Os desafios da significância do ensino em escola pública de tempo integral: uma análise do Programa Ensino Médio Inovador no Colégio Estadual Canadá
Luiz Fernando Nunes
Professor da rede privada e estadual do Rio de Janeiro, licenciado em História com especializações em Educação Tecnológica e Educação e Contemporaneidade
Introdução
Não se tem notícia de quem, em prática efetiva da docência, deponha contra o ensino de tempo integral na conjuntura educacional brasileira. A adoção dessa modalidade foi, inclusive, bandeira de muitas lutas ao longo da história da educação. No entanto, essa pauta nunca foi apenas pela ampliação de carga horária nas instituições de ensino. Ela vinha acompanhada de novas diretrizes que tinham como foco a significância do processo de ensino e aprendizagem.
Em outros países, sobretudo aqueles que apresentam elevado índice de desenvolvimento humano, novas perspectivas educacionais ganham força. Não é o caso brasileiro, em que o déficit educacional, mesmo que em escala decrescente na última década, ainda apresenta índices significativos e desconfortáveis.
Neste artigo, a pretensão é debater uma proposta central: analisar até que ponto a adoção do programa de ensino integral no Colégio Estadual Canadá, na cidade de Nova Friburgo, Rio de Janeiro, apresenta resultados significativos.
A adoção do Ensino Médio de tempo integral
O Colégio Estadual Canadá está inserido no bairro de Olaria, em Nova Friburgo, localidade operária cuja principal atividade reside na confecção de moda íntima. Não à toa, a cidade é conhecida nacionalmente como “capital da moda íntima”. Dados de 2013 dão conta de 18.000 funcionários ligados ao setor1, a maioria residente em Olaria, localidade mais populosa da cidade2.
Dessa maneira, boa parte do corpo discente da escola está ligado direta ou indiretamente à atividade confeccionista. Essa situação ficou bastante evidente na transição de 2014 para 2015, quanto a Secretaria de Estado de Educação – Seeduc implantou o Programa Ensino Médio Inovador (Proemi) no C. E. Canadá.
Segundo o Ministério da Educação, o Proemi, instituído pela Portaria nº 971, de 9 de outubro de 2009, integra as ações do Plano de Desenvolvimento da Educação, “como estratégia do Governo Federal para induzir a reestruturação dos currículos do Ensino Médio (Brasil, 2009)”. Ainda segundo o MEC, em complemento, o objetivo é:
apoiar e fortalecer o desenvolvimento de propostas curriculares inovadoras nas escolas de Ensino Médio, ampliando o tempo dos estudantes na escola e buscando garantir a formação integral com a inserção de atividades que tornem o currículo mais dinâmico, atendendo também às expectativas dos estudantes do Ensino Médio e às demandas da sociedade contemporânea.
Importante ressalvar que, antes de 2014, o colégio já tinha passado pela experiência do ensino integral. Professores daquela época relatam informalmente que inúmeros fatores inviabilizaram a continuidade do projeto, dentro os quais citam: falta de verbas específicas ao ensino integral e falta de estrutura adequada à carga horária ampliada, além da falta de treinamento e material específicos às disciplinas que complementavam a carga horária.
Em 2015, no entanto, o programa foi colocado em prática e teve início com quatro turmas de primeiro ano. O número de turmas superou as expectativas, mesmo que evasões ao longo do ano tenham ocorrido. Essa quantidade de estudantes tem muito a ver com esforços praticados coletivamente por professores e direção no sentido de viabilizar a proposta de ensino integral na escola.
Por se tratar de um programa novo, ao findar o primeiro ano de implementação os alunos foram convidados a relatar aspectos do ensino integral e opinar sobre suas adesões ao programa. Os resultados podem apontar questões interessantes acerca da ampliação de carga horária em escolas públicas.
Por que estudar o dia todo?
O ensino de tempo integral é uma política pública de educação que ganhou mais ênfase nos últimos cinco anos. A adoção de programas de ensino ampliados em escolas públicas possui ecos de aceitação entre a maioria da comunidade escolar. Esse é o discurso recorrente que pode ser encontrado tanto nas falas dos pais quanto na dos alunos, dos docentes e demais envolvidos em educação. No entanto, trata-se de um discurso de senso comum, vago e pouco reflexivo. Ao nos depararmos com a realidade da escola pública de tempo ampliado de hoje, mergulhamos num oceano de possibilidade e problemas recorrentes. Na busca para sanar algum desconforto, buscamos respostas para aparar arestas que ainda nos incomodam. Para tanto, o estudo apresentado não foi focado apenas em um apanhado bibliográfico, mas também em questionários avaliativos enviados aos atores principais do programa: os alunos.
