Dilma Rousseff e a Educação via pharmakós da mídia brasileira

Fábio Souza Lima

Graduado em História (UFF) e em Filosofia (UFRJ), mestre e doutorando em Educação (UFRJ)

A presidente Dilma Rousseff se transformou na principal vítima dos 12 anos do governo do Partido dos Trabalhadores. Isso porque a leniência do PT com uma série de erros com relação às políticas educacionais manteve a população à mercê dos educadores mais eficientes em inculcar ideias e valores na população: a mídia.

Dia 15 de março de 2015 uma multidão ganhou as ruas pedindo o impeachment presidencial como meio de eliminar as mazelas causadas pela corrupção no país. Não se trata aqui de destacar aqueles que levaram babás para cuidar de seus filhos enquanto protestava ou de escrever sobre o champanhe derramado na Paulista entre um grito e outro de “Fora Dilma!”, mas de ressaltar opiniões como a da jovem que acreditava piamente que renúncia e cassação do mandato presidencial eram as mesmas coisas e que, caso Dilma estivesse ausente do poder, o senador Aécio Neves (PSDB) automaticamente ascenderia ao cargo mais poderoso do país. Evidentemente precisamos falar mesmo de educação.

O epíteto do novo mandato do PT, “Brasil a Pátria Educadora”, chegou tarde demais. Formou-se, no período da administração do PT, ao menos uma geração inteira de jovens que não conhece os trâmites basilares de uma república. São analfabetos funcionais formados dentro de uma política educacional que visa manter, a qualquer custo, o índice de fluxo de alunos das escolas em alto patamar. Com efeito, o jovem entra no Ensino Fundamental sem saber ler e escrever com 6 anos de idade e sai pela culatra do Ensino Médio com 17 sem conseguir entender textos com mais de um parágrafo. Jovens que não conhecem as responsabilidades de cada peça no tabuleiro do jogo do poder. Que não reconhecem a divisão dos poderes, muito menos quem são e o que fazem os parlamentares das duas casas que formulam, reformulam, aprovam ou desaprovam as leis que todos temos de seguir. São brasileiros que não conseguem enxergar nuanças no meio político, muito menos conseguem perceber as forças e os interesses que estão além das siglas políticas.

Aproveitando-se da nossa ignorância como brasileiros, o presidente da Câmara dos Deputados, que agora também ministra cultos evangélicos, Eduardo Cunha (PMDB), recentemente teve a petulância de dizer publicamente que não há corrupção no Legislativo, que a desgraça nacional da corrupção residia apenas no Executivo. A reportagem foi publicada no jornalão do mesmo grupo de mídia que parou sua própria programação no dia 15 de março para informar – em tom de convocação – que a movimentação pacífica, ordeira, familiar e cívica de domingo visava solucionar os problemas da corrupção via impeachment de Dilma Rousseff.

O resumo de todo o material produzido no domingo foi simples e claro: uma cabeça cortada pelo bem de toda sociedade brasileira.

A purificação do povo brasileiro

O termo pharmakós aproxima-se de nós no tempo pelo cotidiano das cidades grandes. Os atenuantes e paliativos mais vendidos nas farmácias (nem sempre de forma legal) não combatem os problemas enraizados na vida de cada brasileiro; apenas buscam amenizar uma situação de estresse contínuo e de descontrole emocional que é efeito de um sistema político-econômico-social que oferece poucas recompensas em estabilidade, em crescimento financeiro e em relacionamentos duradouros e confiáveis.

Toma-se Dorflex® para as indisposições causadas nas horas diárias das aventuras que enfrentamos no transporte público na idade e na volta para o trabalho. Rivotril®, uma das drogas mais vendidas da atualidade, é medicamento obrigatório para quem precisa relaxar os músculos e nervos, preparando-os para mais um dia de Dorflex, em constante alternância que só tem folga nos finais de semana, quando então a propaganda na tevê afirma em tom peremptório: “Você precisa de Shot-B!”. Este é apenas mais um dos muitos complexos vitamínicos que prometem “bombar” o corpo e nos manter confiantes dentro de um ciclo vicioso que só termina com a separação – literal ou metaforicamente – do corpo e da alma. Tudo isso, evidentemente, ao nosso alcance nas farmácias de cada pequeno bairro das cidades do país.

