A interdisciplinaridade no Ensino Médio Integral

Enock da Silva Peixoto

Docente na rede estadual do Rio de Janeiro; licenciado em Pedagogia (UniRio/Cederj); mestre em Educação (UniRio)

Considerações iniciais

Neste texto vislumbramos discorrer sobre as possibilidades de exercer atividades interdisciplinares no Ensino Médio Integral. Adotaremos como referência as experiências realizadas no Colégio Estadual Canadá, de Nova Friburgo/RJ, que desde o ano de 2015 retomou a modalidade de ensino denominada Proemi (Nunes, 2016; Bernardes, 2016), na qual os discentes estudam em tempo integral. As abordagens estarão divididas em duas partes: uma mais longa, na qual discutiremos o que é interdisciplinaridade, sua conceituação, sua origem e importância no contexto da escola contemporânea. Salientamos que se trata de um estudo preliminar sobre o tema, que carece de mais aprofundamento, mas que objetiva, sobretudo, destacar a plausibilidade de professores e alunos desenvolverem atividades de cunho interdisciplinar. O objetivo central dessas ações pedagógicas é “denunciar pela prática” a demasiada dicotomia existente entre os saberes na cultura científica e escolar. E, a partir destes estudos, contribuir com a reflexão sobre um mundo mais integrado, menos fracionado. A segunda parte traz a descrição breve de atividades que já foram realizadas no Ensino Médio Integral e ilustra de forma efetiva que é possível atuar interdisciplinarmente. Também destacaremos algumas ideias de ações conjuntas entre disciplinas que surgiram, mas que não se efetivaram; entretanto, elas poderão ser efetivadas ainda e, além disso, ser objeto da análise de colegas professores sobre suas possibilidades de realização.

A interdisciplinaridade

Para abordar as possibilidades do ensino interdisciplinar no Ensino Médio Integral, vamos iniciar definindo e localizando historicamente, em linhas gerais, o lugar desse conceito na educação. O conceito é atribuído ao sociólogo alemão Louis Wirth (1897- 1952) que, conforme Anabela Mateus (2015a), “definia a interdisciplinaridade como a qualidade daquilo que é interdisciplinar, e o que é interdisciplinar por aquilo que se realiza com a cooperação de várias disciplinas”. O termo se refere então à relação colaborativa entre duas ou mais áreas do saber. Segundo Coimbra (2000, p. 56), “por virtude da etimologia, a palavra traduz esse vínculo não apenas entre saberes, mas, principalmente, de um saber com outro saber, ou dos saberesentre si, numa sorte de complementaridade, de cumplicidade solidária, emfunção da realidade estudada e conhecida”. Logo, mais do que a indicação do sentido etimológico do termo que contém o prefixo inter, sugerindo o sentido de relação, o prefixo com aponta para o esforço de um trabalho em conjunto.

Nesse contexto, é importante ressaltar que não se trata da associação ou a confluência entre duas áreas, tornando-as algo diferente de suas especificidades, nem da abordagem de um tema, tomando como base para debate algo estritamente específico. Este último exemplo, segundo Coimbra (2000), seria o trabalho multidisciplinar, que “evoca basicamente um aspecto quantitativo, numérico, sem [...] nexo necessário entre as abordagens [...]. O mesmo objeto pode ser tratado por duas ou mais disciplinas sem que, com isso, se forme um diálogo entre elas”. Logo, o trabalho interdisciplinar não é a junção de disciplinas nem a ação desintegrada entre elas.

A interdisciplinaridade não dilui as disciplinas, ao contrário, mantém sua individualidade. Mas integra as disciplinas a partir da compreensão das múltiplas causas ou fatores que intervêm sobre a realidade e trabalha todas as linguagens necessárias para a constituição de conhecimentos, comunicação e negociação de significados e registro sistemático dos resultados (Brasil, 1999, p. 89).

