cláudia Dias Sampaio

Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros (Mar morto, 1936).

Instável como a vida de todos nós, sempre a surpreender com o inesperado, lugar mítico, tema poético de dimensões oceânicas, “mistério que nem os velhos marinheiros entendem”. “Doce amigo”, mas também dono das “águas plúmbeas”, do espesso óleo que oculta o corpo do amado, docemente levado pelas ondas até a Terra de Aiocá: o mar de Jorge Amado é signo da vida e do amor.

Os velhos marinheiros, donos de saveiros e malandros que povoam os portos do Recôncavo Baiano, onde se passa a história de Guma e Lívia, é o “povo de Iemanjá que tem muito o que contar”. À espreita da morte se entregam profundamente às belas noites de Lua cheia e à angústia das tempestades. Os homens do mar não esperam muita coisa da vida:

viajar sobre as ondas, ter um saveiro seu, beber no Farol das Estrelas, fazer um filho que seguisse seu destino e ir um dia com Iemanjá. Bem que canta uma voz no cais nas noites mais belas:
É doce morrer no mar…

 

Canção do mar

O conhecido verso da música É doce morrer no mar (1941), dos amigos Jorge Amado e Dorival Caymmi, homens da terra que se dedicaram a entender o coração dos marítimos, se espraia pela narrativa na voz do negro que atravessa a noite.

Numa dessas noites de tempestade, quando nenhum pescador se aventurara a sair com seu barco, o apelo de seu Godofredo por socorro aos filhos que estavam num navio perdido faz Guma lançar-se ao mar bravio e realizar seu primeiro ato heroico. Célebre nos portos da Bahia, seu desejo não é diferente do dos marinheiros que povoam o cais: quer amar perdidamente uma bela mulher, mesmo sabendo que o destino dela será triste.

Há uma canção do cais que diz que desgraçado é o destino das mulheres dos marítimos. Dizem também que o coração dos marítimos é volúvel como o vento, como os barcos que não se fixam em nenhum porto. Mas todo barco tem o nome do seu porto na proa. Pode andar por outros, pode viajar muitos anos, mas não esquece o seu porto, voltará a ele um dia. Assim o coração dos marinheiros. Nunca eles esquecem aquela mulher que é a deles só.

A dona do mar: Iemanjá, dona Janaína, dona Maria, Inaê, princesa de Aiocá

Durante a festa de Iemanjá, “mais bonita que todas as procissões da Bahia”, no terreiro de Candomblé de pai Anselmo, onde era iniciado, Guma pede à Iemanjá, a rainha dos cinco nomes, uma mulher tão bonita quanto ela, com seus cabelos que colorem as águas salgadas. Nessa mesma ocasião, ele vê Lívia e se apaixona perdidamente.

Se a busca heroica de Guma por um grande amor é exagero na narrativa de Jorge Amado, aproximando-se do melodrama, gênero das novelas por excelência, o romance não perde por isso em qualidade literária. Neste que ele considerou seu melhor livro, escrito em 1936, aos 24 anos, quando acabara de concluir a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, estão presentes temas poéticos por excelência: amor, morte e música.

Esse diálogo com a poesia leva a refletir sobre o título do livro, homônimo do mar Oriental que banha o interior da Palestina (Jordânia, Cisjordânia e Israel), elo entre povos que vivem uma guerra de tão difícil compreensão para nós, ocidentais neste XXI. A água cinzenta, pesada, soturna, plúmbea do Mar Morto descrito por Jorge Amado se assemelha à espessura desse mar do Oriente. Por sua grande salinidade e seus minerais, no Mar Morto é possível ao banhista flutuar, perder o chão sob os pés na água que lembra calda de açúcar queimado. Um pouco como ficamos após a leitura de Mar morto, que apresenta o amor como bálsamo para a dor humana diante da finitude e do imponderável.

Mesmo distante da fragmentação tão presente nas narrativas modernas, o romance dialoga com a poética da modernidade. Lá está a narrativa não linear, o diálogo com Freud, passível de leitura no trecho em que Guma pede a Iemanjá uma mulher sem o perfume esquisito da mãe que era prostituta e que ele, sem saber que era sua mãe, desejara na noite em que a conheceu pela primeira vez.

Terno, sem se render ao romantismo do XIX, o romance proporciona valiosas reflexões, sobretudo por ser expressão de princípios tão humanos. Há o que ultrapassa o sentimentalismo individualista do romantismo estéril: o mar.

Nele se movimenta não só o amor de Guma e Lívia, mas as canções do ABC de Rosa Palmeirão, o velho Francisco, o filho Frederico, Maria Clara, Rufino, Judith, Esmeralda, o árabe Toufick, Chico Tristeza, Jacques, Rodolfo, Vesgo, Maneca Mãozinha e todo o povo marítimo. E ainda doutor Rodrigo e dona Dulce, médico e professora que fizeram do mar sua moradia.

Tanto pela perspectiva de uma mudança social que partisse do povo quanto pela concepção de um amor que extravasa os limites do individual, no milagre esperado por dona Dulce surge o diálogo com as ideias anarquistas e comunistas que moviam o escritor naquela época.

Amor de marinheiro

Mesmo os poetas que se dedicam aos lugares mais sombrios e herméticos não estariam pensando no amor? Tema polêmico em tempos de desencanto, o amor talvez se localize no ato mesmo de escrever o poema, como sugere “O sobrevivente” (Alguma poesia), de Drummond: “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade”. E ainda o fascínio pelo Oriente, outro tema constante na poesia ocidental, não seria esse desejo pelo desconhecido mais um gesto dos poetas de falar sobre o amor?

Porque sujeito ao movimento das marés, já que signo do mar, o amor de Guma e Lívia não é sereno; estaria talvez mais próximo de uma “serenidade desesperada”, como a navegadora de Cecília Meireles em “Epitáfio da navegadora”, de Vaga música.

Neste amor, pulsante como o movimento das ondas do mar, estão presentes a não-aceitação inicial da família da moça, a sedução da vizinha Esmeralda, a vigília da morte e a tortura pela espera de seu homem. Saber-se mulher de Guma, ser seu “porto fixo”, é a serenidade de Lívia. Ciente de que seu laço estava firme como o nó dos marinheiros, poderia enfrentar tempestades e até a morte. O mar os unia, era doce amigo.

Lívia anunciava a chegada do milagre tão esperado por Dona Dulce, inventando um outro rumo para as mulheres dos marítimos, pois era ela também uma marítima.

Alguns poetas em língua portuguesa que tiveram o mar por inspiração:

Luís de Camões:

(última estrofe do canto primeiro de Os Lusíadas, 1572)
(...)
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Fernando Pessoa:

(“Mar português”. Mensagem, 1934)
(...)
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Cecília Meireles:

(“Beira mar”. Mar absoluto, 1945)
(...)
Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.

Carlos Drummond de Andrade:

(“Amar”. Claro enigma, 1951)
(...)
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Leia sobre a obra e a vida de Jorge Amado e a nova reedição de sua obra completa que está sendo produzida pela Companhia das Letras.

Ficha técnica do livro:

  • Título: Mar Morto
  • Autor: Jorge Amado
  • Gênero: Romance
  • Produção:Companhia das Letras

Publicado em 10/02/09

Publicado em 10 de fevereiro de 2009

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