Cultura popular e Arquivologia: uma conexão intrinsecamente necessária para a Educação

Ana Lúcia Tavares de Oliveira

Especialista em Educação em Direitos Humanos (UFPB); arquivista (UEPB), psicopedagoga (UNIPÊ), Pedagoga (UFPB)

Eduardo Beltrão de Lucena Córdula

Doutorando e mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPB); especialista em Supervisão Escolar (IESP); biólogo

Introdução

Vem se observando ao longo do tempo que os avanços tecnológicos e as intensas alterações culturais ocorridas nas últimas décadas interferiram nas ações culturais dos grupos de cultura popular e, consequentemente, na forma como estes são incluídos nas políticas culturais.

Identifica-se que as modificações culturais, caracterizadas pelo desenvolvimento das novas tecnologias, bem como pela velocidade das informações, impõem uma competitividade entre os grupos de cultura popular para que estes continuem no cenário cultural (Mejía, 2007).

Nesse sentido, a documentação como fonte de informação – oral, escrita ou audiovisual – configura-se como uma ferramenta primordial para a disseminação da cultura popular e da memória cultural, na medida em que influencia diretamente para a valorização desses grupos nas políticas culturais, que são executadas pelo Estado (Cunha; Constante, 2012).

Compreende-se que a documentação como fonte de informação requer gerenciamento eficaz, de modo a contribuir para a visibilidade e a promoção dos grupos culturais. No âmbito da cultura, otimizar o fluxo informacional e, por conseguinte, a recuperação da informação apresenta-se como condição imprescindível para a difusão cultural dos grupos que promovem a cultura popular (Mejía, 2007; Cunha; Constante, 2012).

Desse modo, para garantir a adequada identificação e recuperação informacional, faz-se necessário o uso de técnicas apropriadas; o arquivista, como gestor da informação, é o profissional mais indicado para desenvolver e aplicar essas técnicas.

A Lei nº 6.546, de 4 de julho de 1978, dispõe sobre a regulamentação das profissões de arquivista e de técnico de arquivo. Expõe em seu Art. 2° as atribuições dos arquivistas; entre elas ressalta planejamento, organização e direção de serviços ou centro de documentação e informação. Essa lei destaca que o Arquivista encontra-se apto a gerenciar a informação armazenada em qualquer suporte, físico, digital ou virtual (BRASIL, 1978). Sendo assim, o objetivo principal deste artigo é analisar a relevância da Arquivologia para a cultura popular e a sua conexão intrinsicamente necessária à formação do educador e educando na Educação Básica, sobretudo como futuros cidadãos/usuários da informação.

Cultura e sua interface com a Arquivologia

No Brasil, identifica-se que a cultura popular precisa começar a ganhar um apoio efetivo, não podendo ser considerada apenas como parte de um passado folclórico. O Estado precisa reconhecer e incentivar as ações culturais que são desenvolvidas pelos mestres das tradições populares, sobretudo aqueles com vasto conhecimento oral e com intensa sabedoria sobre a cultura popular (Lima Filho et al., 2007).

De acordo com Eagleton (2011, p. 9), “cultura é considerada uma das duas ou três palavras mais complexas de nossa língua”. Para o autor, o conceito tem vínculo com a agricultura, ou seja, colheita de algo cultivado, mas que ganhou nova forma ao longo do tempo, sendo considerada a materialidade e a imaterialidade que caracteriza toda uma sociedade.

Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização (1996), define cultura a partir da linguística e da etimologia da palavra; afirma que, assim como culto e colonização, viria do verbo latino colo, que significa ‘eu ocupo a terra’. Compreende-se que cultura, para o autor, tem significado ampliado, abarcando desde o que se vai trabalhar, o que se quer cultivar, até a transmissão de valores e conhecimentos para as gerações futuras.

Johnson (1997, p. 59), por sua vez, classifica cultura como sendo o “conjunto de símbolos, ideias e produtos materiais associados a um sistema social”. Por sua vez, cultura popular “é o repertório acumulado de produtos culturais como música, literatura, arte, moda, dança, cinema, televisão e rádio”.

A cultura possui aspectos materiais e não materiais. A cultura material inclui tudo o que é feito, modelado ou transformado como parte da vida social e coletiva, da preparação do alimento à produção de aço e computadores, passando pelo paisagismo que produz os jardins do campo inglês. A cultura não material inclui os símbolos – de palavras à notação musical –, bem como as ideias que modelam e informam a vida de seres humanos em relações recíprocas e os sistemas sociais dos quais participam. As mais importantes ideias são as atitudes, crenças, valores e normas (Johnson, 1997, p. 59).