A opção por essa metodologia é bastante simples: questionários desmontam visões que nos dão uma real dimensão do problema analisado. Necessário, pois, unir os dois métodos, como diz Lüdke (1986, p. 1-2) quando afirma que:
para se realizar uma pesquisa é preciso promover o confronto entre dados, as evidências, as informações coletadas sobre determinado assunto e o conhecimento teórico acumulado a respeito dele. Em geral, isso se faz a partir de um estudo de um problema, que ao mesmo tempo desperta o interesse do pesquisador e limita sua atividade de pesquisa a uma determinada porção do saber, a qual ele se compromete a construir naquele momento. Trata-se, assim, de uma ocasião privilegiada, reunindo o pensamento e a ação de uma pessoa, ou de um grupo, no esforço de elaborar o conhecimento de aspectos da realidade que deverão servir para a composição de soluções propostas aos seus problemas. Esse conhecimento é, portanto, fruto da curiosidade, inquietação, da inteligência e da atividade investigativa dos indivíduos a partir e em continuação do que já foi elaborado e sistematizado pelos que trabalharam no assunto anteriormente.
Talvez seja essa a melhor forma de dar voz àqueles que, em sua relação com a escola, tendem mais ao estranhamento do que ao acolhimento.
Quando se embarca em um projeto de educação ampliada, a primeira preocupação deriva da significância desse processo. Do contrário, apenas uma carga horária maior seria imposta aos alunos, fato que, sem dúvida alguma, jogaria por terra qualquer projeto político-pedagógico.
Nossa impressão é de que os frequentadores do ambiente público de educação sabem que a escola passa por uma crise moral e de significado. Não se trata, para muitos, de um local de aprendizado, mas de uma “prisão social” obrigatória, necessária a uma pretensa formação para o trabalho.
O sociólogo Émile Durkheim (1858-1917), ao compor sua ideia de “fato social” e estabelecer para ela as características de exterioridade, coercitividade e generalidade, tratou também da educação. Segundo ele, era também a ela que caberia o exercício de formação da sociedade. Ainda segundo o autor, ocorreriam influências múltiplas entre os indivíduos formando o meio social. Pensava ele que "a educação não se limita a desenvolver o organismo, no sentido indicado pela natureza, a tornar tangíveis os germes, ainda não revelados, à procura de oportunidade para isso. Ela cria, no homem, um ser novo" (Durkheim, 1952, p. 68). Nesse sentido, também a escola, como espaço de desenvolvimento de um processo de articulação de saberes, teria importância ímpar na colocação do indivíduo frente a questões de complexidade social, visto que realidades completamente distintas se comunicariam. Enfatizava Durkheim que
como a vida escolar não é senão o germe da vida social – os principais processos pelos quais uma funciona devem ser encontrados na outra. Pode-se, pois, esperar que a Sociologia, ciência das instituições sociais, nos auxilie a compreender melhor o que são as instituições pedagógicas e a conjeturar o que devam ser elas, para melhor resultado do próprio trabalho (1952, p. 72).
Mas a escola tem se tornado tudo, menos um local de encontro entre muitas diferenças. Em tempos complexos, em que reina um individualismo elevado ao maior grau, o espaço, sobretudo o público, perdeu seu foco transformador e passou, ainda segundo as ideias de Durkheim, de aglutinador a opressor. Essa ideia nos é exposta diariamente quando percebemos que jovens de todas as idades frequentam um espaço onde não querem estar, ou seja, ali estão por obrigações sociais de toda ordem. Em pesquisas informais, geralmente em aulas iniciais e introdutórias, ao serem questionados sobre o porquê de frequentarem espaços escolares, são raríssimas as exceções que afirmam ter prazer pelo conhecimento ou se sentem desafiados a crer numa libertação mental e social a partir da educação. A ampla maioria alega obrigações, sejam elas familiares, sociais ou ainda apelam para o jargão popular do “para ser alguém na vida”.
Não é essa a escola que queremos ou em que acreditamos. Pensamos numa educação de significados, de desenvolvimento de curiosidades e “espantos” (espanto aqui numa referência ao que Aristóteles dizia ao explicar a História da Filosofia: “Os homens começaram a filosofar pelo espanto”).
O que se deseja, entre outras maneiras de organizar o espaço escolar, é que ele seja um local de educação com significado, ou, como é mais comumente conhecido, como um espaço de “aprendizagem significativa”.
