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Uma aventura de carnaval com João do Rio
Raquel Menezes
Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? (João do Rio)
Todo carnaval tem seu fim (Marcelo Camelo)
Carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente
popular de milênios passados... é o mundo às avessas (Mikhail Bakhtin)
Em tempo de fantasias, máscaras, confetes, serpentinas e marchinhas, trazer um texto de João do Rio é sempre bem-vindo. A história aqui apresentada é “O bebê de Tartalana Rosa”, uma narrativa sobre uma experiência de Carnaval.
Em um jantar da elite carioca, a personagem Heitor de Alencar conta o que de mais estranho fez durante um Carnaval: frequentou bailes em que estava a escória da sociedade, até conhecer uma garota com uma máscara de bebê, ficar obcecado por ela, procurá-la em todos os cantos, agarrá-la, até descobrir o porquê da máscara, numa cena que se localiza entre o humor e o terror.
Nesse texto, e em tantos outros de João do Rio, identificamos o tema do Carnaval como sendo uma época para se perder na utopia e na luxúria. Bakhtin afirma que o Carnaval é um festejo em que uma inversão dos valores do mundo é promovida, em que todos se tornam iguais mediante um vasto jogo de expressões, brincadeiras e, principalmente, através do riso. Exemplo disso é a primeira fala de Heitor de Alencar, a personagem-vítima de uma aventura carnavalesca:
(...) O Carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de Carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um Carnaval sem aventuras não é Carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...
Desse modo, o Carnaval busca através de blasfêmias, sátiras de rituais religiosos e imagens grotescas rebaixar toda a sociedade a um mesmo nível. As “brincadeiras”, na verdade, são uma forma de o povo, mediante as diferenças e obrigações que lhe eram exigidas em seu cotidiano normal, renovar seus ânimos. Alguns políticos, como Getúlio Vargas, desejante de inserir as massas em sua política nacionalista, se valiam da força do Carnaval para passar mensagens ao povo.
O Carnaval, festividade mundialmente conhecida e praticada, é o período anual de festas profanas que teve origem na Antiguidade e foi recuperada pelo cristianismo e se constituía de festejos populares provenientes de ritos e costumes pagãos, caracterizando-se pela liberdade de expressão e movimento. A respeito disto, a historiadora Raquel Sohiet, a partir de reflexões de Júlio Caro Baroja, afirma:
O carnaval é filho dileto do cristianismo, e a forma com a qual se apresenta, desde a Idade Média europeia, demonstra estar intimamente ligado à ideia de quaresma. (...) Isto não impede que nele permaneçam incluídas muitas das festas de origem pagã; (...) O carnaval se caracteriza pelo relevo dos "valores pagãos da vida", em contraste com o período de exaltação do sofrimento e do luto, "valores cristãos" da Quaresma.
Tal fato, porém, não autoriza a pensar-se, como muitos folcloristas, numa teoria das sobrevivências, na busca de um fundo comum. Pode-se, no máximo, segundo Baroja, falar de semelhanças na morfologia ritual, no tempo e no espaço.
Na Europa, onde a festa popular originou-se, era chamada de entrudo, e a farra se dava com os brincantes trocando pelas ruas arremessos de baldes de água, limões-de-cheiro, ovos, tangerinas, pastelões, luvas cheias de areia. Além disso, os pré-foliões esbordoavam-se com vassouras e colheres de pau, sujavam-se com farinha, gesso, tinta etc. O folguedo vigorou até 1817 em Portugal e entrou em declínio no Brasil em 1854 por repressão policial, dando lugar ao moderno Carnaval.
Ao nos dar uma história própria para “acanalhar-se, enlamear-se bem”, João do Rio mostra uma história de luxúria, de disposição “aos transportes da carne e às maiores extravagâncias”, bem própria para uma época do ano em que, estando a três dias da Quaresma, os desejos da carne são os que têm primazia.
A propósito disso, vale ressaltar que o nome Carnaval tem origem da expressão “carne vale” ou “adeus à carne”, desse modo relacionada à ideia de "afastamento" dos prazeres da carne, visto que é o período que antecede a Quaresma. Desse modo, “Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente”. Para Bakhtin, segundo Soihet, a
abundância, a alegria e o relacionamento superior entre os indivíduos, abolindo-se ‘todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus’, características próprias da cultura cômica popular, poderiam predominar, não apenas no carnaval, mas também na vida comum. Constituir-se-ia uma sociedade em que o riso, privilégio da humanidade, inacessível a outras criaturas, fosse a marca; reconhecendo-se sua significação positiva, regeneradora, criadora, em contraposição às teorias e filosofias que acentuam sua função maculadora.