O ensino e a aprendizagem numa perspectiva interdisciplinar visam aprofundar os conhecimentos a partir daquilo que agrega as áreas de conhecimento, apesar de suas peculiaridades. Não visa à eliminação delas, mas a um redimensionamento e à ampliação de sua função e compreensão, pois os fatos econômicos, políticos, sociais, do senso comum, do campo da educação, da ciência, das artes e tantos outros primariamente podem ocorrer sem formulação disciplinar e somente depois serem levados à sistematização, ou seja, a vida subjaz a todo saber. Os acontecimentos ocorrem de acordo com a dinâmica da existência e só depois são problematizados. A disciplina é importante, pois torna didáticas e organizadas as informações que cientistas, pesquisadores, professores e outros atores sociais colhem da realidade; o trabalho interdisciplinar ajuda a retomar essa origem dinâmica do saber. Coimbra destaca que o sentido original da palavra disciplina é positivo, somente depois ela foi ganhando conotação de controle sobre os seres humanos.

O substantivo disciplina procede do conceito latino de aprender. Este é o significado do verbo díscere, cujo particípio presente em uma das formas declinadas [...]é discente, o que aprende. Da mesma raiz aparecem às palavras discípulo (o seguidor que aprende com quem ensina – o docente), e disciplina, objeto do conhecimento assimilado, aquilo que se aprende e passa a fazer parte da vida. Disciplina, por conseguinte, não é o mero conhecimento ou informação recebida; é o conhecimento assimilado que informa a vida do discípulo (2000, p. 54-55).

Segundo o autor, primordialmente a palavra não remete a controle ou submissão, mas a assimilação saudável e vital com o saber; entretanto,

a apropriação do vocábulo para a elaboração de currículos escolares, mesmo que integrados, empobreceu a semântica e reduziu a força do significado radical da palavra. Esse esvaziamento parcial do sentido de aprender agravou-se com a fragmentação da cultura e do ensino escolar (2000, p. 55).

O autor envolve a apropriação por parte da escola do conceito e a própria fragmentação presente na sociedade como fatores que minaram o significado positivo e inerente ao termo. Compreendemos que o esforço e o surgimento da interdisciplinaridade se deram exatamente como que para combater o sentido negativo que o termo disciplina incorporou, pois dissociou o genuíno sentido de aprender da própria vida.

Continuando a explicação sobre o que é interdisciplinaridade: o termo provém de dois campos, basicamente: da Epistemologia, ou seja, o modo como os saberes se relacionam entre si e com o sujeito pesquisador, e do campo da educação, com suas diversificadas expressões. Para Juares da Silva Thiesen (2008),

a discussão sobre a temática da interdisciplinaridade tem sido tratada por dois grandes enfoques: o epistemológico e o pedagógico, ambos abarcando conceitos diversos e muitas vezes complementares. No campo da Epistemologia, toma-se como categorias para seu estudo o conhecimento em seus aspectos de produção, reconstrução e socialização; a ciência e seus paradigmas; e o método como mediação entre o sujeito e a realidade. Pelo enfoque pedagógico, discutem-se fundamentalmente questões de natureza curricular, de ensino e de aprendizagem escolar.

Atentemos para o fato de que os aspectos pedagógicos, aqueles que nos interessam mais diretamente neste texto, não estão dissociados do epistemológico, pois as perspectivas sobre a realidade geral incidem sobre a forma como se pensa a escola e a sua organização. Se nós temos ainda hoje um modelo pedagógico no qual predomina a perspectiva disciplinar, isso ocorre devido a uma visão de mundo subjacente a esta e que é predominante. A preocupação com a interdisciplinaridade surgiu como crítica a uma determinada relação dicotômica que existe no campo do conhecimento desde o início da Modernidade, mas, se quisermos, é possível dar um passo atrás e ver que o modo como às “ciências” foram divididas na Antiguidade, já com Aristóteles, indicavam o germe dessa perspectiva de mundo; embora ainda envolto numa concepção da realidade mais integrada na cultura grega, estava aberto o caminho para a radicalização da racionalização do mundo e da divisão das ciências.