Mesmo que numa análise introdutória, faz-se necessário compreender o conceito de “aprendizagem significativa”. Ao termo, quase de forma automática, relaciona-se o nome do pesquisador norte-americano David Paul Ausubel3 (1918-2008), que afirmava que quanto mais sabemos mais aprendemos. Em linhas gerais, entende-se que
aprendizagem significativa é aquela em que ideias expressas simbolicamente interagem de maneira substantiva e não arbitrária com aquilo que o aprendiz já sabe. Substantiva quer dizer não literal, não ao pé da letra, e não arbitrária significa que a interação não é com qualquer ideia prévia, mas sim com algum conhecimento especificamente relevante já existente na estrutura cognitiva do sujeito que aprende.
De certa maneira, é o processo de ensino e aprendizagem ocorrendo de forma dupla, numa correlação de ideias, transformando-se, dessa forma, em algo significativo. Um dos maiores educadores brasileiros, Paulo Freire, já pregava que o conhecimento ocorre efetivamente em mão dupla, sem hierarquias de saberes; é necessário, pois, saber ler o mundo e interpretá-lo. Entre as ideias de ambos, regularidades e dispersões (Santana; Carlos, 2013) são verificadas, mas em nosso propósito se complementam.
Frente aos ensinamentos teóricos, faz-se necessário criar meios para que o ensino integral seja, de fato, relevante e significativo. É o desafio do colegiado de professores que integram o Proemi do C. E. Canadá. Tarefa árdua e que requer disciplina, paciência e resultados em longo prazo. Luta desigual, mas empolgante.
E como anda o Proemi?
Verificamos, ainda, tanto no ambiente escolar como na sociedade, um discurso de que educação é fundamental. À primeira vista, trata-se de uma fala fabricada sobretudo por meios de comunicação de massa que introjeta nos ouvintes obrigações e perspectivas que desembocam em pontos pouco substanciais. Nesse cenário, ganha força a educação para o mercado de trabalho, a educação acrítica e pouco reflexiva. Ou seja: a escola serve para formar, em série, indivíduos obedientes e ansiosos por postos no mercado de trabalho, geralmente em subempregos.
Essa é uma realidade latente ao Proemi do C. E. Canadá. Mesmo que a evasão tenha sido considerada pequena e abaixo das expectativas pela direção da escola, ainda foi possível verificar alunos afoitos pela entrada na formalidade do trabalho. Entre as justificativas, surgiram falas de necessidade (complementação da renda familiar) ou de independência (ter o próprio dinheiro para diversão e aquisição de bens de consumo).
Nos que se mantiveram firmes à proposta pedagógica da escola, percebemos pontos interessantes que puderam ser clareados a partir do questionário enviado.
O questionário
O questionário encaminhado virtualmente aos discentes foi composto por oito perguntas simples e diretas. Entre elas, questionamentos sobre experiências anteriores com educação de tempo integral, percepção sobre o programa no seu primeiro ano de implementação etc.
As perguntas foram enviadas a 45 alunos do programa, dos quais 37 responderam de imediato, ou seja, 82% dos entrevistados. O período para resposta do questionário foi do dia 9 ao dia 23 de janeiro de 2015. Eis os gráficos de respostas –com seus respectivos questionamentos, quando julgamos necessários:
- Idade:
- Experiência com ensino integral fora do C. E. Canadá:
O fato do ineditismo no ensino integral é, provavelmente, derivado de realidades socioeconômicas. Não localizamos, à exceção do Programa Dupla Escola, programas de Ensino Médio de tempo integral no Estado do Rio de Janeiro. Na cidade de Nova Friburgo, campo do nosso estudo, somente duas escolas aderiram ao Proemi; o Colégio Estadual Canadá foi uma delas.
- Avaliação do primeiro ano de Proemi no C. E. Canadá:
- Principal dificuldade encontrada no Proemi
Inquestionavelmente, o tempo ampliado na escola é a maior dificuldade relatada pelos alunos. Esse dado já era, há algum tempo, conhecido por professores e pela direção da escola.
O Proemi é um programa de transição, implantado gradualmente. Sendo assim, apenas algumas turmas estão inseridas no ensino de tempo integral. Ao final do primeiro turno regular, por exemplo, quando a maior parte da escola finaliza suas aulas do dia, o lado emocional tem peso para os alunos do integral, já que precisam voltar para mais um turno de aulas à tarde.
Outro ponto é a queixa pela falta de professores em determinadas matérias. Segundo os alunos relataram à Secretaria de Educação em reunião organizada pelo órgão no decorrer do ano de 2015, as aulas vagas são um empecilho grande e um desafio a ser superado.
