Relações raciais no cotidiano escolar: pela manutenção da consciência negra para além do 20 de novembro

Luciana Guimarães Nascimento

Mestre em Educação; especialista em Relações Étnico-raciais e Educação; professora (SME/RJ), pedagoga (PMQ/RJ), tutora do curso de Pedagogia EAD/UNIRIO

O mês de novembro chegou e, junto a ele, intensificam-se questionamentos que nos últimos anos vêm ocupando rodas de conversa e, com o advento dos avanços tecnológicos, pautando debates nas redes sociais. Referimo-nos à polêmica sobre a relevância do Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro pela primeira vez em 1971 e hoje estabelecido como data simbólica para conscientização de negros e de não negros sobre a valia daquele povo à construção da História brasileira.

Atestando a importância desse dia para a sociedade brasileira e submetendo a problemática à compreensão no âmbito da educação formal, em 2003 o Governo Federal instituiu a Lei nº 10.639, resguardando o simbolismo da comemoração ao alterar a LDB nº 9.394/96 e incluir no calendário escolar, pelo Art. 79-B, o 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”, estabelecendo uma data para ponderações nas escolas sobre a condição dos indivíduos negros em nossa sociedade.

Porém, tornou-se comum nos depararmos com argumentações contrárias à pertinência dessa data, com refutações que oportunisticamente baseiam-se na igualdade inerente à condição humana, porém desconsideram o fato de, no Brasil, estarmos distantes da equidade social que humaniza todos os indivíduos, independente de aspectos inerentes à diversidade, marca da população brasileira, como a raça/cor.

Diante disso, convém destacar a data legitimadora de uma luta que, mesmo cercada por polêmicas, representa vitória à população negra, já que possibilita vivenciar o processo de empoderamento a partir de um calendário impregnado por simbologia, e específico para reflexões sobre a sua condição na sociedade, instigando movimentos de reparação e transformação do arquétipo social ainda experimentado no Brasil: opressor e excludente aos indivíduos em decorrência da sua raça/cor. Em território brasileiro, o racismo diminui a condição humana do negro ao limitar seus direitos sociais e, em certa medida, também os direitos civis. Questionar ou desvalorizar um movimento simbólico em prol da reconstrução do imaginário racista que assola grande parte dos brasileiros representa estagnação e retrocesso na luta pela superação de uma mazela prejudicial a mais da metade da população constituidora do Brasil, conforme dados do último Censo IBGE, de 2010.

Assim sendo, o reconhecimento da importância do Dia Nacional da Consciência Negra não deve desacompanhar a lucidez para o fato de que precisamos, urgentemente, desconstruir o mito da democracia racial – propagador de uma falsa igualdade de condições entre todos os indivíduos étnica e racialmente distintos na sociedade –, e um único dia no ano não basta para reverter séculos de submissão da população tiranizada perante a supervalorização de valores culturais eurocêntricos. Nessa luta, sublinha-se como fundamental a contribuição dos espaços escolares para percepção, reconhecimento e exaltação de princípios antirracistas, que, quando iniciados e fortalecidos em seu interior, apresentam potencial para alcançar os diferentes segmentos da coletividade que compõe o Brasil.

Não podemos ignorar o contexto social no qual estamos inseridos, impregnado por conceitos discriminatórios e preconceituosos associados à população negra, ocasionando problemas nas relações interpessoais, sintoma de uma sociedade que se apresenta a cada dia mais intolerante e antidemocrática, muitas vezes transparecendo ódio e utilizando violência. Isso posto, constitui-se como fundamental a sistematização de debates sobre o racismo e questões raciais nos espaços educativos institucionais, já que são locais certificados para gerar lucidez e discernimento sobre diferentes áreas, com intuito de desconstruir a visão estereotipada que ainda cerca o grupo populacional descendente de indivíduos outrora escravizados, desumanizados e oprimidos em nosso território.

Nesse processo, merece destaque os agentes dinamizadores do espaço escolar que, respaldados pela Lei nº 10.639/03 e suas Diretrizes Curriculares (2004), apresentam potencial instigador para um não conformismo perante a condição social, subalterna e marginalizada na qual se encontra atualmente a maioria dos indivíduos negros no Brasil. Isso abre espaço para problematizações e reflexões sobre as relações raciais no interior das escolas, de forma a apoiar e dar continuidade ao trabalho já produzido por alguns educadores ou estimular a realização por aqueles que ainda não se encontram sensibilizados e comprometidos com o debate racial no cotidiano escolar.