No livro IV de Metafísica (1969), Aristóteles faz uma divisão das ciências: o conhecimento pode ser prático, produtivo e teorético. O teorético é o que trata do estudo do Ser e suas determinações. É contemplativo e não visa nem à ação nem à produção. A Matemática e a Teologia são exemplos. O conhecimento produtivo se refere às ciências práticas, que se ocupam com a produção de algo. O conhecimento prático trata da ação, de como os seres humanos agem em diversas situações. A Ética e a Política estão neste campo. Na Idade Média, tentou-se retomar, com bases epistemológicas diferentes, nas quais prevalecia o teocentrismo, um modelo de divisão do saber do mundo clássico. As áreas de conhecimento eram divididas em Trivium e Quadrivium. Tratava-se da articulação respectivamente de três e quatro ramos. No primeiro dominava a Gramática, a Lógica e a Retórica, e o estudo da linguagem prevalecia neste caso. No segundo dominavam Aritmética, Geometria, Música e Astronomia; nestas, prevaleciam os números (Joseph, 2008). Não pretendemos aprofundar essa divisão e suas características, que são diversas daquelas que ascenderam na Modernidade; quisemos apenas observar que entre os antigos e medievais já havia divisão dos saberes. Salvaguardadas as suas diferenças epistemológicas e culturais, é possível deslocar esse processo de disciplinarização do saber e da vida em nossa cultura para antes da influência de Descartes e Galileu e outros modernos.

A disciplinarização, no sentido de constituição de uma visão dividida, não integrada da realidade, é uma característica do mundo ocidental, extrapola o campo das ciências e das demais áreas do conhecimento e perpassa um modo de pensar o mundo que se tornou hegemônico. Na nossa perspectiva, Descartes e Galileu não são apenas os iniciadores de uma nova visão de mundo inaugurada pela Modernidade; são também a síntese de um modo de interpretar a vida que foi se desenvolvendo desde a racionalização filosófica pós-mitologia grega, anteriormente, muito mais associada com a vida. O processo de disciplinarização pode ter se acentuado na Modernidade, mas já era uma potência muito mais antiga que acabou se tornando cultura assimilada pelo modus vivendi ocidental e, exatamente por isso, um problema tão difícil de ser enfrentado. Na opinião de Edgar Morin (2002, p. 105), para entender a interdisciplinaridade, é necessário situar o que é disciplina e observar que ela tem contexto e origem:

A organização disciplinar foi instituída no século XIX, notadamente com a formação das universidades modernas; desenvolveu-se, depois, no século XX, com o impulso dado à pesquisa científica; isto significa que as disciplinas têm uma história: nascimento, institucionalização, evolução, esgotamento etc.; essa história está inscrita na da universidade, que, por sua vez, está inscrita na história da sociedade.

Dadas essas análises preliminares, destacamos que a origem da preocupação com a interdisciplinaridade data do século passado, tendo como uma das principais referências o interesse sobre o tema surgido na Europa na década de 1960. Conforme comenta Anabela Mateus (2015b),

foi pioneiro Georges Gusdorf (1912-2000), com um projeto de pesquisa interdisciplinar que apresentou à Unesco em 1961 para as Ciências Humanas. Desse projeto faziam parte estudiosos de universidades europeias e norte-americanas de diferentes áreas de conhecimento.

Coimbra (2000, p. 52) destaca a realização do Seminário Internacional ocorrido na Universidade de Nice, França, de 7 a 12 de dezembro de 1970; “além de elucidar o conceito interdisciplinar, o escopo do evento era discutir a real utilidade do processo para avanço de ensino e pesquisa na construção do conhecimento”. A origem do discurso sobre interdisciplinaridade ocorreu, sobretudo, como uma forma de reagir à rígida divisão das ciências inauguradas pelo positivismo de Augusto Conte e que teve as suas bases no início do pensamento moderno. A crítica era dirigida à demasiada fragmentação do conhecimento presente nas ciências.