Percebe-se que cada autor, em sua respectiva área de conhecimento, produz uma concepção sobre as terminologias aqui apresentadas e que norteiam o objetivo deste estudo, sendo alguns com sutis nuances ou contrastes marcantes. Porém cabe à sociedade, aos profissionais da Educação, sobretudo aos militantes da cultura popular manter viva a cultura por meio do seu registro e alimentar seus acervos.

Sendo assim, os procedimentos arquivísticos tornam-se uma ferramenta necessária para recuperar a informação nas instituições públicas e privadas, bem como nos grupos culturais que têm em seu acervo vários gêneros documentais (gênero documental é a reunião de espécies documentais que se assemelham por seus caracteres essenciais, particularmente o suporte e a forma de registro da informação, como documento audiovisual, documento bibliográfico, documento cartográfico, documento cinematográfico, documento iconográfico, documento eletrônico, documento micrográfico, documento textual, Brasil, 2005, p. 89).

Logo, a relevância tanto da gestão documental como da forma de preservar o documento é definida pelo grau de interesse que os usuários têm com as informações registradas nos variados suportes. A Arquivologia apresenta uma nova forma para registrar, disseminar, recuperar, acessar e usar as manifestações culturais como fontes de informação (Cunha; Constante, 2012).

O Brasil tem nos três níveis (federal, estadual e municipal) órgãos responsáveis pela gestão cultural, os quais têm como missão promover e disseminar a cultura; no entanto, determinadas ações não condizem com a realidade (Lopez, 2008). Esses órgãos, em determinados momentos, proporcionam situação que inibe a fomentação da cultura, como a carência de recursos humanos e financeiro em determinada expressão cultural.

A relação entre os arquivos e a cultura popular

De acordo com a Constituição Federal (Brasil, 1988), uma das competências dos três níveis de governo é proteger documentos, obras de artes e bens de valor histórico, artístico e cultural, incluindo ainda monumentos, paisagens naturais e sítios arqueológicos. Sendo assim, percebe-se a existência de museus, centros culturais, galerias de arte, bibliotecas e teatros, entre outras instituições de cunho cultural que são administradas pelo poder público.

Diante do exposto, torna-se pertinente a efetivação da política nacional de gestão desses acervos, a criação de um arquivo que centralize as informações permitindo ao governo conhecimento arraigado da realidade cultural, para que se possa elaborar e efetivar um plano nacional de políticas culturais que atenda as especificidades de cada região.

Os arquivos e a cultura estão interligados, contribuem com a cultura, constante nas metas do Plano Nacional de Cultura (PNC) – Lei nº 12.343/10 (Brasil, 2010), que por sua vez aponta resultados relacionados com a disseminação da cultura, na medida em que apresenta um diagnóstico extenso da conjuntura da Arquivologia nacional no setor cultural. Portanto, os arquivos, bibliotecas e museus têm uma relação estreita com a cultura, pelo fato de serem considerados fontes de informação, locais onde se registra a memória, e por conterem objetos e características semelhantes. Logo, arquivos, bibliotecas e museus estão relacionados de forma direta e indireta com a cultura, criando laços intrínsecos de registro e perpetuação da história e do conhecimento, através dos seus itens ou das suas peculiaridades, contribuindo com pesquisas e tornando-se um canal de informação para a sociedade (Cunha; Constante, 2012).

Schellenberg (2008) afirma que os documentos conservados resultarão em arquivos quando a razão primordial de sua preservação for aliar o objetivo para o qual foram criados e acumulados com o uso por outros, além de seus próprios criadores.

A literatura que aborda a relação entre a cultura e os arquivos é incipiente até o presente momento. Entre os estudiosos da área destaca-se Gagnon-Arguin (1998, p. 47), que afirma que “a faceta cultural [dos arquivos] está ligada ao conceito de memória”. Logo, a memória é materializada pela escrita e pelos documentos, e é através da materialização da memória que as pessoas e instituições fortalecem sua memória cultural.

Bellotto (2004, p. 228) afirma que os arquivos estrangeiros possuem um grande diferencial dos nacionais, pois investem em ações lúdicas, além de colaborarem “com o turismo cultural e com a realização de filmes documentários ou artísticos”. Sendo assim, os arquivos desempenham uma função social, quando desenvolvem suas atividades na perspectiva de promover a dimensão popular e cultural dos seus acervos, via ações educativas, bem como a difusão da própria cultura e da contribuição para o fortalecimento da memória cultural da sociedade.