O fato é que não podemos mais ignorar a urgência pela construção de (re)conhecimento e valorização dos elementos constituidores da cultura e da identidade dos afro-brasileiros no cotidiano educativo formal, atravessando amplamente os conteúdos historicamente legitimados nas diferentes áreas de conhecimento, instigando reflexões e desconstruindo a conformidade acerca do lugar legado aos indivíduos negros em nossa sociedade.

Urge que a escola constitua-se como lócus para reflexões sobre a opressão que, ainda no século XXI, assola os afrodescendentes, utilizando inclusive circunstâncias comuns ao dia a dia escolar – como a depreciação do ser negro pela diminuição social de seus traços identitários – durante todo o ano letivo, já que a consolidação de uma consciência sobre os infortúnios sofridos pela população negra e a necessidade de sua reversão somente serão possíveis a partir de um trabalho exaustivo sobre o tema.

Com base nisso, faz-se necessário um movimento de integração da população negra, partindo dos espaços formais de ensino, abarcando suas dificuldades sociais e consolidando uma dinâmica pedagógica engajada na busca pela reversão das condições inferiorizadas às quais foram submetidos os negros na educação nacional, transformando-os em protagonistas do processo educativo após séculos sem medidas efetivamente institucionais preocupadas em agregar esse grupo social, com respeito às suas características étnicas, raciais e culturais.

Nesse sentido, os professores podem produzir a diferença recontando a história refutada, buscando abordar a temática racial sob a ótica da negação à intolerância e aos rótulos que geram a segregação social, da qual muitas vezes nossos alunos nas escolas públicas periféricas são vítimas. É imprescindível o engajamento social dos educadores que precisarão agir para além do simples cumprimento de processos escolarizantes, pois a pretensão agora é a conquista de conhecimentos apoiada na reeducação das relações sociais e raciais, estimando saberes e ações políticas dos povos oprimidos por organizações culturais tidas como superiores (Gonçalves e Silva, 2010).
Assim, edificaremos a importante e por tantas vezes mal compreendida e questionada “consciência negra”, até então muito distante do imaginário hegemônico brasileiro, precisando, por isso, ser semeada diariamente, sobretudo com os potenciais dinamizadores da sociedade futuramente – crianças e jovens em processo formação, a fim de transformar o pensamento social brasileiro orientador das ações que hoje ressoam intolerância, preconceito e discriminação, para então alcançar a equidade racial.

A construção de uma consciência negra a partir do convívio escolar cotidiano requer o reconhecimento e valorização da causa pelas equipes escolares, com o propósito de estas validarem didáticas articuladas às correntes teóricas que fundamentam o tema, afastando ações educativas que destinam à cultura negra uma interpretação exótica e folclórica, para então construir uma posição política perante o patamar racial na Educação (Gomes, 2003).

Vale ressaltar o compromisso da escola com a efetivação das determinações legais antirracistas por meio de práticas pedagógicas éticas enredadas no oferecimento de formação cidadã, despidas de limitações preconceituosas e discriminatórias, para então atingir a representação de indivíduos conscientes sobre sua história e apreciadores de sua ancestralidade, tendo respeitado o direito à condição de cidadão diverso.

Com essa atuação, as escolas estarão amparando novos percursos para a edificação de uma sociedade realmente democrática, compreensiva às diferenças humanas como particularidade do nosso gênero, desenvolvendo o convívio respeitoso e apreciador dessa característica a partir de uma posição ética e desprovida das ordens prioritárias, ou seja, reconhecedora da não existência de indivíduos melhores ou piores, especialmente quando o fator determinante para esse preceito considerar a origem racial do cidadão.

A inserção de uma lógica pedagógica aberta ao diálogo intercultural, capaz de ampliar as vivências cotidianas a partir do estreitamento das relações entre escola e sociedade, é imprescindível, e esse modelo de abordagem educativa implica uma educação problematizadora para a compreensão do real, entendendo o indivíduo como construtor de sua própria história em busca da transformação social.

A partir dessa perspectiva, o educando constitui-se como foco da ação educativa, envolvido em investigações e discussões coletivas na busca pela produção do conhecimento. A prática social é o ponto culminante do processo educativo, visto que a produção do conhecimento sugere reflexão crítica sobre a ação e a favor dela (Oliveira, 2006).

No decorrer do processo ensino-aprendizagem nas escolas, cabe a consideração sobre o potencial transformador das ações educativas e, ao mesmo tempo, o reconhecimento de que a temática racial atravessa, influencia e determina situações na vida de milhares de brasileiros, muitas vezes indicando a subordinação das pessoas negras. Por essa razão, a pesquisa teórica e a busca por metodologias facilitadoras de argumentações antirracistas apresentam-se como cruciais aos docentes, a fim de que superem o constrangimento característico do não entendimento sobre o tema, afastando o comportamento do não saber/fazer que engessou o espaço escolar e acarretou a permissividade ao inaceitável, ou seja, a desvalorização da cultura negra em suas diferentes manifestações, possibilitando a discriminação racial que, por ora, divide e destrói a sociedade brasileira.