Sobretudo pela influência dos trabalhos de grandes pensadores modernos como Galileu, Bacon, Descartes, Newton, Darwin e outros, as ciências foram sendo divididas e, por isso, especializando-se. Organizadas, de modo geral, sob a influência das correntes de pensamento naturalista e mecanicista, buscavam, já a partir da Renascença, construir uma concepção mais científica de mundo. A interdisciplinaridade, como um movimento contemporâneo que emerge na perspectiva da dialogicidade e da integração das ciências e do conhecimento, vem buscando romper com o caráter de hiperespecialização e com a fragmentação dos saberes (Thiesen, 2008).

No campo específico da Educação, ocorreu uma divisão radical das áreas do saber e cada disciplina ficou restrita a um determinado campo de estudo. Não é exagero afirmar que atualmente existe uma supradivisão dos saberes, pois para cada área existe uma subárea que pode ter objeto de estudo específico: a medicina é um campo que evidencia essa divisão de forma muito veemente. A fragmentação dos saberes e, consequentemente, da perspectiva sobre a vida, é algo ainda muito latente. Diante desse contexto, o estudo interdisciplinar consiste,

primordialmente, em lançar uma ponte para ligar as fronteiras que haviam sido estabelecidas anteriormente entre as disciplinas com o objetivo preciso de assegurar a cada uma seu caráter propriamente positivo, segundo modos particulares e com resultados específicos (Japiassu, 1976, p. 75).

Este é um modo eficiente de demonstrar para os discentes que os temas que envolvem o conhecimento e a própria vida não são fatos exclusivos da interpretação de um campo específico, mas podem e geralmente perpassam ou atravessam vários saberes. O trabalho interdisciplinar é um modo de contribuir para que superemos um modelo de sociedade e forma de pensar o mundo que foi “didaticamente” desintegrado. A exagerada repartição das disciplinas, como já acenamos, é fruto de uma forma milenar de pensar a vida prevalente em nossa cultura que, de certo modo, vem enquadrando o nosso comportamento e os paradigmas na criação de perspectivas diante da existência.

No Brasil, os dois teóricos que trouxeram a problematização sobre interdisciplinaridade foram Ilton Japiassu e Ivani Fazenda, influenciados pelos estudos de Georges Gurdorf e Jean Piaget. Foram trabalhos realizados nos anos 1970 que vieram a influenciar vários estudos posteriores sobre o tema.

Para Japiassu, por exemplo, “a interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de interação real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa” (1976, p. 74). Entre as densas e complexas tarefas sobre as quais esses autores tiveram que se debruçar está à definição do que é interdisciplinaridade. Para Fazenda (1993),

o pensar interdisciplinar parte do princípio de que nenhuma forma de conhecimento é em si mesma racional. Tenta, pois, o diálogo com outras formas de conhecimento, deixando-se interpenetrar por elas. Assim, por exemplo, aceita o conhecimento do senso comum como válido, pois é através do cotidiano que damos sentido às nossas vidas. Ampliado pelo diálogo com o conhecimento científico, tende a ser uma dimensão utópica e libertadora, pois permite enriquecer nossa relação com o outro e com o mundo.

Mas, conforme Ferreira, não há definição uniforme sobre o tema; vários autores o assumem de acordo com a sua perspectiva de pensamento, mas há certa proximidade em cada uma dessas visões, embora a flexibilização seja um dos seus pontos mais decisivos. Para haver interdisciplinaridade, é preciso haver também intencionalidade.

Apesar de não possuir definição estanque, a interdisciplinaridade precisa ser compreendida para não haver desvio na sua prática. A ideia é norteada por eixos básicos como: a intenção, a humildade, a totalidade, o respeito pelo outro etc. O que caracteriza uma prática interdisciplinar é o sentimento intencional que ela carrega. Não há interdisciplinaridade se não há intenção consciente, clara e objetiva por parte daqueles que a praticam. Não havendo intenção de um projeto, podemos dialogar, inter-relacionar e integrar sem, no entanto, estarmos trabalhando interdisciplinarmente (Ferreira, 1993).

