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A casa de Deus

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Algumas verdades aparecem pelo pensamento. Elas entram pela porta de cima de nossas ideias e surgem lentamente, como se estivessem sendo construídas etapa a etapa, por uma quantidade de anos que ultrapassa nossa própria experiência. Elas nos oferecem certezas fragilizadas pelas evidências que colhemos. Verdades desse tipo são essencialmente provisórias, instáveis, circunstanciais.

O homem já provou quão difícil é manter por muito tempo uma dessas verdades. Mil anos é uma eternidade para que uma das certezas do pensamento se cristalize entre nós. Alguém pensa alguma coisa, publica em um jornal ou em um site na internet, escreve em umas 500 páginas de uma tese que pouca gente vai ler ou comenta em uma roda de amigos. Pronto. Já é tempo suficiente para sua verdade ser desconstruída ou submetida a um processo de decomposição. Vez ou outra alguma monstruosidade intelectual dessas que povoam o mundo ocidental consegue manter, no mundo público, sua verdade racional por alguns meses, anos ou décadas livre de uma desconstrução desse tipo, mas isso não acontece todo dia.

Mas o jogo é esse mesmo. Nessa vida, as verdades que a gente acha pelo pensamento são construídas para serem desmontadas, arquitetadas para serem implodidas, erguidas para que alguém venha e as derrube. Mas apesar desse ser o jogo do pensamento há um outro nível de verdades que são desconcertantemente mais sólidas.

Quando chegou com sua companhia de infantaria portuguesa em Angola no começo dos anos 1960 para sufocar uma rebelião nacionalista, o soldado João Figueira, então com menos de vinte anos, deparou-se com uma imagem aterradora. Espalhadas pela vegetação espinhenta e retorcida do cerrado angolano, penduradas nos galhos secos, como se fossem totens sinistros que avisavam sobre uma guerra longa, terrível e selvagem; jaziam dezenas de cabeças humanas, decepadas de seus corpos e postas como sinais no meio da mata.
Desde o tempo da velha Ilíada que o corpo dos homens é um templo que não se deve profanar. Ali Homero (ou qualquer outro fantasma de quem não se sabe o nome) cantou a ira de Aquiles, que, possuído de ódio, matou Heitor e mutilou seu corpo, após arrastar o cadáver em frente às muralhas da velha cidade de Troia, diante dos olhares consternados do pai e da esposa do morto.

Aquiles desconsiderou a velha lei e profanou o corpo de seu inimigo. A descrição da luta e da profanação do corpo de Heitor por um Aquiles possuído de ira é uma das mais comoventes e desconcertantes cenas da literatura ocidental.

Não é simplesmente o fato de Aquiles ter matado Heitor. Isso faz parte do jogo de vida de um guerreiro e, diante da tragédia que se anunciava, a morte de um homem, por mais valoroso e heroico que fosse, não era nada além de uma morte qualquer. O problema é outro. Mutilar o corpo do morto, sequestrá-lo, privá-lo de sepultura é uma das piores ofensas que podem ser feitas à linhagem de alguém. Todos os membros da família são amaldiçoados. Os vivos, os mortos e os que ainda não nasceram. Por isso, Príamo (pai de Heitor), na narrativa de Homero, se humilha diante do assassino de seu filho para suplicar que seu corpo seja devolvido.

Tanto Príamo na velha Turquia do começo do tempo quanto o pobre soldado português João Figueira, pego em sua juventude no meio de uma das últimas guerras coloniais do século XX, sentiram, cada qual a seu modo, cada qual com sua dor particular, que o tipo de verdade que emerge do corpo de alguém tem uma autoridade mais intensa do que aquela gaseificada construção mental que os filósofos costumam produzir quando se põe a pensar.

A sacralidade do corpo humano tem a ver muito provavelmente com a imensa força de sua experiência. Se minha mente pode expandir minha linguagem e me transferir para lugares distantes, o corpo tem o poder de me convencer de suas razões de modo inexorável.
Por muito tempo eu me questionei sobre a origem da fé. De onde poderia surgir a certeza que alguns tem de suas crenças e de seus dogmas, muitas vezes tão frágeis quando submetidos ao crivo de alguma razão qualquer? Hoje eu começo a perceber que a experiência religiosa não é algo abstrato, distante e cerebral. A ideia equivocada de que religiosidade é sempre “uma coisa do espírito” e que por isso está muito distante do mundo concreto dos homens nos leva a pensar que as religiões são sempre doutrinas e nunca experiências particulares, acontecimentos íntimos e radicalmente individuais, que ecoam na vida de seus adeptos pela porta de entrada de seus corpos.

As experiências da velha religião dos xamãs me ensinaram que a dança, o canto, as bebidas mágicas, os sinais simbólicos que levam ao entusiasmo divino passam pelo corpo, atravessam seus canais e dominam o indivíduo a partir daquilo que ele tem de mais real e de mais concreto. Príamo, o velho rei do tempo sombrio de Homero, e João Figueira, o pobre soldado português da era moderna, sabem que o corpo é a casa de Deus e que as verdades que emergem dele marcam mais intensamente a vida dos homens.

Meu corpo não está sozinho, boiando no universo como se fosse uma bolha de sabão solta na sala de estar de um apartamento, em uma imensa cidade, de um mundo gigantesco, em uma galáxia qualquer desse universo que ninguém sabe onde acaba. Meu corpo está ligado a tudo porque não há uma linha, traçada por algum lápis metafísico ou por alguma substância pensante, que me separe de todas as outras coisas que me cercam. Minha solidão é um presente da minha linguagem e do meu pensamento; meu corpo, os velhos xamãs sabiam disso, é uma casa onde moram todos os deuses.

Publicado em 17 de março de 2009

Publicado em 17 de março de 2009

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