O Presente

“Meu tema é o instante. Meu tema de vida.”

Como repousar no presente, no risco do “instante-já”, se o mundo e a vida nos são apresentados como algo ordenado, controlado, em que devemos é nos ocupar do futuro, das questões práticas, e não ficar perdendo tempo com a imaginação? O desafio de receber o presente e gozá-lo em sua plenitude talvez seja o que mais nos aproxima da delicada experiência de viver a liberdade. Desafio porque a entrega demanda esforço, “o instante é de um escuro total”. Assim o livro de Clarice Lispector, cuja leitura é presente imenso. Mesmo diante da narrativa explosiva, que foge aos padrões da linearidade confortável das telenovelas, o convite é irresistível, oportunidade única de tirar os sapatos apertados, desligar a televisão, o celular, colocar o computador em estado de espera, recostar na poltrona e se lançar na “palavra-placenta” de uma escritora que tão bem sabia convocar o leitor a viver a dor e a delícia dessa entrega:

Nada existe de mais difícil do que entregar-se ao instante. Esta dificuldade é dor humana. É nossa. Eu me entrego em palavra e me entrego quando pinto.

Escrito entre 1971 e 1973, quando foi publicado pela primeira vez, Água viva poderia ser considerado um romance-reflexivo sobre a arte da escrita. Nas primeiras páginas, o texto é apresentado como uma tentativa de “captar a quarta dimensão do instante-já”; pouco adiante lemos: “A palavra é minha quarta-dimensão”. Eis o anúncio do tema central de Água viva: a palavra escrita. E para pensá-la Clarice apresenta um exercício extremamente apurado, não pela narrativa descontínua e pelo ato de voltar-se para a própria escrita (lugares comuns na literatura contemporânea), mas sim pelo modo como a autora desvia-se da linguagem trivial, apresentando uma ficção construída por fragmentos sutis e precisos, convocando o leitor a participar da exploração dos poderes dessa linguagem.

Sou um coração batendo no mundo. Você que me lê que me ajude a nascer.

A história de amor de Clarice é com as palavras e com aquele que a lê. Poderíamos aproximar esse “leitor-personagem”, estratégia de escritora experimentada (trata-se de seu quinto romance), do “leitor implícito”, integrado à estrutura do texto, como teorizou Wolfgang Iser (em O ato da leitura).

Na harmonia do texto, além do leitor, estão assuntos consagrados na arte da escrita, como música, imagem, amor, vida, morte e silêncio. Clarice exalta a ficção como caminho possível para chegar a esse lugar do presente, a partir das metáforas com as quais constrói o livro e, sobretudo, as pequenas histórias, os delicados quadros que o atravessam:

Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida.

Na literatura, a verdade possível é a inventada. A aparente desordem na narrativa do livro, que por uma leitura ingênua poderia ser associada à escrita automática proposta por André Breton e o surrealismo, justifica-se muito mais pela tentativa da autora de, pelo discurso, criar uma experiência em que se conjugam entendimento e imaginação. Aguçar o desejo por esse lugar, tendo na ficção um caminho possível para também pensar a vida, parece ser a proposta de Água viva.
Se do futuro nada sabemos e do passado não nos resta mais do que as lembranças, resta-nos desfrutar desse presente, das imagens que nos oferta Clarice e da sabedoria de sua consciência trágica da vida; afinal, “para que oceano perdido vão os meus passos de vida?”.

Bibliografia

ISER, Wolfgang. O ato de leitura. Uma teoria do efeito estético. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1996 e 1999.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. São Paulo: Círculo do livro, 1976.
PESSANHA, Camilo. Clepsidra, 1920.
PIMENTA, Alberto. O silêncio dos poetas. Lisboa: Cotovia, 1978.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad.: Mônica Costa. Netto. São Paulo, 2005.

Publicado em 17/02/09