Outro destaque fundamental foi a absorção e o interesse na importância da interdisciplinaridade pelo discurso oficial, ou seja, do Estado como órgão que organiza o sistema de educação no país. Foi a partir da Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 5.692/71) que esse debate se tornou profícuo do ponto de vista institucional. E, sobretudo com a nova LDB (nº 9.394/96) e com os Parâmetros Curriculares Nacionais. Segundo estes últimos, “a interdisciplinaridade tem uma função instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e utilizável para resolver as questões e os problemas sociais contemporâneos” (Brasil, 2002, p. 34). Há uma preocupação com uma percepção mais integrada do saber, pois a desintegração oriunda do positivismo no campo da ciência, da educação e da existência exige revisão. Entretanto, o que se propõe não é a eliminação das disciplinas regulares que existem, mas que estas sejam abordadas de modo mais holístico, contribuindo para uma visão de mundo menos bipartida.

Na perspectiva escolar, a interdisciplinaridade não tem a pretensão de criar novas disciplinas ou saberes, mas de utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista (Brasil, 2002, p. 34).

A escola não deve ser tratada como elemento salvador de uma sociedade que muitos denominam decadente. Sua reestruturação passa por vários fatores, mas certamente ela pode ser um espaço adequado onde debates relevantes sobre o modo como compreendemos a vida, como as nossas construções culturais foram e são elaboradas devem ser confrontados. A interdisciplinaridade é certamente um modo não apenas de tratar os conteúdos escolares por meio de metodologias diferenciadas, valorizando os vários campos de saber e levando à compreensão de que eles não são tão distantes como parecem, mas é uma possibilidade de repensar o modelo de organização social presente na maior parte da sociedade atual, fruto das concepções oriundas da demasiada industrialização e “mercantilização da vida”.

A “disciplinarização da do dia-a-dia” pode ser repensada a partir da escola, quando esta se esforça por integrar os conteúdos das matérias escolares e, sobretudo, quando as associa com a vida concreta. Uma das mais danosas relações que há na relação com o conhecimento é exatamente tratar o saber como algo extremante teórico e distante da existência. Todo tipo de conhecimento, em tese, deveria existir para dignificar o existir. Nesse sentido, ajuda a refletir sobre a interdisciplinaridade o que se afirma nos PCN:

Ela deve partir da necessidade sentida pelas escolas, professores e alunos de explicar, compreender, intervir, mudar, prever, algo que desafia uma disciplina isolada e atrai a atenção de mais de um olhar, talvez vários. Explicação, compreensão, intervenção são processos que requerem um conhecimento que vai além da descrição da realidade, mobiliza competências cognitivas para deduzir, tirar inferências ou fazer previsões a partir do fato observado (Brasil, 2002, p. 88-89).

É um grande desafio enfrentar algo que já está como que naturalizado, e talvez a nossa geração ainda não contemple a prevalência de um modelo de escola não disciplinar, pois a concepção de que esse modelo está correto é predominante nas mentes de muitos docentes, de discentes, de pais de alunos e de organizações políticas e pedagógicas. No nosso entendimento, essa mudança depende de uma transformação no modo de pensar a vida, pois a sociedade é organizada sob a égide de um modelo exageradamente disciplinar, no pior sentido que esta palavra absorveu, que é o de domínio sobre o ser humano. Logo, a escola reflete essa situação.

Então podemos dizer que esta é uma luta perdida, desnecessária, porque nada ou pouca coisa mudará, pelo menos em nossa geração? Entendemos que já ocorrem algumas tentativas práticas de minimizar essa prevalência da disciplinarização na educação, e isso já é um importante sintoma. Outro aspecto importante é que docentes, discentes, pais, instituições que defendem e acreditam em um modelo de educação que ultrapasse o tradicional podem e devem elaborar meios para minimizar o predomínio desse sistema hegemônico.