O conceito de pharmakós origina-se no grego clássico, relacionando-se de forma dúbia aos termos remédio e veneno ao mesmo tempo. Nesse caso, o fator determinante para que funcione como uma coisa ou outra é apenas a dosagem. Ao surgir uma calamidade entre as cidades helênicas antigas que pudesse ser identificada a uma misteriosa força maligna, como o resultado negativo do plantio de uma cultura básica para a subsistência ou a ausência de chuvas, as doenças, a deterioração moral, a prostituição, a procrastinação, a corrupção, a fome, entre outras coisas, a purificação via pharmakós oferecia não apenas uma saída que absolvia toda população de qualquer culpa, mas também o “circo” necessário para que o povo acreditasse que, a partir desse evento, haveria um novo começo.

O procedimento consiste em um visitante ou mesmo um morador local ser chamado a partilhar, experimentar e acumular todas as mazelas que as elites administradoras da cidade julgavam denegrir a sociedade. O escolhido relacionava-se com prostitutas ou se prostituía, roubava ou era de alguma forma cúmplice de rapinas, matava ou se responsabilizava por assassinatos e viciava-se no que era proibido por lei. Enfim, se corrompia de toda forma até que ficasse evidente aos olhos de todos que ele estava impregnado com tudo que havia de ruim na cidade. Terminada a imersão dessa pessoa nas podridões geradas pela cidade, ela era exilada ou morta por apedrejamento. O povo podia então respirar aliviado e livre de todo o mal, pois, com uma única alma sacrificada, as impurezas morais dos corações humanos estavam agora limpos e os deuses estavam novamente satisfeitos com os seres humanos.

Essa história pode parecer absurda, mas não é, se usarmos uma expressão mais conhecida da cultura cristã ocidental como analogia: o bode expiatório. Todavia, neste texto continuaremos seguindo a senda grega na qual a questão que relaciona pharmakós e política mostra-se evidente, ou seja, se usamos drogas diariamente para mitigar questões que não conseguimos resolver, por que não faríamos isso com a corrupção?

Cidadão idôneo?

Foi interessante ver na Avenida Paulista, no dia 15 de março de 2015, um quantitativo de brasileiros que, entre os jornais que se dizem sérios e aqueles como o Sensacionalista, que honestamente diz ser isento de verdade, variava entre 210 mil a 7 bilhões de pessoas. Um número infindável de cidadãos que afirmavam que o problema da corrupção seria resolvido com a destituição do poder de apenas uma cabeça.

“Sem dúvida”, uma série de brasileiros que, ao contrário dos políticos, paga todos os seus impostos em dia. Brasileiros que jamais compraram um produto pirata nas feiras populares da Rua 25 de Março ou na Rua Uruguaiana. Empresários que nunca deixaram de depositar o FGTS de seus funcionários rigorosamente em dia. Comerciantes que nunca pensaram em fazer um gato de luz para diminuir a conta no final do mês. Industriais que em nenhum momento fizeram ligações clandestinas de água ou despejaram os dejetos in natura de sua produção nos rios. Brasileiros do setor de serviços que jamais lavaram algum dinheiro com contratos escusos ou esconderam transações financeiras da Receita Federal. Jornalistas de caráter inquestionável que buscam desmedidamente a verdade e não dizem ou escrevem o que seus editores mandam dizer e/ou escrever, mas trabalham sob sua própria livre consciência, fazendo uma cobertura midiática isenta, como no caso dos carros de som que brotaram espontaneamente sem custos para empresários e para os partidos por todos os quarteirões.

Também estavam presentes pais que se responsabilizam integralmente pelos filhos e nunca deixariam que a televisão educasse suas crianças. Incluem-se ainda aqueles que em momento algum transmitiram tal responsabilidade de educar suas proles para a escola e para os professores. Um sem-número de pessoas da nova classe média brasileira que jamais, em toda a sua vida, sequer colou em uma prova quando estava na escola, nem mentiu, nem usou transporte irregular, nem escondeu traições, nem fez gatos de tevê a cabo, nem usa jogos de videogame “alternativos” nem vê filmes pela internet para não pagar direitos autorais, muito menos falsifica carteirinhas de estudante para pagar meia entrada em eventos culturais. Um público que jamais estaciona seu carro nas vagas para idosos ou deficientes físicos, que não aluga pneus ou extintores apenas para fazer vistoria no Detran, que não ultrapassa correndo os radares eletrônicos em áreas escolares tampando a placa de seus veículos, que não usa o próprio carro como instrumento de som na madrugada para não incomodar os vizinhos, pessoas que respeitam o silêncio noturno do domingo nosso de cada semana.