O programa teve início com carência de professores em algumas disciplinas e/ou projetos. Ao longo do ano, algumas ausências foram supridas graças aos tempos extras preenchidos pelos professores, mas mesmo assim aulas vagas eram registradas frequentemente. O ócio, segundo os alunos, aumentava ainda mais a ansiedade pelo fim do dia de aulas.
- Posicionamento quanto à efetividade do ensino integral como política pública para a educação
- Possibilidade de indicação do Proemi por alunos já matriculados a outros alunos
Escala: 1 = nenhuma chance de indicar o Proemi; 10 = muita chance de indicar o Proemi a outro aluno
- Posicionamento quanto à gratuidade do ensino integral. Os alunos foram questionados se pagariam por educação integral na rede particular de ensino
- Posicionamento sobre a objetividade do Proemi em preparar os alunos para os exames vestibulares e/ou Enem
Considerações finais
A adoção do ensino de tempo integral se transformou em realidade no Colégio Estadual Canadá. Com isso, somaram-se desafios àqueles que gerem o espaço, sobretudo quanto à continuidade do projeto frente às oscilações de governos e suas insistentes mudanças em relação aos programas de educação. O que se percebeu diante disso foi uma resistência inicial tanto de professores quanto de alunos ao projeto. Hoje essa resistência nos parece bem menor, bem como a insegurança.
Nas reuniões preliminares ao projeto, ainda na fase de implantação, focávamo-nos na ideia de que a educação de tempo integral não podia se resumir ao tempo ampliado em sala. Era necessário significar esse processo, transformando-o de fato em algo que ampliasse a capacidade crítica e reflexiva dos envolvidos. Para isso, os professores esforçaram-se na criação de projetos diversos, seja no campo das Ciências Exatas como no de Humanas e nos esportes.
Ao avaliarmos coletivamente esses projetos, chegamos a uma conclusão que não encontra objeção: participamos de um projeto de transição que se permite, ao tentar o novo, errar. Assim, quando uma proposta apresenta pontos negativos, o coletivo de docentes se reúne para avaliá-los e modificá-los se for o caso.
A educação é um desafio. Seu processo é cheio de acertos e erros. Suas tentativas, no entanto, não podem ser limitadas por essas consequências. O C. E. Canadá continua, em 2016, mesmo frente a toda sorte de problemas de conjunturas de poder, acreditando na efetiva implantação de um Ensino Médio público, gratuito e de qualidade, direcionado à reflexão e à construção da cidadania coletiva.
Referências
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BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Resolução CEB/CNE nº 2, de 30 de janeiro de 2012. Disponível em http://educacaointegral.mec.gov.br/images/pdf/res_ceb_2_30012012.pdf. Acesso em 10 fev. 2016.
______. Programa Ensino Médio Inovador: documento orientador. 2013. Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ docman&view=download&alias=13249-doc-orientador-proemi2013-novo-pdf&category_slug=junho-2013-pdf&Itemid=30192. 2013. Acesso em 10 fev. 2016.
______. Ensino Médio Inovador. 2009. Disponível em http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=13439:ensino-medio-inovador. Acesso em 10 fev. 2016.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1952.
DUTRA, Luiz Henrique de A. Epistemologia da aprendizagem. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
GENTILI, Pablo; ALENCAR, Chico. Educar na esperança em tempos de desencanto. Petrópolis: Vozes, 2005.
KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2013.
LÜDKE, Menga. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
MÉSZAROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008.
MOREIRA, Marco Antônio. O que é, afinal, aprendizagem significativa? Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.
SANTANA, Marcelo da Fonseca; CARLOS, Erenildo João. Regularidades e dispersões no discurso da aprendizagem significativa em David Ausubel e Paulo Freire. Aprendizagem Significativa em Revista, Universidade Federal da Paraíba, v. 3(1), p. 12-22, 2013. Disponível em http://www.if.ufrgs.br/asr/artigos/ Artigo_ID40/ v3_n1_a2013.pdf. Acesso em 31 jan. 2016.
1 Cf. em “Costurando a vida...”, disponível em http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/4503977. Acesso em 30 jan.2016.
2 Bairro mais populoso de Nova Friburgo, Olaria apresenta problemas pontuais. Disponível em http://avozdaserra.com.br/noticias/bairro-mais-populoso-de-nova-friburgo-olaria-apresenta-problemas-pontuais. Acesso em 30 jan. 2016.
3 David Ausubel (1918-2008) graduou-se em Psicologia e Medicina, doutorou-se em Psicologia do Desenvolvimento na Universidade de Columbia, onde foi professor no Teacher’s College.
Publicado em 15 de março de 2016
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