Sobre a possibilidade do trabalho interdisciplinar no Ensino Médio Integral

O primeiro aspecto que precisamos destacar é que a interdisciplinaridade é possível em qualquer modelo de ensino, isto é, no Ensino Regular, na Educação de Jovens e Adultos, no Ensino Fundamental, no Superior e nas pós-graduações; entretanto, queremos acenar para a peculiaridade do Proemi, modelo instituído em algumas escolas do Estado do Rio de Janeiro. Esse modelo, como já acenamos, funciona no período matutino e vespertino, e essa extensão do tempo, ou seja, uma presença maior do discente dentro da escola, é um fator concreto que indica a possibilidade da interdisciplinaridade. Outro é a motivação para trabalhar com projetos, o que traz certa autonomia dos docentes para elaborar aulas diversificadas e não só a partir do currículo ou de sua característica de atuação, mas também acolhendo expectativas dos alunos e de temáticas pertinentes que envolvem a vida contemporânea.

Ocorre ainda uma reunião pedagógica semanal, na qual os docentes articulam caminhos e procedimentos para exercer suas ações pedagógicas; em muitos momentos, emergem condições objetivas para serem exercidas ações conjuntas. Certamente, muitas possibilidades de ação interdisciplinar brotam de acordo com a afinidade, o interesse e a conexão dos docentes e das disciplinas frente a determinado tema ou situação que exige uma reflexão mais intensa, pelos vários campos do saber. Dadas essas breves observações, vamos destacar, resumidamente, algumas ações de caráter interdisciplinar que já ocorreram efetivamente e algumas outras ideias que estão sendo pensadas como realizáveis, o que demonstra que não é utópica a oportunidade de atuarmos de forma conjunta no Ensino Médio Integral.

Uma das primeiras atividades realizadas foi a Caminhada Histórica. Nela, um importante historiador da cidade de Nova Friburgo, docente e pesquisador já aposentado, caminhou junto com alunos e docentes do Proemi e professores e alunos de outras escolas pelo Centro da cidade. Visitaram-se pontos que contêm significado histórico não só para Nova Friburgo como para o Estado do Rio de Janeiro e o Brasil. A ação, no espaço livre, provocou a curiosidade e a participação de pessoas que passavam pela rua e pelo menos naquele momento, mesmo que em pequena escala, os conhecimentos escolar e formal se expandiram para além dos muros escolares. Foi uma forma de retirar os alunos do contexto restrito da escola e ajudá-los a perceber que o conhecimento está no mundo; por detrás de praças, monumentos, vegetações, pessoas, existem fundamentos históricos de que muitas vezes não nos damos conta e muitos deles foram fundamentais para a formação de uma cidade. Após a atividade, professores de todas as disciplinas foram convocados a realizar, a partir de sua área específica, atividades que envolvessem a Caminhada Histórica. Na aula de Sociologia, procurei explorar a relação entre fatos históricos, os monumentos que contêm uma vida subjacente a eles e a construção da cultura friburguense. Os discentes deveriam debater e relatar por escrito a proximidade entre fatos históricos e relações sociais.

A semana de Física foi outra atividade interdisciplinar que ocorreu no Colégio Estadual Canadá em 2015. As atividades se desenvolveram entre as disciplinas Filosofia e Física, e um dos objetivos foi demonstrar a importância dessas duas áreas na origem do pensamento, da cultura e da ciência ocidentais. A visão astronômica de mundo iniciada pelos filósofos pré-socráticos mostrava uma concepção de mundo que relacionava pensamento e existência.

Para facilitar esse entendimento, a professora de Física demonstrou, do ponto de vista de sua disciplina, os primórdios da ciência; em seguida, professores de Filosofia explicitaram como se deu a organização do pensamento, desde a narrativa mítica, evidenciando que não havia uma separação radical entre a forma como se pensa a realidade e a manifestação física da vida. Ou seja, Filosofia e Física vieram a ser radicalmente separados só muito posteriormente, e esse fato se deu junto com uma visão mais desagregadora da existência e que teve como ponto alto a disciplinarização no campo da ciência e da educação, o que acabou incidindo sobre o modo de viver dos seres humanos.