Arquivos, bibliotecas e Educação

A escola tem papel secular na formação do cidadão e, para tanto, sair do contexto dos muros que a cercam possibilita contextualização e vivências voltadas à realidade do educando. Nesse sentido, conhecer os centros de saber, além da própria escola, leva o estudante a aprender a buscar além do universo virtual, a buscar o universo físico do conhecimento, representado pelas obras impressas que estão nas bibliotecas situadas na comunidade, na cidade e no estado onde esses educandos residem (Córdula, 2012; Córdula; Nascimento, 2012).

Biblioteca é um patrimônio do saber, visto que possui pela semântica o significado de “coleção pública ou privada de livros e documentos congêneres, organizada para estudo, leitura ou consulta” (Cegalla, 2005, p. 128). É nesse ambiente organizado e estruturado pelo bibliotecário e arquivista que está disposta uma pequena fração do saber da humanidade e onde todos que sabem buscar encontrarão nela um universo infinito de saber para ‘degustar’ e aprender (Córdula, 2013).

Da mesma forma, bibliotecas, museus, arquivos públicos, coleções e toda e qualquer forma de registro que conserve o saber da humanidade juntamente com sua história, preservada e conservada, devem estar acessíveis a todos que possuem sede pelo saber e desejo pelo aprender, pois o conhecido registrado e sorvido deve ser perpassado e, assim, de forma cíclica, retroalimentar continuamente a humanidade e iluminar o cognitivo dos que ainda estão obscurecidos pelo não acesso ao saber que ignoram (palavra que provém de "ignorância", que, segundo Cegalla, 2005, p. 477, é “falta de instrução; falta do saber”.)

Considerações finais

Acredita-se que e a cultura vem se firmando como uma alternativa estimulante para pesquisas de trabalho de conclusão de curso de graduação, teses de mestrado e doutorado, bem como para publicação de artigos e livros. Porém esse quadro não é satisfatório por se só, torna-se necessário ir além dessas iniciativas pontuais e reunir esforços constantes para promover uma interlocução que atenda às demandas da área, promovendo reflexões na perspectiva do diálogo, apresentando a cultura a partir de diferentes perspectivas.

É preciso ainda alcançar outros avanços nas ações culturais entre os diversos níveis de governo, para que seja possível uma disseminação da cultura de forma transparente e democrática, respeitando a diversidade cultural do país.

Acredita-se que o tema em questão tem relevância acadêmica e social, na medida em que apresenta aspectos da cultura que poderão desmistificar estigmas e estereótipos acerca dos grupos culturais, sobretudo no que concerne à ‘cultura de raiz’. Sendo assim, os arquivos tornam-se instrumentos que contribuem para a expansão dessa cultura e promoção dos processos de ensino-aprendizagem no âmbito escolar e extraescolar.

Logo, as atividades culturais dos arquivos trarão aos educandos aspectos relacionados a história, identidade, memória, preservação e ampliam o entendimento do usuário da informação sobre a relevância dos arquivos e documentos para uma nação democrática de Direito, que assegure a formação plena do seu cidadão.

Espera-se que os militantes da cultura popular, sobretudo, dos grupos culturais que promovem a democratização da cultura, expandam os princípios da diversidade cultural, da busca pelo saber e da perpetuação da cultura, pois estes são imprescindíveis para uma relação humanizada entre todos que vivem a história da sociedade, da sua cultura e buscam a ponte para o futuro e para a disseminação e fortalecimento da cultura popular.

Referências

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 2ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

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CÓRDULA, Eduardo B. de Lucena; NASCIMENTO, Glória C. Cornélio (orgs.). A dialética dos saberes: construindo um caminho. Cabedelo: EBLC, 2012.

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EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

GAGNON-ARGUIN, Louise. Os arquivos, os arquivistas e a arquivística: considerações históricas. In: ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTRE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998, p. 29-60.

LIMA FILHO, Manuel Ferreira; BELTRÃO, Jane Felipe; ECKERT, Cornelia (orgs.). Antropologia e patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos. Blumenau: Nova Letra, 2007.

LOPEZ, André P. Ancona. O “ser” e o “estar” arquivista no Brasil de hoje. In: Congresso Brasileiro de Arquivologia, 15, Goiânia, 2008. Anais... Goiânia: AAB – AAG, 2008.

MEJÍA, Marco Raúl. Tecnología, globalización y reconstrucción de la Educación Popular. Pasos, San José, Costa Rica, v. 2, n. 130, mar.-abr. 2007, p.31-42.

SCHELLENBERG, T. R. Arquivos modernos: princípios e técnicas. 6ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

Publicado em 05 de julho de 2016

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