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Brincadeira de mau gosto (ou a tradição dos trotes universitários)
Raquel Menezes
Para muitos é uma tradição na universidade brasileira: os calouros passam para a faculdade e são submetidos ao trote, como parte da comemoração pela conquista da aprovação no vestibular, representando um rito de passagem para o grupo social em que acabam de se inserir. Entretanto, cada vez mais vemos casos de violência física e moral cometida em trotes nas instituições de ensino superior.
Pode parecer que o trote universitário é um evento da contemporaneidade, mas, na verdade, essa brincadeira de mau gosto, como o título deste artigo chama essa prática, está em nossa história há algum tempo: seu primeiro caso foi registrado há 160 anos, no Recife, onde um calouro foi morto a facadas.
De lá para cá, muito na história de nosso país ocorreu; consequentemente, muito ocorreu na trajetória desse gesto que aponta a estratificação social (já falo mais sobre isso). Nos anos 1960, com o movimento estudantil, o trote era uma forma de contestação social: os calouros eram convidados para manifestações a favor das reformas de base ou em defesa da universidade pública. Entretanto, a partir de 1968, quando o AI-5 fechou o Congresso e o trote foi reprimido, ocorreu a degeneração de sua versão cultural, transformando-o no ato violento e covarde de que temos notícia hoje.
Agora sim: se anteriormente falei em estratificação social é porque o processo é elitista. Não falo necessariamente de nossas conhecidas distinções sociais – pobre x rico, branco x negro ou até mesmo belo x feio, mas sim dos que sabem mais contra os que sabem menos. Na cabeça dos veteranos, o fato de ser um graduando o torna superior a alguém que acaba de ingressar em um curso universitário. Desse modo, nossos veteranos comportam-se como se estivessem em quartéis; assim, os soldados que ficam em forma e gritam palavras de ordem seriam os calouros, e os generais seriam os veteranos que colocam os calouros em fila e gritam ordens, sustentando sua alegórica superioridade.
Alguns podem disfarçar sua sensação de poder sobre os calouros, como este depoimento da presidente da UNE: “O trote pode e deve ser um momento de confraternização e apresentação da nova vida que o estudante terá na universidade. Nada mais educativo do que o exemplo dos veteranos incentivando ações sociais e combatendo a onda de trotes violentos”. Contudo, ver construções como “apresentação da nova vida que o estudante terá na universidade” ou então “o exemplo dos veteranos” nos diz que o trote, além de violento e covarde, é também uma forma de autoelogio por parte dos veteranos, que acreditam terem ferramentas para guiar os alunos novos. Guiar? Só se for na vexaminosa fila de “elefantinho”: os pobres calouros submetem-se a andar com a mão passada sob a própria perna, dando-a a outro pobre calouro, que estará na mesma posição. Apresentar? Só se forem as cores de tinta guache e o pedido de esmolas, pois nesse glorioso evento os calouros são pintados (às vezes como se fossem para a guerra) e obrigados a pedir dinheiro que mais tarde financia uma chopada, por exemplo.
De volta às comparações com o mundo militar, a tentativa de imitação mais evidente da hierarquia dos quartéis é a das repúblicas mineiras, principalmente em Ouro Preto, onde os calouros são chamados de bicho num primeiro momento e em seguida são rebatizados com apelidos que apontam algum traço caricatural. A diferença é que nos quartéis os soldados são conhecidos por números e não apelidinhos constrangedores. Além da perda de identidade, nesses trotes há ainda uma imposição desse modo de recepção, pois o calouro (ou bicho) que não aceitar as regras pode ser até ser expulso da casa – mesmo que tenha pagado todas as despesas que lhe cabem –, sob a desculpa de não ter se adaptado ao ambiente da república.
A submissão é tanta que chega ao ponto de o calouro ter que fazer as tarefas da casa e, em festas, por exemplo, ser obrigado a beber até vomitar e, em seguida, ser obrigado a beber mais e mais novamente. Outro fato intrigante para a minha cabeça nada masoquista e menos ainda militar é o respeito que há para com os chamados eternos veteranos, que, mesmo quando vão embora das repúblicas, continuam a ser os líderes maiores, com todos os direitos, inclusive sendo servidos pelos veteranos ainda graduandos e ainda mais pelos bichos.
Essas alegorias do mundo militar muitas vezes trazem consequências fatais ou pelo menos constrangedoras, como o já muito falado caso do rapaz morto afogado em um trote de um curso de Medicina em São Paulo, o mais recente, de uma grávida que sofreu queimaduras no dia do trote ou ainda o do rapaz chicoteado depois de ser obrigado a beber demais e a caminhar entre animais decompostos e excrementos, em Leme, uma cidade a pouco mais de 160km de São Paulo.
Pelo menos depois desses últimos acontecimentos a Câmara dos Deputados aprovou, em 18 de fevereiro de 2009, o Projeto de Lei 1.023/95, que proíbe a realização de trotes violentos ou vexatórios contra alunos do ensino superior. O projeto determina que a faculdade abra processo disciplinar contra os estudantes responsáveis por esses atos. Ademais, o projeto proíbe trote que constranja os calouros; exponha os alunos de forma vexatória; ofenda sua integridade física, moral ou psicológica; ou obrigue os estudantes a doar bens ou dinheiro.
Os processos disciplinares têm penas que vão de multas de até R$ 20 mil ao cancelamento da matrícula e impedimento de inscrição em qualquer universidade por um ano. O dinheiro da multa deverá ser usado nas bibliotecas das escolas. Apesar da aprovação, o projeto sofreu muitas críticas em plenário sobre a eficácia de suas normas. O deputado Regis de Oliveira (PSC-SP) alertou, por exemplo, para o fato de que não está prevista sanção contra a faculdade que não abrir processo contra quem praticar o trote violento.
Além da proibição do trote, o projeto incentiva a recepção de calouros: antes do início das aulas, as universidades constituirão uma comissão de professores e estudantes para elaborar um calendário de atividades de recepção dos novos alunos. O objetivo é integrar os calouros à vida universitária e permitir que eles conheçam as instalações e o funcionamento da instituição, ao invés de constrangê-los pelo fato de estar entrando na universidade.
Algumas delas já fazem esse trote de entrosamento; outras vão além e fazem o trote solidário, com arrecadação de material escolar para distribuir em escolas carentes, arrecadação de alimentos e até mesmo doação de sangue por calouros e veteranos. Desse modo, além de apoiar causas sociais, essa forma mais consciente, menos violenta e acima de tudo humanista alerta para a inclusão dos alunos novos, ao invés de segregá-los por um falso não-saber inferior ao (pseudo)saber mais dos alunos veteranos. Constrangimento, violência, covardia e submissão precisam deixar de ser o eixo central da entrada nas universidades pelos alunos novos, dando lugar à sociabilidade igualitária, manifestada através do respeito e de uma recepção sadia e de confraternização, nunca, repito, covarde e preconceituosa.
Outras matérias sobre o assunto:
- Trote universitário favorece lógica de opressão social
- Séculos de violência no campus
- O trote universitário: o caso de curso de Química da UFSCar
- Ministro da Educação critica trotes violentos
- Lúcia Klück Stumpf: Trote não é violência
Publicado em 10 de março de 2009
Publicado em 10 de março de 2009
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