Ao ler essa história de Carnaval – a do bebê de Tartalana – pensamos que, apesar de não necessariamente João do Rio também ter sido vítima de uma “pavorosa” (e em certa medida risível) aventura de carnaval, pelo menos o ex-repórter, visto que era um bon vivant, concorda com o narrador quando este afirma: “Um carnaval sem aventuras não é um carnaval” e mais adiante: “Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível.”
Ao contar esta história de Carnaval terrivelmente cômica, João do Rio leva-nos pelo Carnaval do início do século XX, usando as ruas do Rio de Janeiro como cenário, oferecendo-nos um passeio pela antiga arquitetura carioca, presenteando-nos com uma descrição do passado de nossa cidade:
Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas-Artes era desolador e lúgubre. (...) Atravessamos a rua Luís de Camões, ficamos bem embaixo das sombras espessas do Conservatório de Música.
À época de João do Rio, a crônica, esse gênero intermediário entre a literatura e o jornalismo, deixava de ser feita em ambientes fechados, a partir do imaginário do autor, para tomar as ruas, averiguar os fatos e traduzir a alma carioca na escrita desse que foi consagrado como o cronista da cidade do Rio de Janeiro. Como era um “historiador de uma época”, João do Rio buscava, em seus textos, descrever a cidade, incluindo o charme imitado da belle époque e o submundo da urbe carioca.
Esse modo de escrever adveio da sua experiência como jornalista. Assim, percebemos em suas crônicas uma certa dificuldade de distinguir onde termina o jornalismo e começa a literatura. Suas atividades investigativas eram um componente diferenciado em relação aos costumes dos cronistas da época, que, capazes de formular as considerações mais inteligentes e irônicas sobre um crime passional que abalara a cidade, jamais iriam à cadeia ver de perto o criminoso e conversar com ele.
As características emprestadas do jornalismo engenhosamente nos envolvem na trama que há dentro da trama, pois o “silêncio” da rua e o rosadinho do bebê são artifícios para embrenhar o leitor em uma história – diga-se de passagem, que já sabemos não ter um happy end – presente na macro-história cujo cenário é o jantar da elite, caracterizada como o eixo da ficção.
Trata-se de uma ficção mascarada dentro da própria ficção. Pois o Carnaval “é o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes” e ainda o único momento em que o desfigurado bebê de Tartalana Rosa pode gozar, como a própria personagem, ao pedir perdão por esconder seu deturpado rosto: “- Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste...”.
De volta à relação dicotômica entre literatura e jornalismo, ou melhor, à discussão se é crônica ou conto, vale a pena reparar como João do Rio oferece-nos, no mesmo texto, características de uma crônica narrativa e de um conto com sofisticação literária. O início do texto – “Oh! uma história de máscaras! Quem não a tem na sua vida?” – convida às máscaras do carnaval, mas também, logo de “cara”, nos direciona a sair do tema carnavalesco rumo a uma questão, senão cotidiana, pelo menos constante em nossas vidas: como representamos em nossas vidas. Afinal máscara também não seria uma metáfora para falsidade? Para a ocultação de alguma verdade?
Como não só o sentido figurado de máscara foi apontado, ao fim do texto, ao final da história pavorosa de carnaval, sutilmente, por meio da reação do Barão de Belfort – “E foi sentar-se ao piano” –, João do Rio indica que as aventuras de carnaval devem ficar no espaço da aventura, da empolgação, do extraordinário. Isto posto, percebemos que, para o senhor Belfort, nesse caso o representante do senso comum, a “carne vale” fica restrita ao Carnaval.
Referências
RIO, João do. “O bebê de Tartalana Rosa”. Disponível em: http://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/08/13/o-bebe-de-tarlatana-rosa-joao-do-rio/. Acesso em 15 de janeiro de 2009.
SOIHET, Rachel. “Reflexões sobre o carnaval na historiografia – algumas abordagens”. Disponível em: http://academiadosamba.com.br/monografias/raquelsoihet.pdf. Acesso em 28 de janeiro de 2009.
Publicado em 17 de fevereiro de 2009
Publicado em 17 de fevereiro de 2009
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