Já não podemos mais permitir e contribuir para que a História negada, mal contada, continue a ocultar e ferir individualidades, perpetuando a rejeição à riqueza da diversidade. A negação ao racismo e/ou a omissão ao seu combate nas escolas contribuem para a continuidade da segregação sutil ou velada, marca da sociedade brasileira e fruto de um olhar utópico que favorece a manutenção da população negra subjugada. Como investimento na desconstrução dessa visão, espaços de formação para educadores têm se multiplicado, em todos os níveis, graças às pressões dos movimentos sociais, além da militância praticada por profissionais sensíveis à temática que consolidam espaços formais e não formais para debates e luta em prol de ações educativas antirracistas.

Com esse modelo, legitima-se o ensino oficial da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas, deliberação da Lei nº 10.639/03, demandando o aprofundamento de conhecimentos próprios para os negros, e o diálogo com percepções abalizadas sobre o mundo para não negros, compelindo colaborativamente com a solidificação de uma sociedade mais democrática, na qual a relutância à opressão é perseguida coletivamente, desvendando características diversas de um povo numa atitude política, contestadora do arquétipo eurocêntrico negativo à importância do continente africano e suas derivações para a humanidade (Gonçalves e Silva, 2010).

É importante ressaltar que o foco do processo educativo deve buscar a formação cidadã, transformando os sujeitos envolvidos em protagonistas, contemplando valores éticos que pautem o respeito às diferenças nas relações sociais, contribuindo para o desenvolvimento pleno dos indivíduos a partir da revisão de posições, valores, representações e convenções que dizem respeito aos sujeitos na escola. Para isso, são múltiplos os recursos e estratégias pedagógicas disponíveis e que, bem planejados, configuram-se como substanciais elementos para o fortalecimento da consciência permanente de valorização dos elementos constituintes da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.

Contudo, requeremos incentivos das redes de ensino que, com base legal, devem inserir o debate étnico-racial em suas propostas pedagógicas, estimulando e contribuindo com o fazer/acontecer antirracista nas unidades escolares, edificando uma consciência racial crítica à ideologia do branqueamento e liberta de valores eurocentrados.

Cumpre aos espaços educativos garantir que ocorra o empoderamento dos indivíduos negros durante todos os dias do ano, com base no reconhecimento e valorização das suas características identitárias, a fim de alcançar a efetividade do conceito de equidade. Valorizamos o empenho das escolas que, muitas vezes sufocadas por propostas institucionais que desconsideram a diversidade como característica humana, buscam superar obstáculos e limitações para produzir ações pertinentes durante o mês de novembro. Essas ações são válidas e, desde que embasadas pelas diretrizes curriculares para a educação nas relações étnico-raciais, vão ao encontro do despertar para o simbolismo que cerca o mês, pois é incumbência da escola estender e desenvolver os conceitos que cercam a simbologia do dia 20 de novembro regularmente, estabelecendo a concepção de uma consciência instigadora de direitos igualitários, por isso não passiva à submissão do povo negro.

Por fim, cabe salientar que não podemos incorrer no erro de sobrepor o conceito de “consciência humana” em oposição à “consciência negra”, como se ambos não estivessem interdependentes. Não podemos falar em humanidade enquanto restar à negritude as estatísticas da marginalidade, da exclusão e do abandono, com ausência de representatividade negra proporcional ao seu contingente populacional nas diferentes esferas sociais reconhecidas e valorizadas. Quando as oportunidades e os direitos estiverem, na prática, igualitários a todos os indivíduos que compõem a sociedade, sem prejuízo a qualquer um em decorrência do seu pertencimento racial, saberemos que a consciência negra está firmada no imaginário de todos os brasileiros, que estarão, então, humanizados.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Lei n° 9.394. Brasília, 20 de dezembro de 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei n° 10.639, “que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira e dá outras providências”. Brasília, 9 de janeiro de 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, outubro de 2004.

GOMES, Nilma L. Cultura negra e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, nº 23, p.75-85, maio/ago. 2003.

GONÇALVES E SILVA, P. B. Estudos afro-brasileiros: africanidades e cidadania. In: ABRAMOWICZ, A; GOMES, N. L. (orgs.). Educação e raça: perspectivas políticas, pedagógicas e estéticas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 17-54.

OLIVEIRA, Iolanda. Raça, currículo e práxis pedagógica. Cadernos Penesb, nº 7. Niterói, EdUFF, p.42-67, nov. 2006.

Publicado em 08 de novembro de 2016

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