“Cidadãos idôneos” são duas palavras que, postas lado a lado, são absolutamente redundantes, uma vez que, se alguém é cidadão, ciente principalmente dos seus deveres, também é idôneo, competente e honrado. Assim, com base no que escrevemos nos parágrafos anteriores, presumimos que o presidente da Câmara dos Deputados está certo: a corrupção “está no Executivo”, e apenas lá!

Bom, ou acreditamos nisso ou admitimos que a corrupção não reside apenas no Executivo Federal e na política. Afinal os políticos não parecem ser alienígenas. Segundo consta, eles não foram depositados sorrateiramente por naves espaciais em Brasília ou em cada uma das mais de 5.000 câmaras de vereadores espalhadas de norte a sul do país. Pelo contrário, um político – de forma geral – teve a mesma educação que os outros brasileiros. A principal diferença entre eles (e além da política inclua aí também a polícia) e os demais brasileiros é que nós não lidamos diretamente com alto volume de dinheiro.

Aliás, já que citamos a polícia, relembrando as selfies tiradas pelas pessoas ao lado de policiais sorridentes e fortemente armados, devemos considerar que a palavra “cidade” (Cidade-Estado) vem do grego pólis. Essa palavra, portanto, teve duas filhinhas: a política, o meio no qual as questões sociais são resolvidas pelos acordos, pela conversa e pela palavra (daí o termo parlamento) e a polícia, meio no qual as mesmas questões são resolvidas pela força ou pela violência. Política e polícia andam juntas em qualquer administração pública; a primeira é praticada em sociedades mais bem educadas; a segunda, com muito mais força em sociedades como a nossa. Visto dessa forma, então, não é surpresa que muitas daquelas pessoas estivessem pedindo a volta da ditadura.

Em suma, a questão retórica seria: o problema está mesmo na política a ponto de desistirmos dela e partimos para a polícia ou o problema da corrupção está em nós?

O inferno são os outros

Jean-Paul Sartre responde emblematicamente essa questão com uma frase que resume seu estudo sobre a ética e a liberdade conferida aos seres humanos: “O inferno são os outros”. Da mesma forma que não encaramos os problemas cotidianos para resolvê-los, preferindo alimentá-los com drogas que momentaneamente conferem leveza à nossa existência, também não enfrentamos a política e a cidadania. Continuamos vivendo como na Antiguidade, preferindo atribuir aos outros a nossa responsabilidade no destino da sociedade em que vivemos. É mais fácil cortar uma cabeça e “salvar a nação” do que entender que estamos mesmo condenados a sermos livres e responsáveis pelas nossas próprias atitudes.

Não que a mídia e as elites não saibam o que estão fazendo. Elas sabem, sim! Ainda hoje os grupos de maior interesse financeiro sabem que a população continua agindo da mesma forma que na Grécia Antiga, quando o ritual de pharmakón oferecia o “espetáculo” necessário e o “alívio imediato” para a alma dos cidadãos. E, é por isso que esses grupos continuam desde sempre seguindo uma lógica leopardiana: “para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que mudem”.

A síntese do discurso de 15 de março: impeachment de Dilma Rousseff pelo fim da corrupção! Salvai-nos, ó exército brasileiro! Eu não aguento mais tanta roubalheira...

A síntese do discurso dúbio do brasileiro que varia entre remédio e veneno há centenas de anos tem sido “Ninguém faz nada!” Ah, todo mundo faz!

Mas então vale perguntar quando veremos a mídia destacar discursos como: “Precisamos nos reinventar eticamente!” “Precisamos participar mais da política!” “Eu sou responsável!” “Eu também sou corrupto!” “Fora a corrupção significa melhor educação!”.

Publicado em 09 de junho de 2015

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