Surgiram outras ideias que ainda não foram realizadas, mas são potencializadas para ocorrer e demonstram a possibilidade da interdisciplinaridade. Emergiu a proposta de que os docentes apresentassem o Currículo Mínimo de suas disciplinas para que pudessem ser realizadas “aulas casadas”, ou seja, um exercício disciplinar; para isso, era necessário que docentes de todas as áreas pudessem analisar assuntos comuns que poderiam ser tratados de forma integrada em algum momento. Nessa preocupação estava presente o enfrentamento do tratamento isolado de questões que podem e devem ser abordadas por pontos de vista diversificados e que ajudam no trabalho colaborativo entre os professores. Colabora, ainda, para que os discentes vão se desvinculando, pelo menos preliminarmente, de uma visão dividida dos saberes.

Outra importante proposta foi que, dentro de uma atividade que envolveria as várias disciplinas, cada professor trabalhasse fatos de sua área ocorridos dentro de determinado século. O objetivo é gerar uma visão linear e didática sobre os acontecimentos e destacar como eles ainda incidem em nossas vidas. Pensamos no século XX e a sugestão de uma das professoras de Língua Portuguesa era que se trabalhasse o papel da mulher nesse período. O tema geral seria “O protagonismo feminino no século XX”, e algumas disciplinas procurariam evidenciar tais fatos, pedir pesquisas aos alunos, promover palestras; a atividade deveria ocorrer durante uma semana. No caso específico da Filosofia, uma área do conhecimento historicamente e ainda com presença predominantemente masculina, pensou-se em trabalhar a presença feminina na formação do pensamento ocidental, apresentando pensadoras como Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt, Simone de Beauvoir, Marilena Chauí, Viviane Mosé, Márcia Tiburi e outras importantes mulheres que dignificam o debate filosófico com sua reflexão. O mesmo pode ocorrer com mulheres na Literatura, nas Artes, na Ciência e em todos os outros campos.

Estas breves citações de possibilidades de ações no Ensino Médio Integral de forma interdisciplinar, das quais algumas foram realizadas e outras têm potencialidade de se efetivar, não foram as únicas que ocorreram; muitas ações foram pensadas e não foram aqui citadas. Quisemos mostrar apenas ações que são exequíveis neste modelo de ensino e, como indicamos, esta é uma peculiaridade de qualquer modalidade, mas no Proemi, devido às suas características, a interdisciplinaridade é praticamente uma “exigência” pedagógica.

Considerações finais

Os nossos antepassados tiveram uma visão mais integrada da vida, em que o “caótico” não era demonizado, pois a diversidade era considerada algo natural e inerente à própria existência. É o que podemos constatar nas narrativas mitológicas gregas e romanas que estão na origem de nossa cultura. Mas foi ocorrendo gradativamente um processo de desagregação e racionalização da vida que se instalou e se estabeleceu como verdade.

A demasiada disciplinarização é contrária ao movimento natural da vida, que é fluição, é devir, como interpretou Heráclito. Esta perspectiva foi vencida em nossa cultura e prevaleceu o domínio do que é lógico e metódico. É necessário revalorizar o caos originário, o que não significa a afirmação de uma sociedade anárquica e sem normas, na qual seja extinta qualquer forma de disciplina. O que sugerimos é uma abertura para a criação de meios pelos quais o controle, tanto na vida como nas escolas, seja diminuído.

Isso não significa que devemos viver sem a prevalência da razão, mas que nos esforcemos para dar espaço para outras forças corporais que também são fundamentais para a existência, como aquelas advindas dos afetos, dos sentimentos, das emoções, sejam também consideradas essenciais para o conhecimento. É nesse sentido que podemos nos aproximar do caos e nos distanciar da demasiada formatação da existência – para nós, um dos maiores fatores de todo tipo de patologia da sociedade atual. E o que essas reflexões têm a ver com a disciplina nas escolas? Como já afirmamos, a escola é fruto de uma concepção de mundo, e a organização disciplinar segue um modelo regrado de sociedade que já não corresponde mais ao nosso atual estilo de vida. A escola não é e não pode ser concebida como uma instituição salvadora, mas pode apontar caminhos.

Referências

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Publicado em 16 de agosto de 2016

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